Gilbert Welch*
Para
a maioria dos americanos, a principal ameaça à saúde não é a gripe aviária, a
febre do Nilo ou o mal da vaca louca. Mas sim o próprio sistema de saúde. Você
pode pensar que isso é porque os médicos cometem erros (sim, nós erramos). Mas
você jamais será vítima de um erro médico se você não está no sistema. A maior
ameaça apresentada pela medicina americana é o fato de cada vez mais estarmos
nos afundando nesse sistema, não por uma epidemia de doenças, e sim por uma
epidemia de diagnósticos. Apesar de os americanos viverem mais do que nunca,
cada vez mais nos falam que estamos doentes. Como isso é possível? Um dos
motivos é que nós (americanos) empregamos mais recursos aos cuidados médicos
que qualquer outro país. Parte deste investimento é produtivo, cura doenças e
alivia sofrimentos. Mas isso também nos conduz a cada vez mais diagnósticos,
uma tendência que se transformou em epidemia.
Essa
epidemia é uma ameaça à saúde e tem duas fontes distintas. Uma delas é a
‘medicalização’ da vida cotidiana. A maioria de nós passa por sensações físicas
ou psicológicas desagradáveis que, no passado, eram consideradas
como parte da vida. No entanto, hoje tais sensações são consideradas, cada vez mais, como sintomas de doenças. Eventos como insônia, tristeza, inquietação de pernas e diminuição do apetite sexual, hoje, se transformam
em diagnósticos: distúrbio do sono, depressão, síndrome de pernas inquietas e disfunção sexual. Talvez ainda mais preocupante seja a medicalização da infância. Se uma criança tossir depois de fazer exercícios, ela tem asma. Se tiver problemas com leitura, é disléxica. Se estiver infeliz, tem depressão. Se alternar entre euforia e tristeza, tem distúrbio bipolar. Se por um lado esses diagnósticos podem beneficiar algumas pessoas com sintomas graves, por outro é necessário ponderar o real efeito de tais sintomas, que em muitos casos são brandos, intermitentes ou transitórios.
como parte da vida. No entanto, hoje tais sensações são consideradas, cada vez mais, como sintomas de doenças. Eventos como insônia, tristeza, inquietação de pernas e diminuição do apetite sexual, hoje, se transformam
em diagnósticos: distúrbio do sono, depressão, síndrome de pernas inquietas e disfunção sexual. Talvez ainda mais preocupante seja a medicalização da infância. Se uma criança tossir depois de fazer exercícios, ela tem asma. Se tiver problemas com leitura, é disléxica. Se estiver infeliz, tem depressão. Se alternar entre euforia e tristeza, tem distúrbio bipolar. Se por um lado esses diagnósticos podem beneficiar algumas pessoas com sintomas graves, por outro é necessário ponderar o real efeito de tais sintomas, que em muitos casos são brandos, intermitentes ou transitórios.
Outra
fonte é o empenho por descobrir doenças o quanto antes. Diagnósticos eram
usualmente restritos a moléstias graves. Hoje, no entanto, nós diagnosticamos
doenças em pessoas que absolutamente não apresentam sintomas,
os famosos ‘grupos de risco’ e as pessoas com ‘predisposição’ . Dois progressos aceleram esse processo. Em primeiro lugar, a avançada tecnologia permite que os médicos olhem profundamente para as coisas que estão erradas. Nós podemos detectar marcadores no sangue. Nós podemos direcionar aparelhos de fibra ótica dentro de qualquer orifício. Além disso, tomografias computadorizadas, ultrassonografia, ressonâncias magnéticas e tomografias por emissão de pósitrons permitem que os médicos exponham, com precisão, tênues defeitos estruturais do organismo.
os famosos ‘grupos de risco’ e as pessoas com ‘predisposição’ . Dois progressos aceleram esse processo. Em primeiro lugar, a avançada tecnologia permite que os médicos olhem profundamente para as coisas que estão erradas. Nós podemos detectar marcadores no sangue. Nós podemos direcionar aparelhos de fibra ótica dentro de qualquer orifício. Além disso, tomografias computadorizadas, ultrassonografia, ressonâncias magnéticas e tomografias por emissão de pósitrons permitem que os médicos exponham, com precisão, tênues defeitos estruturais do organismo.
Essas
tecnologias tornam possíveis quaisquer diagnósticos em qualquer pessoa: artrite
em pessoas sem dores nas juntas, úlcera em pessoas sem dores no estômago e
câncer de próstata em milhões de pessoas que, não fosse pelos
exames, viveriam da mesma forma e sem serem consideradas pacientes com câncer. Em segundo lugar, as regras estão mudando. Conselhos de especialistas, constantemente, expandem os conceitos de doenças: todos os valores de referência para o diagnóstico de diabete, hipertensão, osteoporose e obesidade caíram nos últimos anos. O critério utilizado para considerar o nível de colesterol normal despencou múltiplas vezes. Com estas mudanças, doenças agora são diagnosticadas em mais da metade da população. A maioria de nós acredita que estes diagnósticos adicionais sempre beneficiam os pacientes. E alguns, de fato, são benéficos. Mas, por fim, a lógica das detecções antecipadas é absurda. Se mais da metade de nós está doente, o que significa estar ‘normal’? Muitos de nós estamos predispostos – e em algum dia podemos ficar doentes – e todos nós somos dos ‘grupos de risco’. A medicalização na vida cotidiana é muito problemática. O que, exatamente, estamos fazendo com nossas crianças, uma vez que 40% das que vão acampar estão sujeitas a uma ou mais prescrições crônicas de medicamentos?
exames, viveriam da mesma forma e sem serem consideradas pacientes com câncer. Em segundo lugar, as regras estão mudando. Conselhos de especialistas, constantemente, expandem os conceitos de doenças: todos os valores de referência para o diagnóstico de diabete, hipertensão, osteoporose e obesidade caíram nos últimos anos. O critério utilizado para considerar o nível de colesterol normal despencou múltiplas vezes. Com estas mudanças, doenças agora são diagnosticadas em mais da metade da população. A maioria de nós acredita que estes diagnósticos adicionais sempre beneficiam os pacientes. E alguns, de fato, são benéficos. Mas, por fim, a lógica das detecções antecipadas é absurda. Se mais da metade de nós está doente, o que significa estar ‘normal’? Muitos de nós estamos predispostos – e em algum dia podemos ficar doentes – e todos nós somos dos ‘grupos de risco’. A medicalização na vida cotidiana é muito problemática. O que, exatamente, estamos fazendo com nossas crianças, uma vez que 40% das que vão acampar estão sujeitas a uma ou mais prescrições crônicas de medicamentos?
Ninguém
deveria adotar a conduta de transformar pessoas em pacientes, ainda que sem
gravidade. Isto gera grandes prejuízos. O fato de rotular pessoas como doentes
pode deixá-las ansiosas e vulneráveis, em especial as crianças.
Mas
o principal problema é que a epidemia de diagnósticos conduz a uma epidemia de
tratamentos. Nem todos os tratamentos têm reais benefícios, mas quase todos
podem ter prejuízos. Algumas vezes os prejuízos são conhecidos,
no entanto, freqüentemente os prejuízos de algumas terapias levam anos para serem descobertos, após muitas pessoas já terem sido expostas aos malefícios.
no entanto, freqüentemente os prejuízos de algumas terapias levam anos para serem descobertos, após muitas pessoas já terem sido expostas aos malefícios.
Para
pacientes com doenças severas, estes malefícios, geralmente, perdem a
importância diante dos potenciais benefícios. Mas para pacientes com sintomas
mais brandos os malefícios são muito mais relevantes. Além disso,
para pacientes rotulados como ‘predispostos’ ou de ‘grupos de risco’ que estão destinados a permanecer saudáveis, o tratamento só pode causar prejuízos.
para pacientes rotulados como ‘predispostos’ ou de ‘grupos de risco’ que estão destinados a permanecer saudáveis, o tratamento só pode causar prejuízos.
A
epidemia de diagnósticos tem muitas causas. Mais diagnósticos significa mais
dinheiro para a indústria farmacêutica, hospitais, médicos e advogados.
Pesquisadores e até mesmo organizações federais de medicina asseguram suas
posições (e financiamentos) promovendo a descoberta de ’suas’ doenças. Preocupações
médico-legais também conduzem à epidemia. Se por um lado uma falha no
diagnóstico pode ser objeto de uma ação judicial, por outro não existe qualquer
punição para diagnósticos exacerbados. Além disso, o que os clínicos menos têm
dificuldade de fazer é diagnosticar desenfreadamente, mesmo quando existem
dúvidas de se diagnosticar, ou não, realmente vai ajudar nossos pacientes.
Desta
forma, quanto mais nos falam que estamos doentes, menos nos dizem que estamos
bem. As pessoas precisam ponderar sobre os riscos e benefícios da ampliação de
diagnósticos. A questão principal a ser enfrentada é sobre ser
ou não um paciente. E os médicos precisam relembrar do valor que tem ou não um paciente. E os médicos precisam relembrar do valor que tem assegurar a uma pessoa que ela não está doente. Talvez se devesse começar a estudar uma nova medida de saúde: a proporção da população que não precisa de cuidados médicos. E as instituições nacionais de saúde poderiam propor uma nova meta para os pesquisadores: reduzir a demanda de serviços médicos, ao invés de aumentá-la.
ou não um paciente. E os médicos precisam relembrar do valor que tem ou não um paciente. E os médicos precisam relembrar do valor que tem assegurar a uma pessoa que ela não está doente. Talvez se devesse começar a estudar uma nova medida de saúde: a proporção da população que não precisa de cuidados médicos. E as instituições nacionais de saúde poderiam propor uma nova meta para os pesquisadores: reduzir a demanda de serviços médicos, ao invés de aumentá-la.
* Gilbert Welch é autor da obra Should I Be Tested for Cancer?
Maybe Not and Here’s Why (University of California Press). Lisa Schwartz e
Steven Woloshinsão pesquisadores sêniores do VA Outcome Group em White River
Junction.
Este artigo foi publicado no jornal The New York Times.
Tradução: Daniel de Menezes Pereira.
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