sexta-feira, 24 de maio de 2013

CAYMMI, CZAR DO MUNDO


                                                                                       

   Texto de JC Teixeira Gomes, Imortal jornalista baiano, também conhecido como Pena de Aço e, agora também, como Velho Tigre da Sibéria

Em meu último artigo, de 30 de julho, informando aos leitores que faria uma viagem de cerca de dois meses pela China, Mongólia, Rússia e Ucrânia, viajando inicialmente através da Sibéria, prometi no retorno contar essa fantástica odisséia. Espero poder fazê-lo, mas quero começar com a surpreendente (e emocionante) experiência que vivi em Odessa, na Ucrânia, pelo seu ineditismo.

            Era um fim de tarde na bela cidade do Mar Negro. Estava eu tomando em sossego a minha Stela Artois, quando a praça fronteiriça, que descamba para a famosa escadaria em que Eisenstein filmou “O Encouraçado Potenkim”, foi invadida por uma multidão de belos colegiais russos e ucranianos.
             Era uma grande festa de congraçamento de jovens uniformizados, entre sete e dezenove anos de idade, moças e rapazes, cerca talvez de duzentos ou mais, orientados por um também jovem professor que, encarapitado num palanque, comandava as evoluções da moçada. Tratava-se de um happening de beleza, harmonia, coreografia rítmica e alegria jovem e barulhenta. Um espetáculo.
            Já não era a juventude russa ameaçada pela tirania, pela opressão política, pela guerra, pela destruição atômica, mas dançando, pulando, correndo de mãos dadas, abraçando-se, efetuando belas performances coreográficas, numa explosão de energia própria de adolescentes.
            De repente, para meu espanto – e principalmente para  minha emoção - começou a tocar, como fundo musical, a canção – pasmem! – de Dorival Caymmi, sim, Dorival Caymmi, que está na “Suíte do Pescador” e que diz: “Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer. Se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer. Meus companheiros também vão voltar e a Deus do céu vamos agradecer!”...” No essencial, é essa a letra singela e envolvente do nosso poeta. Enfim, em Odessa, uma das cidades mais longínquas da ex-União Soviética, que os brasileiros nem sabem localizar no mapa, eu ouvia, perplexo pela surpresa, com o coração aos pulos, uma canção praieira de Dorival Caymmi, dando voz e compasso à adolescência do mundo!
            O som repetia, a curtos intervalos, o refrão da música de Caymmi, com voz solo (creio que a língua era a ucraniana, diferente da russa, não soube distinguir), acompanhada de coro. Na heróica cidade de Odessa, que expulsou os nazistas invasores em 1944 após quatro anos de sofrimento e cruel ocupação, na digna cidade do Mar Negro, destruída em 80 por cento pelas tropas de Hitler, ressoava, insistentemente, a canção de Dorival Caymmi, nascido no outro lado do mundo, para arrancar, do único brasileiro presente, lágrimas de irreprimível emoção... Todo mundo sabe que homem não chora. Mas eu chorei. Vá lá você, que é um machão, viver uma experiência dessas! A pátria aumenta na distância.
            Sob o embalo do refrão, memorizei, então, décadas e décadas de história: lembrei-me de tempos tenebrosos, tempos de trevas, envolvendo o mundo e a Rússia, lembrei-me da guerra, do confronto entre Stálin e Hitler, do indigno Pacto Nazi-Soviético, que deu a Hitler tranqüilidade para iniciar a agressão, sacrificando a Polônia; lembrei-me da histórica vitória do Exército Vermelho esmagando o nazismo em Berlim, do heroísmo de Stalingrado, destruída mas vitoriosa (e que acabo de visitar), da nefanda camarilha do Kremlin, da KGB de torturadores, do horror de Katyn, do assassino e corrupto Béria, do Gulag, dos expurgos stalinistas, da invasão soviética da Hungria e da Tchecoslováquia, lembrei-me das ameaças do urso Brejnev; lembrei-me ainda  do camarada Kruschev armando Fidel Castro com os mísseis atômicos para a possível guerra nuclear com os EUA, e, finalmente, de todos os perigos que o mundo viveu, durante o prolongado clima irracional da Guerra Fria.
            E compreendi, de súbito, que tudo aquilo era nada, absolutamente nada, um passado fétido e irrelevante, diante da beleza da juventude russa em festa e dos acordes maravilhosos da música universal de Dorival Caymmi, cantor da paz e do amor, poeta do mar, do dengo e das morenas, jogral das praias baianas, czar de todas as Rússias, imperador do mundo!    

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