Para a
maioria dos americanos, a principal ameaça à saúde não é a gripe aviária, a
febre do Nilo ou o mal da vaca louca. Mas sim o próprio sistema de saúde. Você
pode pensar que isso é porque os médicos cometem erros (sim, nós erramos). Mas
você jamais será vítima de um erro médico se você não está no sistema. A maior
ameaça apresentada pela medicina americana é o fato de cada vez mais estarmos
nos afundando nesse sistema, não por uma epidemia de doenças, e sim por uma
epidemia de diagnósticos. Apesar de os americanos viverem mais do que nunca, cada
vez mais nos falam que estamos doentes. Como isso é possível? Um dos motivos é
que nós (americanos) empregamos mais recursos aos cuidados médicos que qualquer
outro país. Parte deste investimento é produtivo, cura doenças e alivia
sofrimentos. Mas isso também nos conduz a cada vez mais diagnósticos, uma
tendência que se transformou em epidemia.
Essa epidemia
é uma ameaça à saúde e tem duas fontes distintas. Uma delas é a ‘medicalização’
da vida cotidiana. A maioria de nós passa por sensações físicas ou psicológicas
desagradáveis que, no passado, eram consideradas como parte da vida. No
entanto, hoje tais sensações são consideradas, cada vez mais, como sintomas de
doenças.
Eventos como insônia, tristeza, inquietação de
pernas e diminuição do apetite sexual, hoje, se transformam em diagnósticos:
distúrbio do sono, depressão, síndrome de pernas inquietas e disfunção sexual.
Talvez ainda mais preocupante seja a medicalização da infância. Se uma criança
tossir depois de fazer exercícios, ela tem asma. Se tiver problemas com
leitura, é disléxica. Se estiver infeliz, tem depressão. Se alternar entre
euforia e tristeza, tem distúrbio bipolar. Se por um lado esses diagnósticos
podem beneficiar algumas pessoas com sintomas graves, por outro é necessário
ponderar o real efeito de tais sintomas, que em muitos casos são brandos,
intermitentes ou transitórios.
Outra fonte é
o empenho por descobrir doenças o quanto antes. Diagnósticos eram usualmente
restritos a moléstias graves. Hoje, no entanto, nós diagnosticamos doenças em
pessoas que absolutamente não apresentam sintomas, os famosos ‘grupos de risco’
e as pessoas com ‘predisposição’. Dois progressos aceleram esse processo. Em
primeiro lugar, a avançada tecnologia permite que os médicos olhem
profundamente para as coisas que estão erradas. Nós podemos detectar marcadores
no sangue. Nós podemos direcionar aparelhos de fibra ótica dentro de qualquer
orifício. Além disso, tomografias computadorizadas, ultrassonografia,
ressonâncias magnéticas e tomografias por emissão de pósitrons permitem que os
médicos exponham, com precisão, tênues defeitos estruturais do organismo.
Essas
tecnologias tornam possíveis quaisquer diagnósticos em qualquer pessoa: artrite
em pessoas sem dores nas juntas, úlcera em pessoas sem dores no estômago e
câncer de próstata em milhões de pessoas que, não fosse pelos exames, viveriam
da mesma forma e sem serem consideradas pacientes com câncer. Em segundo lugar,
as regras estão mudando. Conselhos de especialistas, constantemente, expandem
os conceitos de doenças: todos os valores de referência para o diagnóstico de
diabete, hipertensão, osteoporose e obesidade caíram nos últimos anos. O
critério utilizado para considerar o nível de colesterol normal despencou
múltiplas vezes. Com estas mudanças, doenças agora são diagnosticadas em mais
da metade da população. A maioria de nós acredita que estes diagnósticos
adicionais sempre beneficiam os pacientes. E alguns, de fato, são benéficos.
Mas, por fim, a lógica das detecções antecipadas é absurda. Se mais da metade
de nós está doente, o que significa estar ‘normal’? Muitos de nós estamos
predispostos – e em algum dia podemos ficar doentes – e todos nós somos dos
‘grupos de risco’. A medicalização na vida cotidiana é muito problemática. O
que, exatamente, estamos fazendo com nossas crianças, uma vez que 40% das que
vão acampar estão sujeitas a uma ou mais prescrições crônicas de medicamentos?
Ninguém
deveria adotar a conduta de transformar pessoas em pacientes, ainda que sem
gravidade. Isto gera grandes prejuízos. O fato de rotular pessoas como doentes
pode deixá-las ansiosas e vulneráveis, em especial as crianças.
Mas o
principal problema é que a epidemia de diagnósticos conduz a uma epidemia de
tratamentos. Nem todos os tratamentos têm reais benefícios, mas quase todos
podem ter prejuízos.
Algumas vezes
os prejuízos são conhecidos, no entanto, frequentemente os prejuízos de algumas
terapias levam anos para serem descobertos, após muitas pessoas já terem sido
expostas aos malefícios.
Para
pacientes com doenças severas, estes malefícios, geralmente, perdem a
importância diante dos potenciais benefícios. Mas para pacientes com sintomas
mais brandos os malefícios são muito mais relevantes. Além disso, para
pacientes rotulados como ‘predispostos’ ou de ‘grupos de risco’ que estão
destinados a permanecer saudáveis, o tratamento só pode causar prejuízos.
A epidemia de
diagnósticos tem muitas causas. Mais diagnósticos significa mais dinheiro para
a indústria farmacêutica, hospitais, médicos e advogados. Pesquisadores e até mesmo
organizações federais de medicina asseguram suas posições (e financiamentos)
promovendo a descoberta de ’suas’ doenças. Preocupações médico-legais também
conduzem à epidemia. Se por um lado uma falha no diagnóstico pode ser objeto de
uma ação judicial, por outro não existe qualquer punição para diagnósticos
exacerbados. Além disso, o que os clínicos menos têm dificuldade de fazer é
diagnosticar desenfreadamente, mesmo quando existem dúvidas de se diagnosticar,
ou não, realmente vai ajudar nossos pacientes.
Desta forma,
quanto mais nos falam que estamos doentes, menos nos dizem que estamos bem. As
pessoas precisam ponderar sobre os riscos e benefícios da ampliação de
diagnósticos. A questão principal a ser enfrentada é sobre ser ou não um
paciente. E os médicos precisam relembrar do valor que tem ou não um paciente.
E os médicos precisam relembrar do valor que tem assegurar a uma pessoa que ela
não está doente. Talvez se devesse começar a estudar uma nova medida de saúde:
a proporção da população que não precisa de cuidados médicos. E as instituições
nacionais de saúde poderiam propor uma nova meta para os pesquisadores: reduzir
a demanda de serviços médicos, ao invés de aumentá-la.
* Gilbert Welch é autor da
obra Should I Be Tested for Cancer? Maybe Not and Here’s Why (University of
California Press). Lisa
Schwartz e Steven Woloshinsão pesquisadores seniores do VA Outcome Group em
White River Junction.
Este artigo foi publicado no jornal The New York Times.
Tradução: Daniel de Menezes Pereira.
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