sábado, 20 de julho de 2013

DOIS CONTOS DE HUMBERTO DE CAMPOS


OS HORRORES DA GUERRA

O caso policial contado há dias pelos jornais, é, ao que parece, mera reprodução de uma infinidade de outros, ocorridos no Rio, e, em geral, no mundo inteiro. A guerra, principalmente, com os seus horrores, com as suas violências, com as suas brutalidades inomináveis, tem fornecido exemplares curiosíssimos de certas vergonhas, que constituem, como se sabe, a nódoa de lama da túnica das sociedades.

A prova mais amarga, e mais típica, desse gênero de verdades dolorosas, é, entretanto, a que Banvile apresenta em um quadro melancólico, desenhado com a delicadeza inimitável do seu estilo. As cores da tela são tão leves, tão doces, tão brandas, que eu me permito a mim próprio, a audácia de retocá-la, na blasfêmia de uma ligeira adaptação.
Em um salão triste e antigo, ressumando saudades, meditam, com a alva cabeça pendida sobre o peito, três velhinhas septuagenárias, cujos olhos se perdem, quase sem brilho, nas brumas longínquas do passado. Procedem, as três, do tumulto do mundo, de que são ali, meros despojos de um naufrágio, atirados à praia, como tantos outros, pelas eternas tempestades da vida. Cabeça baixa, olhos baixos, a mais velha das três solta, de repente, um suspiro tão fundo, que lhe traz aos olhos uma lágrima. As outras olham-na, compadecidas, e, para matar as horas, que, por sua vez, as vão matando, resolvem contar os seus amores, as suas aventuras, resumindo nestas o braço mau, ou leviano, que as atirou à desgraça.
- Eu, - contou a mais velha - fui vítima do meu noivo, o tenente Balduino, do antigo batalhão de lanceiros. Confiando nele, nas suas juras, nas suas promessas apaixonadas e ardentes, deixei-me arrastar, um dia, pela sua palavra e pelo seu braço, até à sua casa, e, quando despertei no dia seguinte, foi para chorar, como até hoje, a minha infelicidade...
- A minha história, - principiou a segunda, - não é muito diferente. Passeava uma tarde com o meu primo, o barão Reinaldo, pelas alamedas do jardim de meu pai, quando, embriagada pela amavio dos seus juramentos de amor, me deixei cingir pelos seus braços. O beijo pecador que pôs, como uma brasa, na minha boca virgem, fez-me desmaiar. Meses depois o barão partia para o Oriente, enquanto meu pai me atirava à rua, com o meu filho e a minha vergonha!
A terceira velhinha mantinha-se em silêncio, meditativa, quando as outras a interrogaram:
- E a senhora, mãe Georgete?
- Eu? Eu vivia na Alsácia, em 1870, com meu pai e minha mãe. Era jovem e linda. Um dia, ouvimos troar a artilharia nas vizinhanças da aldeia. Era o inimigo!
E calou-se. Mas as outras exigiram:.
- E o resto?
- Que resto?
As duas se entreolharam, e insistiram, falando claro:
- Quem foi?
E a velhinha, limpando os olhos:
- Foram os alemães...

PAVORES DE ENFERMO

Não obstante a sua aparência de homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho, diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas, era, intimamente, um dos temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade, defrontavam-se, nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem violência, que este se superpunha à brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e, chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um conselho:
- Diga-me cá, doutor, diga-me, com reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas asiladas?
- Absolutamente, não! - acudiu o facultativo. - Desde que elas queiram, não há, mal nenhum. Eu próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando, apenas, não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente sérias.
- E que faz o doutor para diferençar umas das outras? - objetou o velho. - Como que o senhor as distingue?
O galeno tomou-o pelo. braço, arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e revelou-lhe o seu segredo:
- Olhe: o senhor, quando se quiser aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua declaração, que será, por força, bem sucedido.
E apertando-lhe a mão
- Experimente.
Um mês depois foi o médico chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de depressão era visível. O pulso, irregular, incerto, descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que os seus cinqüenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo, o médico compreendeu a sua missão, e, pedindo que os enfermeiros se retirassem, começou:
- Meu caro coronel, é preciso que o senhor mude de vida.
- Eu?
- Sim, senhor. O senhor abusou do meu conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um moço, um rapaz no vigor dos anos.
E interrompendo-se:
- Que idade o senhor tem?
- Como? - atalhou o doente, alarmado.
- Eu estou perguntando que idade tem o senhor.
A essa confirmação da consulta, passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que idéia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos fora das órbitas:
- Cento e cinqüenta anos doutor! Duzentos! Duzentos e cinqüenta anos, doutor!
E disparou, escada abaixo.


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