Em
meu último artigo, de 30 de julho, informando aos leitores que faria uma viagem
de cerca de dois meses pela China, Mongólia, Rússia e Ucrânia, viajando
inicialmente através da Sibéria, prometi no retorno contar essa fantástica
odisséia. Espero poder fazê-lo, mas quero começar com a surpreendente (e
emocionante) experiência que vivi em Odessa, na Ucrânia, pelo seu ineditismo.
Era
um fim de tarde na bela cidade do Mar Negro. Estava eu tomando em sossego a
minha Stela Artois, quando a praça
fronteiriça, que descamba para a famosa escadaria em que Eisenstein filmou “O
Encouraçado Potenkim”, foi invadida por uma multidão de belos colegiais russos
e ucranianos.
Era uma grande festa de congraçamento de
jovens uniformizados, entre sete e dezenove anos de idade, moças e rapazes,
cerca talvez de duzentos ou mais, orientados por um também jovem professor que,
encarapitado num palanque, comandava as evoluções da moçada. Tratava-se de um happening de beleza, harmonia,
coreografia rítmica e alegria jovem e barulhenta. Um espetáculo.
Já
não era a juventude russa ameaçada pela tirania, pela opressão política, pela
guerra, pela destruição atômica, mas dançando, pulando, correndo de mãos dadas,
abraçando-se, efetuando belas performances coreográficas, numa explosão de
energia própria de adolescentes.
De
repente, para meu espanto – e principalmente para minha emoção - começou a tocar, como fundo
musical, a canção – pasmem! – de Dorival Caymmi, sim, Dorival Caymmi, que está
na “Suíte do Pescador” e que diz: “Minha jangada vai sair pro mar, vou
trabalhar, meu bem querer. Se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom
eu vou trazer. Meus companheiros também vão voltar e a Deus do céu vamos
agradecer!”...” No essencial, é essa a letra singela e envolvente do nosso
poeta. Enfim, em Odessa, uma das cidades mais longínquas da ex-União Soviética,
que os brasileiros nem sabem localizar no mapa, eu ouvia, perplexo pela
surpresa, com o coração aos pulos, uma canção praieira de Dorival Caymmi, dando
voz e compasso à adolescência do mundo!
O
som repetia, a curtos intervalos, o refrão da música de Caymmi, com voz solo
(creio que a língua era a ucraniana, diferente da russa, não soube distinguir),
acompanhada de coro. Na heróica cidade de Odessa, que expulsou os nazistas
invasores em 1944 após quatro anos de sofrimento e cruel ocupação, na digna
cidade do Mar Negro, destruída em 80 por cento pelas tropas de Hitler,
ressoava, insistentemente, a canção de Dorival Caymmi, nascido no outro lado do
mundo, para arrancar, do único brasileiro presente, lágrimas de irreprimível
emoção... Todo mundo sabe que homem não chora. Mas eu chorei. Vá lá você, que é
um machão, viver uma experiência dessas! A pátria aumenta na distância.
Sob
o embalo do refrão, memorizei, então, décadas e décadas de história: lembrei-me
de tempos tenebrosos, tempos de trevas, envolvendo o mundo e a Rússia,
lembrei-me da guerra, do confronto entre Stálin e Hitler, do indigno Pacto
Nazi-Soviético, que deu a Hitler tranqüilidade para iniciar a agressão,
sacrificando a Polônia; lembrei-me da histórica vitória do Exército Vermelho
esmagando o nazismo em Berlim, do heroísmo de Stalingrado, destruída mas
vitoriosa (e que acabo de visitar), da nefanda camarilha do Kremlin, da KGB de
torturadores, do horror de Katyn, do assassino e corrupto Béria, do Gulag, dos
expurgos stalinistas, da invasão soviética da Hungria e da Tchecoslováquia,
lembrei-me das ameaças do urso Brejnev; lembrei-me ainda do camarada Kruschev armando Fidel Castro com
os mísseis atômicos para a possível guerra nuclear com os EUA, e, finalmente,
de todos os perigos que o mundo viveu, durante o prolongado clima irracional da
Guerra Fria.
E
compreendi, de súbito, que tudo aquilo era nada, absolutamente nada, um passado
fétido e irrelevante, diante da beleza da juventude russa em festa e dos
acordes maravilhosos da música universal de Dorival Caymmi, cantor da paz e do
amor, poeta do mar, do dengo e das morenas, jogral das praias baianas, czar de
todas as Rússias, imperador do mundo!
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