Alberto
Caeiro*
Fernando Pessoa
Este texto foi digitado por Eduardo Lopes de Oliveira e
Silva, no Rio de Janeiro. Manteve-se a ortografia vigente em Portugal.
I
Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a
Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como
dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e
próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas
nuvens
Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de
mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a
mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo,
mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te
amar,
Os meus olhos fitaram-na mais
demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter
amado.
II
Está alta no céu a lua e é primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou
completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma
brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; não
sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher
flores pelos campos,
E eu andarei contigo pelos campos a
ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores
comigo pelos campos,
Mas quando vieres amanhã e andares
comigo realmente a colher flores,
Isso será uma alegria e uma novidade
para mim.
III
Agora que sinto amor
Tenho interesse nos perfumes.
Nunca antes me interessou que uma flor
tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como
se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei
que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da
parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num
paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de
ver.
IV
Todos os dias agora acordo com alegria
e pena.
Antigamente acordava sem sensação
nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o
que sonho
E posso estar na realidade onde está o
que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas
sensações,
Não sei o que hei-de ser comigo.
Quero que ela me diga qualquer coisa
para eu acordar de novo.
Quem ama é diferente de quem é.
É a mesma pessoa sem ninguém.
V
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar
mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar
bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que
está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como
a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte
como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é
feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me
abandona.
Toda a realidade olha para mim como um
girassol com a cara dela no meio.
VI
Passei toda a noite, sem saber dormir,
vendo sem espaço a figura dela
E vendo-a sempre de maneiras
diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do
que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de
acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só
de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e
eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la,
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela
como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero
saber o que quero.
Quero só pensar ela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela,
senão pensar.
VII
Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrade por estar muito antes das
maneiras.
É preciso ter modos para todas as
cousas,
E cada cousa tem o seu modo, e o amor
também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas
ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer
sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no
fim,
Porque não se é amado como se nasce
mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e
boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho
no campo.
Como se tivesse estado de cabeça
baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado do sol seca as lágrimas
pequenas que não posso deixar de ter.
Como o campo é grande e o amor
pequeno!
Olho, e esqueço, como o mundo enterra
e as árvores se despem.
Eu não sei falar porque estou a
sentir.
Estou a escutar a minha voz como se
fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é
que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de
trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz cousas que
não há nas palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como
pedras do rio.
VIII
O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela
encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta
que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu...
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele,
recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da
verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos
vários verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais
que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e
os campos que existem,
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com
dor, uma liberdade no peito
NR/
* Alberto
Caeiro era um dos pseudônimos que Fernando Pessoa utilizava para assinar seus
trabalhos.
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