sábado, 3 de agosto de 2013

O REVOLVER DO SENADOR


O Senador ainda estava na cama, lendo calmamente os jornais, e eram dez horas da manhã. Súbito ouve a voz do netinho de quatro anos de idade por detrás da folha aberta, bem junto de sua cabeça:
– Vovô, eu vou te matar.

Abaixou o jornal e viu, aterrorizado, que o menino empunhava com as duas mãos o revólver apanhado na gaveta da cabeceira.  Sempre tivera a arma ali ao seu alcance, para qualquer eventualidade, carregada e com uma bala na agulha. Nunca essa eventualidade se dera na longa seqüência de riscos e tropeços que a política lhe proporcionara. No entanto, ali estava, agora, apanhado de surpresa, sob a mira de um revólver. O menino começou a rir de sua cara de espanto.
– Eu vou te matar – repetiu, dedinho já no gatilho.
O menor gesto precipitado e a arma dispararia.
Pensou em estender o braço e ao menos afastar o cano de sua testa, que já começava a porejar suor. Mas temeu o susto da criança, o dedo se contraindo no gatilho... Tentou falar e de seus lábios saíram apenas sons roufenhos e mal articulados.
– Não me mata não – gaguejou, afinal: – você é tão bonzinho...
– Pum! Pum! – e o demônio do menino sempre a rir, só fez dar um passo para trás; que o colocou fora de seu alcance. Agora estava perdido.
– Cuidado, tem bala... – deixou escapar, e a voz de novo lhe faltou. Toda uma vida que terminava ali, estupidamente nas mãos de uma criança – de que adiantara?  Tudo aflição de espírito e esforço vão. Se alguém entrasse no quarto de repente, a mãe, a avó do menino... Que é isso, menino! Você mata seu avô! Com o susto... Senti o pijama já empapado de suor. Era preciso fazer alguma coisa, terminar logo com aquela agonia. Estendeu mansamente o braço trêmulo:
– Me dá isso aqui...
– Mãos ao alto! – berrou o menino, ameaçador, dando passo para trás, e as mãos pequeninas se firmaram ainda mais no cabo da arma. O Senador não teve outra coisa a fazer senão obedecer.
E assim se compôs o quadro grotesco: o velho com os braços erguidos, o guri a dominá-lo com o revólver. De repente, porém, o telefone tocou.
– Atende aí ­– pediu o Senador, num sopro.
Estava salvo: o menino tomou do fone, descobrindo brinquedo novo, e abaixou o revólver. O Senador aproveitou a trégua para apoderar-se da arma. Então pôs-se a tremer, descontrolado, enquanto retirava as balas com os dedos aflitos. O menino começou a chorar:
– Me dá! Me dá!
A mulher do senador vinha entrando:
–O que foi que você fez com ele? Está com uma cara esquisita... Que aconteceu?
– Acabo de nascer de novo – explicou simplesmente.

                                                    Fernando Sabino

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