Lenda: Texto de Autoria desconhecida
Bem, o
homenzinho nao era velho, devia andar por volta dos 60 anos. Mas o seu trajar
andrajoso dava-lhe a aparencia de mais idade. Ninguem se recordava ao certo
quando ele se colocara pela primeira vez ao canto da loja fronteira a Matriz. O
seu aspecto indigente infundira do nos coracoes dos transeuntes e, como o lugar
da igreja era mesmo no centro da cidade, o trafico pedestre era numero-so e
constante e ele era notado facilmente. Uma enorme percentagem das pessoas
deixava-lhe na mao, a passagem, uma ou duas
moedas de escudo, ou dois escudos e
meio, conforme a maneira de sentir de cada uma e de acordo com as suas posses.
O certo e que o pauperrimo velhote se safava com uma feria, ao fim do dia, de
se Ihe tirar o cha-peu.
O que tocava mais todos os coracoes, o que fazia vibrar as almas bondosas era o
facto do pobre homem ter uma vista tapada por um emplastro, seguro por meio dum
elas-tico a volta da cabeca, de onde, na parte inferior, se via es-correr uma
especie de enxudia que, para os incautos e gen-te de fe fervorosa, nao era mais
do que a exsudagao de pus do cancro que ele tinha na vista direita. Ele nao
podia ser considerado pedinte porque nunca solicitava esmola a nin-guem. Estava
ali de pe, encostado a parede, as pessoas pas-savam e, condoidas do seu aparente
estado incuravel, punham-lhe na mao o que as suas generosas bolsas permi-tiam.
De manna ate a noite, sempre com os escudos a pin-gar, quando chegava a tarde
tinha no bolso um ordenado de major.
Vivia sozinho num casebre a beira-mar. Ninguem sabia de onde ele viera. Constava que era da Ilha da Madeira. Ali, naquela ilha acoreana, nao Ihe conheciam familia nem amigos. Era apenas um pobre diabo que metia do a quern passava por ele.
Decorreram varies anos, pelo menos dez, e o veihote continuava ao canto defronte da Matriz, sem que o seu es-tado canceroso se alterasse. Nao estava melhor nem pior. Era sempre a mesma coisa. O emplastro sobre o olho direi-to a verter a enxiindia de galinha, pois diziam que ele apli-cava pedacos de carne dos galinaceos para alimentar o can-cro e assim evitar que o fatidico mal alastrasse comendo da sua carne. Esta aplicacao de carne de galinha para evitar o desenvolvimento canceroso era baseado numa crendice do povo. Nao havia o quer que fosse de terapeutico no pressu-posto processo curativo.
Havia mais de dez anos que o povo o via ali, todos os dias, sem que Ihe notassem pioras nem melhoras. Nao morria nem melhorava. Ora, o cancro e uma doenca in-curavel, como todos nos sabemos, e mais cedo ou mais tar-de, quem contrai essa doenca vai parar, infelizmente, a «terra das batatas». Nao parecia ser esse o caso do velho da Matriz. Ja la iam doze anos que por ali se quedava sem dar nada de si. O mal talvez tivesse sido travado pela accao da enxundia de galinha... Certamente a carne dos galina¬ceos tinha qualidades terapeuticas desconhecidas de cien-cia.
Se sempre tinham conhecido aquele pobretao com o emplastro sobre a vista, e sabe Deus ha quanto tempo ele te-ria aquela doenca, antes de aparecer por ali, e ainda estava vivo, e porque, de facto, as postas de carne de galinha fa-ziam bem.
Alguns individuos emitiam opinioes onde transpirava o agrado de verem que o veihote continuava a viver, enquan-to outras pessoas expressavam duvidas quanto a nature/a da doenga. Aos anos que o homenzinho era visto naquele lugar, o quer que era que ele tinha naquele lado da cara nao podia ser cancro, senao ja teria morrido ha muito tem¬po, alvitravam alguns. Mas o que mais admirava era ele
nao se tratar com os medicos. Como estava sempre all na-quele sitio, nao era possivel ir a consultas, pois a sua au-sencia seria notada. Alem disso o pobre desgracado nao te-ria dinheiro para as despesas de tratamento, comentavam os mais curiosos com simpatia pela desventura do men-digo.
Aqueles que Ihe davam esmola, praticamente todos os dias, na sua passagem para os seus empregos, matutavam as vezes acerca do infeliz que eles julgavam vir a abater-se, mais dia menos dia, vitimado pela mais mortifera de todas as doen?as conhecidas. Nao obstante, intimamente, sen-tiam alegria ao verem que o desprotegido da sorte conti-nuava encostado a parede, na sua atitude silenciosa, acei-tando o que Ihe queriam dar, sem que ele Ihes pedisse. Algumas pessoas comentavam umas para as outras, cami-nhando juntas: — O velhote deve estar para pouco. Aos anos que ele sofre daquela maligna e incuravel fistula can-cerosa, e impossivel que dure muito tempo ainda. — Sim, vai-te fiando nessa. Ainda tu es capaz de ir primeiro — ri-postou outro, gracejando. — Deus Ihe de muitos anos de vida, coitado — dizia outro. — Eu e que nao queria estar nas suas condicoes, vivesse pouco ou muito — adiantava outro ainda.
As mulheres, agarradas ao dinheiro como ninguem, eram todavia generosas nas suas esmolas para o velho da Matriz. As senhoras de categoria social mais elevada, se adregavam a passar por ali, nao se Hmitavam a dar-lhe uns cobres, a sua consciencia fazia-as abrir os cordoes a bolsa e metiam-lhe na mao uma nota de vinte ou de dez.
Quando escurecia la ia ele encostado a sua bengalinha, num andar vacilante, a caminho do seu casebre, descansar e contar a sua colheita do vil metal. No dia seguinte reto-mava o seu posto e a regularidade da sua existencia ia-se arrastando na monotonia habitual.
Chegado o Inverno, antes do Natal, desaparecia. Pare-cia hibernar. So tornavam a ve-lo em principios de Marco. A ausencia era justificavel. As inclemencias do tempo in-vernoso impunham aquele retire. E assim se iam passando os anos, sem o velhote dar a alma ao criador.
Um dia um novo medico, novo na idade e novo como formado, chegou a cidade, apos completar o seu internato em Lisboa, e abriu o seu consultorio. Ao ver pela primeira vez o velhote da Matriz ficou bastante impressionado e condoeu-se dele ao ponto de Ihe dar esmola tambem. Teve, porem, o cuidado de examinar superficialmente o seu as-pecto e sentiu vontade de ajudar aquele infeliz. Mas, sem-pre que tinha oportunidade parava junto dele e dava-lhe alguma coisa, enquanto olhava para o seu semblante de forma inquisidora.
Passado algum tempo o Dr. Albano, era este o nome do jovem medico, perguntou ao velhote canceroso se nao se importava de ir ao seu consultorio, que Ihe faria um exa-me de gra?a e, se fosse necessario, ajuda-lo-ia a internar-se no hospital para ser tratado devidamente.
O velhote da Matriz, nome por que era reconhecido por toda a gente do lugar, agradeceu humildemente ao doutor a sua generosidade e prometeu ir visita-lo qualquer dia. Mas os dias e as semanas passaram e o Dr. Albano nunca teve a oportunidade de o ver entrar a porta do seu consul¬torio. O doutor voltou a pedir-lhe para o ver e examinar, sem encargos de especie alguma; ele prometeu mais uma vez ir ter com o filantropo facultative, mas nunca apare-ceu.
O Dr. Albano, mediante a estranha atitude do misera-vel mendigo, trocou algumas impressoes com os seus cole-gas, no clube, e verificou com estranheza que nenhum de¬les tinha ainda observado o indigente pedinte. Perante esta descoberta mais se arreigou na sua mente o proposito de examinar aquele desgracado, cuja relutancia em ser obser¬vado era ja manifesta. Tentou mais uma vez convence-lo a ir ao seu consultorio, num determinado dia e determinada hora, mas em vao. O pressuposto canceroso nao estava disposto a sujeitar-se a uma observafao clinica. Parecia conformado com a sua pouca sorte. Sabia que ia morrer, portanto, nao valia a pena submeter-se a tratamentos e privar-se da sua liberdade ficando encerrado num quarto do hospital.
O Dr. Albano continuou a manter-se firme no proposi-to de o examinar e volta e meia aparecia junto dele a insis-tir para ele ir ao seu consultorio quando Ihe apetecesse, a qualquer hora do dia, durante o horario das consultas. Mas o diabo do velho mantinha-se renitente na sua cas-murrice de nao querer sujeitar-se a ser examinado.
Entretanto saiu uma lei proibindo a mendicidade nas ruas e o Dr. Albano, na sua intencao filantropica, aprovei-tou a nova lei para forcar o pedinte a submeter-se a um exame medico. De acordo com o comandante da policia, a quern o doutor explicou a situacao, o velhote, considerado pedinte, seria preso por infraccao da lei agora vigente e in-ternado no hospital, sob a proteccao do Socorro Social. AH o Dr. Albano, como membro duma junta medica, ac-tuaria de forma a examina-lo e trata-lo devidamente.
Tudo combinado, numa conspiracao altruista e de ca-racter filantropico, o velhote, muito surpreendido, foi ar-rastado para a esquadra da policia e dali conduzido para o hospital, onde a junta medica ja se encontrava a espera.
— Eu nao fiz mal a ninguem, senhores policias. Por
que e que me levam preso?
—Entao o senhor nao sabe que e proibido pedir esmola nas ruas? Pois fique sabendo que e. A lei saiu ha dias para acabar com a pedincha na via publica e o senhor esta in-fringindo essa lei.
— Mas eu nao sabia disso — ripostou o velhote.
— Nao sabia, mas fica sabendo agora — retorquiu um
dos policias. — Possivelmente o nosso chefe nao o retera
preso por mais que um dia ou dois, pois talvez leve em
conta o seu desconhecimento da lei e po-lo-a em liberdade.
Mas tenha paciencia tiozinho, nos temos que fazer o nosso
service. Vamos.
Os policias ignoravam a trama que tinha sido engendra-da pelo doutor e pelo seu comandante. E o pedinte tam-bem estava longe de pensar que tinha caido numa armadi-Iha para ser examinado clinicamente.
Apos ser levado a presenca do chefe da esquadra poli-cial e de ter respondido a varias perguntas corriqueiras, de onde era, como se chamava, se era casado, etc., foi-lhe fei-ta uma preleccao sobre a nova lei que proibia a pedincha pelas ruas e foi abordado quanto a sua doenca. Subtraiu-se a respostas concretas e lamentou-se do seu estado, que ti-nha aquela chaga daquele lado da cara, ja havia anos, e que a trazia tapada para evitar repugnancia as pessoas. Os emplastros com carne de galinha eram urn remedio caseiro que Ihe tinham recomendado e que parecia fazer-lhe bem. Disse mais que nao fazia mal a ninguem e que a lei proibin-do a pedincha nao Ihe era aplicavel porque nunca pedira uma esmola a ninguem. Quem Ihe dava qualquer coisa fazia-o voluntariamente. Ele nunca se dirigira a quern quer que fosse dizendo: — De-me uma esmolinha, por amor de Deus!
Sob este ponto de vista a policia teve que dar a mao a palmatoria. Foi impossivel provar que o velhote estendia a mao a caridade verbalmente. Estava ali ao canto da loja, defronte da igreja, pregado ao chao, encostado a parede todo o dia, sem nunca proferir palavra, a nao ser um obri-gado, quase imperceptivel, quando Ihe metiam as moedas na mao.
Mas agora que estava sob a alcada da lei, dizia o chefe, seria aconselhavel aproveitar a ocasiao para o submeter a um exame medico, sem encargos para ele. Portanto segui-ria dali da esquadra para o hospital imediatamente.
O velhote, ao ouvir a decisao tomada pela autoridade, ficou a tremer que nem varas verdes.
— Nao esteja a tremer, homem — disse o chefe — isto
e so para seu bem. Ninguem Ihe fara mal nenhum. Alem
disso o Dr. Albano faz parte da junta medica e zelara pelo
seu bem-estar. 0 Dr. Albano e aquele medico que ja o con-
vidou varias vezes para ir ao seu consultorio e o senhor
nunca compareceu. Sabe quern e o doutor a que me refiro,
de certeza...
— Sei, sei — murmurou o mendigo, numa voz sumida.
E la foi no carro da esquadra, para o hospital.
Ao entrar no quarto onde se encontravam os tres doutores que compunham a junta medica, o pobre velho da Matriz teve que ser amparado para nao cair. O seu estado era chocante de ver. Empalideceu de tal maneira e enfra-queceu tanto que teve de ser reanimado com um fortificante para os medicos poderem prosseguir a sua observacao.
O momento de Ihe tirar o emplastro da vista era para o Dr. Albano um acto de emocionante curiosidade. Iria finalmente ver a cavidade viscosa e repugnante que vinha comendo aquela parte da face do mendigo. Iria, se possivel ainda, diagnosticar o mal e tentar dar-lhe cura ou, pelo menos, aliviar o sofrimento daquele desgracatio, sem nimguem neste mundo.
Removeram a ligadura e emplastro que cobria a vista do miseravel velhote e o que os olhos dos doutores viram era inacreditavel. — Parece impossivel! — exclamaram os tres clinicos ao mesmo tempo, sem poderem despregar os olhos do que tinham na sua frente.
O Dr. Albano era o mais excitado, pois sempre tivera o pressentimento do que iria observar, depois do mendigo se ter subtraido aos seus convites para ir ao seu consultorio. So agora compreendia a razao da sua evasao a exames medicos.
— E fantastico! Simplesmente fantastico! E incrivel!
Como pode um homem viver desta maneira? Valha-nos
Deus!
Afinal a surpresa que se revelou a vista do Dr. Albano e dos seus colegas, que causou tanto espanto, foi o facto do velho da Matriz nao ter absolutamente doenca nenhu-ma sob aquele emplastro que Ihe cobria a vista. Estava sao que nem um pero.
— Mas que grande manhoso! Nunca se viu maneira tao ardilosa de ganhar a vida — comentou o Dr. Albano.
Vivia sozinho num casebre a beira-mar. Ninguem sabia de onde ele viera. Constava que era da Ilha da Madeira. Ali, naquela ilha acoreana, nao Ihe conheciam familia nem amigos. Era apenas um pobre diabo que metia do a quern passava por ele.
Decorreram varies anos, pelo menos dez, e o veihote continuava ao canto defronte da Matriz, sem que o seu es-tado canceroso se alterasse. Nao estava melhor nem pior. Era sempre a mesma coisa. O emplastro sobre o olho direi-to a verter a enxiindia de galinha, pois diziam que ele apli-cava pedacos de carne dos galinaceos para alimentar o can-cro e assim evitar que o fatidico mal alastrasse comendo da sua carne. Esta aplicacao de carne de galinha para evitar o desenvolvimento canceroso era baseado numa crendice do povo. Nao havia o quer que fosse de terapeutico no pressu-posto processo curativo.
Havia mais de dez anos que o povo o via ali, todos os dias, sem que Ihe notassem pioras nem melhoras. Nao morria nem melhorava. Ora, o cancro e uma doenca in-curavel, como todos nos sabemos, e mais cedo ou mais tar-de, quem contrai essa doenca vai parar, infelizmente, a «terra das batatas». Nao parecia ser esse o caso do velho da Matriz. Ja la iam doze anos que por ali se quedava sem dar nada de si. O mal talvez tivesse sido travado pela accao da enxundia de galinha... Certamente a carne dos galina¬ceos tinha qualidades terapeuticas desconhecidas de cien-cia.
Se sempre tinham conhecido aquele pobretao com o emplastro sobre a vista, e sabe Deus ha quanto tempo ele te-ria aquela doenca, antes de aparecer por ali, e ainda estava vivo, e porque, de facto, as postas de carne de galinha fa-ziam bem.
Alguns individuos emitiam opinioes onde transpirava o agrado de verem que o veihote continuava a viver, enquan-to outras pessoas expressavam duvidas quanto a nature/a da doenga. Aos anos que o homenzinho era visto naquele lugar, o quer que era que ele tinha naquele lado da cara nao podia ser cancro, senao ja teria morrido ha muito tem¬po, alvitravam alguns. Mas o que mais admirava era ele
nao se tratar com os medicos. Como estava sempre all na-quele sitio, nao era possivel ir a consultas, pois a sua au-sencia seria notada. Alem disso o pobre desgracado nao te-ria dinheiro para as despesas de tratamento, comentavam os mais curiosos com simpatia pela desventura do men-digo.
Aqueles que Ihe davam esmola, praticamente todos os dias, na sua passagem para os seus empregos, matutavam as vezes acerca do infeliz que eles julgavam vir a abater-se, mais dia menos dia, vitimado pela mais mortifera de todas as doen?as conhecidas. Nao obstante, intimamente, sen-tiam alegria ao verem que o desprotegido da sorte conti-nuava encostado a parede, na sua atitude silenciosa, acei-tando o que Ihe queriam dar, sem que ele Ihes pedisse. Algumas pessoas comentavam umas para as outras, cami-nhando juntas: — O velhote deve estar para pouco. Aos anos que ele sofre daquela maligna e incuravel fistula can-cerosa, e impossivel que dure muito tempo ainda. — Sim, vai-te fiando nessa. Ainda tu es capaz de ir primeiro — ri-postou outro, gracejando. — Deus Ihe de muitos anos de vida, coitado — dizia outro. — Eu e que nao queria estar nas suas condicoes, vivesse pouco ou muito — adiantava outro ainda.
As mulheres, agarradas ao dinheiro como ninguem, eram todavia generosas nas suas esmolas para o velho da Matriz. As senhoras de categoria social mais elevada, se adregavam a passar por ali, nao se Hmitavam a dar-lhe uns cobres, a sua consciencia fazia-as abrir os cordoes a bolsa e metiam-lhe na mao uma nota de vinte ou de dez.
Quando escurecia la ia ele encostado a sua bengalinha, num andar vacilante, a caminho do seu casebre, descansar e contar a sua colheita do vil metal. No dia seguinte reto-mava o seu posto e a regularidade da sua existencia ia-se arrastando na monotonia habitual.
Chegado o Inverno, antes do Natal, desaparecia. Pare-cia hibernar. So tornavam a ve-lo em principios de Marco. A ausencia era justificavel. As inclemencias do tempo in-vernoso impunham aquele retire. E assim se iam passando os anos, sem o velhote dar a alma ao criador.
Um dia um novo medico, novo na idade e novo como formado, chegou a cidade, apos completar o seu internato em Lisboa, e abriu o seu consultorio. Ao ver pela primeira vez o velhote da Matriz ficou bastante impressionado e condoeu-se dele ao ponto de Ihe dar esmola tambem. Teve, porem, o cuidado de examinar superficialmente o seu as-pecto e sentiu vontade de ajudar aquele infeliz. Mas, sem-pre que tinha oportunidade parava junto dele e dava-lhe alguma coisa, enquanto olhava para o seu semblante de forma inquisidora.
Passado algum tempo o Dr. Albano, era este o nome do jovem medico, perguntou ao velhote canceroso se nao se importava de ir ao seu consultorio, que Ihe faria um exa-me de gra?a e, se fosse necessario, ajuda-lo-ia a internar-se no hospital para ser tratado devidamente.
O velhote da Matriz, nome por que era reconhecido por toda a gente do lugar, agradeceu humildemente ao doutor a sua generosidade e prometeu ir visita-lo qualquer dia. Mas os dias e as semanas passaram e o Dr. Albano nunca teve a oportunidade de o ver entrar a porta do seu consul¬torio. O doutor voltou a pedir-lhe para o ver e examinar, sem encargos de especie alguma; ele prometeu mais uma vez ir ter com o filantropo facultative, mas nunca apare-ceu.
O Dr. Albano, mediante a estranha atitude do misera-vel mendigo, trocou algumas impressoes com os seus cole-gas, no clube, e verificou com estranheza que nenhum de¬les tinha ainda observado o indigente pedinte. Perante esta descoberta mais se arreigou na sua mente o proposito de examinar aquele desgracado, cuja relutancia em ser obser¬vado era ja manifesta. Tentou mais uma vez convence-lo a ir ao seu consultorio, num determinado dia e determinada hora, mas em vao. O pressuposto canceroso nao estava disposto a sujeitar-se a uma observafao clinica. Parecia conformado com a sua pouca sorte. Sabia que ia morrer, portanto, nao valia a pena submeter-se a tratamentos e privar-se da sua liberdade ficando encerrado num quarto do hospital.
O Dr. Albano continuou a manter-se firme no proposi-to de o examinar e volta e meia aparecia junto dele a insis-tir para ele ir ao seu consultorio quando Ihe apetecesse, a qualquer hora do dia, durante o horario das consultas. Mas o diabo do velho mantinha-se renitente na sua cas-murrice de nao querer sujeitar-se a ser examinado.
Entretanto saiu uma lei proibindo a mendicidade nas ruas e o Dr. Albano, na sua intencao filantropica, aprovei-tou a nova lei para forcar o pedinte a submeter-se a um exame medico. De acordo com o comandante da policia, a quern o doutor explicou a situacao, o velhote, considerado pedinte, seria preso por infraccao da lei agora vigente e in-ternado no hospital, sob a proteccao do Socorro Social. AH o Dr. Albano, como membro duma junta medica, ac-tuaria de forma a examina-lo e trata-lo devidamente.
Tudo combinado, numa conspiracao altruista e de ca-racter filantropico, o velhote, muito surpreendido, foi ar-rastado para a esquadra da policia e dali conduzido para o hospital, onde a junta medica ja se encontrava a espera.
— Eu nao fiz mal a ninguem, senhores policias. Por
que e que me levam preso?
—Entao o senhor nao sabe que e proibido pedir esmola nas ruas? Pois fique sabendo que e. A lei saiu ha dias para acabar com a pedincha na via publica e o senhor esta in-fringindo essa lei.
— Mas eu nao sabia disso — ripostou o velhote.
— Nao sabia, mas fica sabendo agora — retorquiu um
dos policias. — Possivelmente o nosso chefe nao o retera
preso por mais que um dia ou dois, pois talvez leve em
conta o seu desconhecimento da lei e po-lo-a em liberdade.
Mas tenha paciencia tiozinho, nos temos que fazer o nosso
service. Vamos.
Os policias ignoravam a trama que tinha sido engendra-da pelo doutor e pelo seu comandante. E o pedinte tam-bem estava longe de pensar que tinha caido numa armadi-Iha para ser examinado clinicamente.
Apos ser levado a presenca do chefe da esquadra poli-cial e de ter respondido a varias perguntas corriqueiras, de onde era, como se chamava, se era casado, etc., foi-lhe fei-ta uma preleccao sobre a nova lei que proibia a pedincha pelas ruas e foi abordado quanto a sua doenca. Subtraiu-se a respostas concretas e lamentou-se do seu estado, que ti-nha aquela chaga daquele lado da cara, ja havia anos, e que a trazia tapada para evitar repugnancia as pessoas. Os emplastros com carne de galinha eram urn remedio caseiro que Ihe tinham recomendado e que parecia fazer-lhe bem. Disse mais que nao fazia mal a ninguem e que a lei proibin-do a pedincha nao Ihe era aplicavel porque nunca pedira uma esmola a ninguem. Quem Ihe dava qualquer coisa fazia-o voluntariamente. Ele nunca se dirigira a quern quer que fosse dizendo: — De-me uma esmolinha, por amor de Deus!
Sob este ponto de vista a policia teve que dar a mao a palmatoria. Foi impossivel provar que o velhote estendia a mao a caridade verbalmente. Estava ali ao canto da loja, defronte da igreja, pregado ao chao, encostado a parede todo o dia, sem nunca proferir palavra, a nao ser um obri-gado, quase imperceptivel, quando Ihe metiam as moedas na mao.
Mas agora que estava sob a alcada da lei, dizia o chefe, seria aconselhavel aproveitar a ocasiao para o submeter a um exame medico, sem encargos para ele. Portanto segui-ria dali da esquadra para o hospital imediatamente.
O velhote, ao ouvir a decisao tomada pela autoridade, ficou a tremer que nem varas verdes.
— Nao esteja a tremer, homem — disse o chefe — isto
e so para seu bem. Ninguem Ihe fara mal nenhum. Alem
disso o Dr. Albano faz parte da junta medica e zelara pelo
seu bem-estar. 0 Dr. Albano e aquele medico que ja o con-
vidou varias vezes para ir ao seu consultorio e o senhor
nunca compareceu. Sabe quern e o doutor a que me refiro,
de certeza...
— Sei, sei — murmurou o mendigo, numa voz sumida.
E la foi no carro da esquadra, para o hospital.
Ao entrar no quarto onde se encontravam os tres doutores que compunham a junta medica, o pobre velho da Matriz teve que ser amparado para nao cair. O seu estado era chocante de ver. Empalideceu de tal maneira e enfra-queceu tanto que teve de ser reanimado com um fortificante para os medicos poderem prosseguir a sua observacao.
O momento de Ihe tirar o emplastro da vista era para o Dr. Albano um acto de emocionante curiosidade. Iria finalmente ver a cavidade viscosa e repugnante que vinha comendo aquela parte da face do mendigo. Iria, se possivel ainda, diagnosticar o mal e tentar dar-lhe cura ou, pelo menos, aliviar o sofrimento daquele desgracatio, sem nimguem neste mundo.
Removeram a ligadura e emplastro que cobria a vista do miseravel velhote e o que os olhos dos doutores viram era inacreditavel. — Parece impossivel! — exclamaram os tres clinicos ao mesmo tempo, sem poderem despregar os olhos do que tinham na sua frente.
O Dr. Albano era o mais excitado, pois sempre tivera o pressentimento do que iria observar, depois do mendigo se ter subtraido aos seus convites para ir ao seu consultorio. So agora compreendia a razao da sua evasao a exames medicos.
— E fantastico! Simplesmente fantastico! E incrivel!
Como pode um homem viver desta maneira? Valha-nos
Deus!
Afinal a surpresa que se revelou a vista do Dr. Albano e dos seus colegas, que causou tanto espanto, foi o facto do velho da Matriz nao ter absolutamente doenca nenhu-ma sob aquele emplastro que Ihe cobria a vista. Estava sao que nem um pero.
— Mas que grande manhoso! Nunca se viu maneira tao ardilosa de ganhar a vida — comentou o Dr. Albano.
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