Texto de
CLARICE LINSPECTOR
Como, como explicar o milagre…
Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem
nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode
acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me
pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era
uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita
conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com
seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia
em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de
olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência —
compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si,
passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma
criança, como uma pessoa.
Depois de obtida a matéria, numa
queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia
vivendo para a frente como uma menina.
Um dia, porém, sentia seu corpo
aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se
desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela
mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era
vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração
acelerar-se sem ritmo… de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia
passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.
Mas às vezes ela se lembrava do
barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos
naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos
poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma
mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma
menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda
salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o
cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando… Muito mais, muito mais. Pequenas
formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas.
Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada… Às
vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma
pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento
ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!…
Depois de prontos, os bonecos
eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas
de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente,
conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado,
evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As
figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso
era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por
amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava
numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força
de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à
figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de
que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes
possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre
a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração:
Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para
sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando
queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso
— ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo
trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou
feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz,
procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a
frente que servisse de forma à sua sensação.
Assim juntara uma procissão de
coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos
magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados,
alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo
rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a
de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos.
Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não
diminuiriam.
— Bonito… bonito como uma
coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.
Ela observava: mesmo bem
acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas
vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los
sem destruir sua linha de nascimento . Era como se eles só pudessem se
aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.
As dificuldades surgiam como uma
vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos.
Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força
dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois
inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro
conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto.
Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém
mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria
nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu
mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que
precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada,
sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria
com tintas.
E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em
fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila.
NR/ FONTE: Este texto foi publicado na revista Nordeste
– Ano XIII, nº 2, julho de 1960, Recife-PE – consta também do livro O Lustre,
publicado em 1946.)
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