Separações
são sempre difíceis. Mesmo quando a decisão é construída pelos dois, a sensação
é de fracasso, culpa, tristeza profunda. E o pior é que não tem bula ou manual
de instruções.
Tudo parece tão fácil — nos filmes. Depois da tela escura, amanhece. Cada qual na sua casa, com a roupa de cama no armário, a louça na cozinha e os livros displicentemente arrumados nas estantes. Ninguém faz as malas, ninguém discute o significado dos objetos colecionados durante quase 30 anos. Não se reflete sobre o melhor momento de empacotar a vida ou apartar o paletó do vestido.
Costumam ser rápidas as audiências consensuais de separação. Raramente uma reconciliação, mas com freqüência um choro e sempre a dor da ferida ainda não cicatrizada.
Tudo parece tão fácil — nos filmes. Depois da tela escura, amanhece. Cada qual na sua casa, com a roupa de cama no armário, a louça na cozinha e os livros displicentemente arrumados nas estantes. Ninguém faz as malas, ninguém discute o significado dos objetos colecionados durante quase 30 anos. Não se reflete sobre o melhor momento de empacotar a vida ou apartar o paletó do vestido.
Costumam ser rápidas as audiências consensuais de separação. Raramente uma reconciliação, mas com freqüência um choro e sempre a dor da ferida ainda não cicatrizada.
Fernando e Teresa não se pareciam com nenhum dos milhares de casais que acostumei ver naquela situação. Mal conseguiam se entreolhar. Não tinham filhos. Não precisavam de pensão. O patrimônio do casal seria dividido em partes iguais e ela voltaria a usar o nome de solteira.
Antes que eu formulasse a burocrática pergunta sobre a possibilidade de reconciliação — especialmente burocrática naquele caso, considerando a nítida distância entre os dois —, entra na sala uma senhora. Era muito idosa, cabelos brancos arrumados, chiquérrima e com um buquê de rosas colombianas vermelhas na mão.
— Desculpa, doutora. É minha mãe – informou Teresa.
— Posso aguardar aqui dentro, excelência? – perguntou a senhora com as rosas.
— Se vocês não se incomodarem...
Tanto Teresa quanto Fernando assentiram. Altiva, ela sentou e, tranqüila, aguardou o encerramento do ato.
O acordo foi ratificado e o tempo não passava. Nunca demorou tanto uma impressão de texto. Parecia a eternidade. O silêncio, ali, era sólido, machucava. Eu não sabia o que podia fazer, ao menos, para amenizar o visível constrangimento do casal e, óbvio, o meu.
Ele era professor universitário e ela pesquisadora. Provoquei alguma pauta política do dia e a discussão sobre os arquivos da ditadura veio à tona. Qualquer coisa era mais suportável que aquele silêncio.
Soube, então, que se conheceram nos anos 60, no movimento estudantil, e foi um amor de idéias e liberdade. Companheiros da resistência, não podia haver qualquer evento capaz de destruir a solidez dos projetos e sonhos. Dividiam as almas e se imaginavam juntos até o fim.
Ela nunca engravidou e em exames preparatórios para um tratamento de infertilidade, quase aos 40 anos, veio o diagnóstico de câncer de mama.
Ele a acompanhou na cirurgia e na quimioterapia. Poucos meses depois do retorno do hospital, a notícia de uma gravidez não programada de outra mulher, com quem Fernando tivera um relacionamento eventual e passageiro, caiu como uma bomba no já detonado quarteirão doméstico.
Mesmo fragilizada pela doença, a racionalidade prevaleceu. E se teve impulsos de descontrole ou vitimização, e se pretendeu quebrar tudo, Teresa se conteve. O que os fazia parceiros era muito mais do que um sentimento de posse. Maduros, éticos, leais e politicamente corretos, enfrentariam a situação como adultos que eram e continuariam no mesmo barco.
Atenta, eu assistia hipnotizada e admirada à história contada pelos dois.
Alguns anos depois, um novo tumor. Desta vez, Fernando não suportou o encargo, a responsabilidade. Não era falta de compreensão ou solidariedade. Era falta de vontade de prosseguir. Conversaram. De novo, sem drama, sem tragédia e sem bolero. Procuraram o advogado e ali estavam.
Assinados os papeis e prontos para sair, a senhora das rosas levanta e numa voz firme, pede a palavra.
Informei que a audiência havia terminado e, caso Fernando quisesse, podia sair, mas, autoritária, ela o impediu.
— Só preciso dizer uma coisa, Fernando. E gostaria que você ouvisse.
Ele parou respeitosamente e permaneceu de pé.
Ela prosseguiu:
— No dia do casamento de vocês, meu marido, ainda vivo, te entregou o nosso bem mais precioso. Hoje, eu fiz questão de vir aqui, com flores, para receber de volta a melhor mulher que você podia ter encontrado na sua vida. Não te culpo por nada. Só lamento que você não tenha conseguido chegar nessa idade com a sabedoria, a maturidade e a generosidade que se espera de um homem. Sempre te acolhi como um filho e nunca imaginei que uma pessoa de caráter pudesse abandonar qualquer ser humano no momento mais frágil da sua vida. Isso, rapaz, é papel de moleque. A vida não serviu para que você se transformasse numa pessoa melhor. Nessas horas, dói mais pra mim, a revelação do seu egoísmo e falta de compaixão.
Nenhuma reação. Nem de Teresa, nem de Fernando.
— Acabei. Pode ir. Seja feliz, coisa que eu duvido que você consiga.
Ainda da porta, ele ouviu o que faltava:
— Você, minha filha, me dá um abraço apertado. Essas flores são para que você nunca se esqueça da mulher íntegra que é e que muito me orgulha. Não temos, no sangue, a capacidade de armazenar ressentimentos. Você vai ser muito feliz porque merece. Dignidade é coisa que homem nenhum tira da gente.
Fernando deixou a sala. Levantei e pedi um abraço da senhorinha. Racional, como Teresa, eu não podia ter feito aquele discurso, principalmente porque não sou juíza para julgar desejos, impulsos e limitações alheios.
Não consegui, entretanto, esconder a satisfação de presenciar um acerto de contas, vindo de uma autoridade que só a idade e a dignidade conferem. Aquela mãe não tinha nenhum compromisso, quer com a racionalidade, quer com a legalidade. Podia falar o que quisesse naquelas circunstâncias.
Partiram, mãe e filha, de braços dados, com o buquê de rosas vermelhas, no cortejo para a vida.
*Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, deverá em breve se transformar em livro.
NR/ Andréa Pachá é juíza de Direito em Petrópolis (RJ)
e ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça.
FONTE: Revista Consultor Jurídico.
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