(E com direito a Jorge Amado)
Ao som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente - embora já dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas - de reler o poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duino. E o que tenho a dizer é o seguinte: poucos seres tão poéticos nasceram nunca de uma mulher. Pouquíssimos, como esse Grande Enfermo, viveram tanto em poesia e se abandonaram mais fundamente, náufrago irremediável, à avidez de suas águas onde o esperava o indizível abandono.
Ao som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente - embora já dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas - de reler o poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duino. E o que tenho a dizer é o seguinte: poucos seres tão poéticos nasceram nunca de uma mulher. Pouquíssimos, como esse Grande Enfermo, viveram tanto em poesia e se abandonaram mais fundamente, náufrago irremediável, à avidez de suas águas onde o esperava o indizível abandono.
Nunca vida humana fechou-se mais completamente dentro de uma mística. Chega a ser impressionante. Rilke passou, como aquele "afogado pensativo", a descer os "azuis verdes" dos céus e dos rios que a visão de Jean-Arthur Rimbaud confundiu no seu poema "Le Bateau Livre". O poeta viveu em transe poético constante, amargurando seu espírito contra todos os temas da Vida, do Amor e da Morte, a que piedosamente amou como uma única entidade.
Sua simplicidade como poeta nasce dessa longa tortura lírica de ver a morte como um amadurecimento da vida, numa total compensação. Rilke acreditava que a morte nasce com o homem, que este a traz em si tal uma semente que brota, faz-se árvore, floresce e frutifica ao se despojar do seu alburno humano. Seus poemas menores vencem lentamente todos esses "graus do terrível", num crescimento espontâneo para a grande eflorescência, de onde penderão os melhores frutos, desejosos de renovação na terra.
Em 1910 Rilke terminava os seus famosos Cadernos de Malte Laurids Brigge, onde contou, com uma beleza raras vezes alcançada em prosa, a história elegíaca da destruição de um ser votado à fatalidade irremediável da mágoa. Porque é mágoa, mais que angústia, o que colhemos dessa narrativa: a mágoa do mal-entendido humano, o solilóquio desolador do homem desajustado à vida. A qualidade do sofrimento que lhe vem dessa torturante criação, como que lhe afina ainda mais a sensibilidade, já de si tão aguçada para todos os sussurros da poesia. O poeta pena, como penou por um momento o Cristo, da coexistência íntima da dúvida e da certeza, enquanto vagueia, morbidamente enfraquecido pela doença, pelos lugares que mais ama na Europa: Paris, a Rússia e os países escandinavos, intermitentemente.
Em fins de 1911, instado pelos príncipes de Tour e Taxis, Rilke vai passar sozinho o inverno no Castelo de Duino. Um belo dia de janeiro, passeando às bordas de um penhasco sobre o Adriático, diz ter ouvido no vento o mistério de uma voz que lhe dizia: "Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?" Eriçado, e ao mesmo tempo atônito com o milagre dessas palavras que lhe surgiam com a própria poesia desejada, o poeta as anotou e, nesse mesmo dia, escrevia o primeiro movimento desse bloco sinfônico a que chamou Elegias de Duíno. Tão temperados se achavam nele os motivos da obra em perspectiva que, em poucos dias, escrevia a segunda da série e o começo de quase todas as outras.
Mas o impulso cessou. Por dez anos Rilke calou-se, à espera de que nele as palavras encontrassem seu lugar exato no grande puzzle poético que se desencadeara. Em Paris, na Espanha e em Munique acrescentou fragmentos a algumas das elegias, sofrendo terrivelmente da descontinuidade com que a poesia se revelava. E não seria senão depois da Primeira Grande Guerra, no seu refúgio da Suíça, em Muzot, que num sopro de criação poucas vezes igualado, só comparável talvez a certos instantes de música e de pintura em Miguelangelo e Beethoven, escreveria em três semanas as oito elegias restantes, Os 55 Sonetos a Orfeu e vários outros poemas a que chamou Fragmentarishes. Fora o último espasmo de vida nesse eterno, sereno moribundo. A Morte, sua amiga, desobjetivava-o poucos anos depois, como "um rio que leva". Rilke recusou o médico: queria morrer a sua morte.
Mas, depois, o mal-estar em que me deixou essa combinação de Rilke e Sarah Vaughan... Foi quando tive a boa idéia de ler tua novela A morte e a morte de Quincas Berro D'água, Jorge. Que mortes tão diferentes... Que beleza, Jorge, que beleza!
NR/ Rainer Maria Rilke, por vezes também Rainer
Maria von Rilke (Praga, 4 de dezembro de 1875 — Valmont, Suíça, 29 de dezembro de 1926) foi um poeta de língua alemã do século XX. Escreveu
também poemas em francês.
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Biografia
Nasceu em Praga, na República Tcheca, então pertencente ao Império Austro-Húngaro, e mudou seu nome, originalmente René, para Rainer.
Rilke fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894 fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de amor,
intitulados Vida e canções (Leben
und Lieder). Não exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, sempre, à custa
de amigas nobres.
Alguns anos depois, em 1899, Rilke
viajou para a Rússia a convite de Lou Andreas-Salomé, a escritora e depois psicanalista, filha de um
general russo, e que foi sua amante por longos anos. Sua passagem pela Rússia imprimiu uma inspiração religiosa em seus poemas. Rilke passou a
enxergar a natureza, dadas as dimensões e exuberância das paisagens russas,
como manifestação divina presente em todas as coisas. Sobre este aspecto
publicou em 1900a coleção Histórias do bom Deus.
Em 1901 casou com Clara Westhoff, da qual logo se separou. O
século XX trouxe para a poesia de Rilke um afastamento do lirismo e dos simbolistas franceses com os quais ele se identificara. Em 1905, publicou O Livro das Horas de grande repercussão à época. Nesta
obra, seus poemas já apresentavam um estilo concreto, bem característico desta
sua fase.
Rainer Maria
Rilke por Emil Orlik (1917)
Em 1902 foi para Paris,
onde trabalhou como secretário do escultor Auguste Rodin entre 1905 a 1906. Rodin exerceu grande influência sobre o poema de Rilke,
que se reflete em suas publicações de 1907 a 1908.
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, Rilke
morava em Munique e lá permaneceu durante todo o conflito. Antes de se mudar para Munique, ele viveu
na região do Trieste e publicou, em 1913, a A vida de Maria (Das Merien Leben) e iniciou a
redação de Elegias de Duíno (Duineser Elegien), texto que
só viria a ser publicado em 1923. Duíno era
um castelo na região deTrieste, Itália, onde Rilke
morou por dois anos antes da Guerra, a convite da princesa Maria von Thurn
und Taxis. Após o conflito na Europa, Rilke mudou-se para a Suíça, a última
de suas pátrias de eleição, onde viveu até morrer.
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