segunda-feira, 2 de setembro de 2013

ARIGOFE, ANACREON E MARIANO: TRÊS NOMES E UMA HISTÓRIA


Assim era Salvador

Texto de Luiz Carlos Facó, do seu livro Memórias a Conta-Gotas*


- Vamos lá, pessoal, é hora de rezar!
Para muitos, era hora de vadear. Para ele, de oração. Oração da qual vivia.
Com tal vocativo, Arigofe sinalizava o início do carteado em sua cumbuca, situada confronte à Sinuca do Abel e do Rumba Dancing,  ao lado da Rua Chile, aberta ao arrepio da lei, pois o jogo fora banido, logo após a redemocratização do país, pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, capitulando-o como contravenção penal.

Mas, para aquele negro de pernas arqueadas que lhe tiravam do prumo ao caminhar, fazendo-o cambar, a cada passo, à esquerda e à direita, tais quais navios do ITA – Itaimbé, Itanagé, Itaquicé – no ir e vir entre o norte e sul do litoral brasileiro, enfrentado mares mexidos, descumprir a lei era-lhe imperioso.
Seu DNA o obrigava, pois constituído dos naipes de paus, ouros, copas, espadas e dos valores estabelecidos, hierarquicamente, pelas emblemáticas figuras exibidas no anverso das cartas: valetes, damas, reis, ases e coringas.  
Dono de maneirismos próprios à realeza britânica, vestido, impecavelmente, de tropical inglês, cabeça recoberta por chapéu de feltro, irradiando simpatia e expelindo a fumaça advinda de um inseparável charuto mantido entre os dentes, Arigofe tornou-se figura irremovível do nosso folclore. Deixava ver a todos que, ao fumar um Havana, estava em tempo de vacas gordas. Ao pitar um Danneman ou um Suerdieck, enfrentava os rigores do estio da sorte. E, se baforava um daqueles enrolados nas coxas sensuais das charuteiras de Cruz das Almas, é porque atravessava as vicissitudes proporcionadas pelos golpes cruéis e imprevisíveis das cartas, que tanto amava e das quais dependia.
Sim, o Arigofe de quem falo e descrevo é o mesmo eternizado por Jehová de Carvalho, chamando-o de “a verdade da madrugada”. Pintado como um homem sofrido, suportando “mais de meio século de Bahia sobre os ombros e nos olhos vermelhos de manhãs imprevistas à cabeceira das mesas de bacará e roleta, pôquer e biribas; ele, o manso ancião que traz, nas fibras e no sangue, a resignação dos seus ancestrais africanos...” e louvado por Jorge Amado em alguns dos seus romances.
Um pretenso crupiê aposentado, à revelia, por quem nunca se deu conta do fantástico mundo das cartas. 
Quando o conheci, já se constituía numa personagem mítica e controversa do universo mundano de Salvador.
Apesar dos amigos feitos, em todos os vieses sociais, Arigofe colecionou desafetos poderosos, que dele afirmavam: é um trambiqueiro. Capaz de manipular as cartas de forma a dar um four de damas ao adversário, reservando para si um de ases.
Na verdade, utilizando-se desses reprováveis recursos, nunca foi flagrado e abespinhava-se, quando indagado se desse expediente aproveitava-se. Dava como resposta:
- Jamais! Conheço todas as “mutretas”, ardis e trapaças passíveis de se aplicarem no carteado. Não sou nenhuma Fada Sininho. Contudo, arrenego-as. Iansã, minha mãe, é testemunha. Por isso, vivo os altos e baixos de qualquer jogador. Quando a sorte bafeja-me, tenho vida nababesca, acaso abandonado por ela, roo beira de sino.
Se na vida profissional enfrentava o risco, as subidas e descidas que a aventura do jogo proporciona, atropelos ao seu caráter, na boemia era um vitorioso. Os donos da noite, para citar só dois, Faleiro e Sandoval, abriam as portas de suas casas – Varandá e Restaurante Faleiro – a ele, que desfrutava da cortesia sem mãos a medir. Comia e bebia do melhor, levando, como sobremesa, para degustar no “castelo” mais próximo, uma bonita e gostosa mulher que ali encontrasse.  Fazia jus à fama de grande amante que corria légua de beiço, impulsionada pelo tititi dos seus xodós ao afirmarem: é um retado. Faz um “minete” como bem poucos. É do ramo, sabe tudo que as mulheres apreciam.  Em matéria de sexo, é um porreta, é o Kama Sutra personificado. Distinções e comentários que davam azo à abordagem dos invejosos:
- Você pratica “minete”, Arigofe? Essa porcaria, essa imoralidade?
Ao que ele, revestido da sua proverbial fleuma, retrucava:
- Se o Dr. Estácio de Lima, nosso cientista mor a preconiza, porque eu, um negro sem eira nem beira, haveria de amaldiçoar ou desprezar tal prática? Quanto a ser imoral, fique com o ensinamento de outro jovem cientista, Dr. Elsimar Coutinho: “Sexo é sexo e moral é moral”.   
***
Dos seus muitos janeiros, recordados com intensidade, gabava-se orgulhoso. Só um deles descarrilava das loas entoadas aos demais. Aquele em que ouviu, inerte e pasmo, do gerente do Cassino Palace Hotel, a dolorosa frase:
- Anacreon, você está despedido. O jogo acabou, foi proibido. A casa vai ser fechada.
Duro golpe para quem sempre vivera da profissão de crupiê e nada mais sabia fazer nesta vida de meu Deus.
Quando o vi pela primeira vez, sua figura impressionou-me, sobremodo. Apesar da idade que lhe embranquecia a basta cabeleira, desafiava a gravidade mantendo o corpo, surrado pelo tempo, ereto como o de um soldado em formação. Supunha que a altivez da posição lhe conferisse poder superior ao daqueles que o rodeavam. Apesar desse senão, dessa arrogância expressada pelo físico, Anacreon e não Anacleon, como muitos insistiam em chamá-lo, o que o irritava profundamente, era um homem que só fazia amigos.
Sem ser subserviente, tinha o dom de agradar a quem dele solicitava favores, habituado que estava em atender e recepcionar os clientes que se acercavam das mesas de bacará e Black Jack sob sua batuta.    
- Ora, faz favor, como podem confundir Anacreon com Anacleon. Anacreon foi poeta grego, um dos nove líricos mais copiados da antiguidade, cujos versos cantavam as musas, o amor e Dionísio. E quem será esse Anacleon? - dizia, irreverentemente, àquele que, propositadamente ou não, a ele se dirigia, mudando-lhe o prenome. 
Outra das suas características era a exacerbada vaidade.
- Se não cuidar das mãos, do cabelo e do corpo, pôr-me minimamente elegante e perfumado, como poderia atender o senhor Pamphillo de Carvalho? O casal Jorge e Maria do Carmo Corrêa Ribeiro, a senhora Amélia Campos – mãe do famoso tapeceiro Rubico Campos, aluno do mestre Jean Luçart, e da primeira professora da Escola Politécnica da Bahia, Lolita Campos – mais conhecida por madame zero, pela obsessão de só jogar na roleta aquele número? - arengava, sempre que qualquer interlocutor insinuava seu narcisismo.
Ademais, Anacreon tinha uma vexação incontida pela discrição. Ninguém o tirava do mutismo para revelar uma leviandade sobre outrem, mesmo que fosse alguma de domínio público. Posso afirmar: jamais conspurcou sua biografia, tampouco maculou quaisquer versos da sua poesia, como diria um poeta inspirado.
Por todas essas qualificações, fez-se gerente do Clube Euterpe, no corredor da Vitória, onde jogava a fina flor da sociedade local representada por: Pamphillo de Carvalho, Plínio Rizério, Estácio de Lima, Liberato de Carvalho, Hanequim Dantas, José Carlos Valério, José Carlos Facó, Joilson Góes, dentre outros.
A esse amigo de Vadinho e Mirandão, embora ignore o paradeiro, saúdo – como fez Jorge Amado em seus livros – conquanto desconfie dele ter se homiziado numa galáxia onde a jogatina impere, o dinheiro tilinte e a magia das cartas, sem manipulações inconfessas, aconteça.
Enveredo por esse caminho não só pela admiração que por ele nutria, também por ser parte da história soteropolitana, que irei contar adiante.
É ler para conferir.    

***

Nas rodas da jogatina, todos o conheciam. Era Mariano pra lá, Mariano pra cá.  Eu só fui conhecê-lo na casa do alfaiate italiano, Ercole Politano, que, diariamente, recebia os endinheirados baianos para noitadas de jogos de azar: pôquer, pife-pafe, pontinho, biriba, canastra, batidinha e outros quês tais.
Nessa época, ele era um simples parceiro. Embora havido como profissional do metier, era aceito por aquele extrato social em função da sua conduta exemplar e da sua correção no trato com o baralho.
Homem de poucas palavras, de muito siso e pouco riso, granjeara, com tal postura, versatilidade e talento para atuar em qualquer tipo de jogo, a confiança de todos os parceiros, que o disputavam para formar dupla, quer no biriba quer na canastra.
Da sua vida, conheci pouco. Contentava-me sabê-lo paraibano, amante de Salvador, nela quedado até morrer e viver do jogo, do qual era considerado assíduo ganhador e da venda de artigos estrangeiros, preferencialmente, relógios de marcas famosas, como Patek Felippe, Rolex, Cartier.
Confesso que, algumas vezes, me detive analisando-o. Intrigava-me vê-lo tão soturno, como se estivesse todo o tempo imerso em si mesmo.  Incapaz de um sorriso largo, de exteriorizar emoções, sem o toque de ânimo rebentado do amanhecer de um dia radioso. Constatações que me levaram concluir ter ele esse proceder como ferramenta para estudar os adversários.
Quanto mais os conhecesse, estivesse senhor de seus sestros, das suas reações, dos seus tiques nervosos, mais apropriadamente poderia enfrentá-los numa parada arriscada, ambição de cada jogador.
Era essa, concluí satisfeito, a razão daquele recolhimento, do olhar fixo pousado nos olhos dos adversários que procuravam os seus, mas não os encontravam por estarem sempre escondidos pelas lentes escuras de seus óculos. Assim agindo, presumo, ele conhecia as fraquezas dos seus contendores, vedando a eles intimidade com as suas. Acaso levemos em consideração que é através do olhar que se conhecem os homens.
Desse dia a dia, em que especulava a esperança de ser protagonista de um espetacular golpe de sorte, Mariano não se afastava. Ou melhor, só se deixava desviar quando os cinemas anunciavam passar as fitas mexicanas da Pelmex, estreladas por Arturo de Cordoba e Libertad Lamarque, Ninon Sevilla, Maria Felix, Pedro Armendariz e o Tabaris Night Club, que, com fanfarras, exibia espetáculos estrelados pelas maiores vedetes brasileiras: Virgínia Lane, Luz Del Fuego, Nélia Paula, Salomé Parísio, Mara Rúbia, Wilza Carla, Anilza Leone, Renata Fonzi e as certinhas do Stanislaw Ponte Preta.  Fora dessas escapadelas visuais, quiçá homenagem à beleza feminina, nada o fazia deixar de cumprir, até com certa exaustão, o exercício profissional do carteado.
De fácil diálogo, esse cabra macho vindo da terra do NEGO, tinha, fora da rinha, gestos cavalheirescos. Emprestava dinheiro aos parceiros quebrados, sem exigir-lhes juros, prazo para pagamento, sequer a assinatura de qualquer recibo probatório do empréstimo. Aconselhava aos trouxas abandonarem o pano verde, impedindo, muitas vezes, que se metessem em camisas de onze varas. Fazia-se perdulário ao distribuir gorjetas ou capilés. Afora externar advertências aos neófitos para que se acautelassem e não se lambuzassem do sonho de ganhar dinheiro com as cartas entre as mãos. Elas são madrastas, segundo Shakespeare: “o destino é o que baralha as cartas, mas nós somos os que jogamos”, repetia ele em tom compassivo e professoral.
Como deu com o costado na Bahia não dizia. Aproveitadores desse silêncio, com os pés no estribo da má fé, asseguravam: foi tangido da terra natal, catapultado. Outros, menos inconsequentes, diziam ser responsável por aquela migração seu amor por uma bunda escultural de uma certa dama baiana. A maioria debitava ao Circo Fequetti, que sazonalmente passava pela cidade, nos idos da década de quarenta, do século passado, a responsabilidade do feito, por tê-lo demitido do seu quadro artístico, no final de uma das suas temporadas em nossa terra. Sem ter como voltar ao torrão natal por falta de dinheiro, homiziara-se, em Salvador, na residência do humorista Zé Coió, então ídolo da cidade, também vítima de ação semelhante do mesmo circo.
Fazer a vida em Salvador lhe pesou, mas não lhe pesaram as manchas das safadagens do meio onde mourejava. Tanto assim que, após a morte do velho Politano, tornou-se, juntamente com Agenor Pitta Lima, rei do jogo do bicho em Salvador, dono da cumbuca mais famosa de nossa terra.
***
Naquela noite parecia que o diabo estava solto. Pés redondos, chifres, cheiro de enxofre, não faltaram aos temerosos e assustados parceiros, que disseram vê-los e senti-los. A casa de Politano efervescia acicatada pelo jogo, com apostas inacreditáveis. Na verdade, paradas milionárias entrecortadas por desentendimentos orquestrados, de quando em quando, pelos jogadores frustrados ou vencidos, com os pés afundados no desespero da falência ou antevendo a venda de um bem para pagar o prejuízo do golpe sofrido, mas não assimilado.
Para diminuir toda aquela tensão, Politano ordenara Yolanda, sua esposa, servir a janta. Lauta, por sinal, e regada por vinhos franceses e italianos, uísque escocês e finos licores. Providência ineficaz, porquanto as discussões foram retomadas nas diversas mesas existentes, onde o banquete era servido. Os ganhadores faziam apologia das suas jogadas e, pouco caso, da má sorte dos adversários. Estes, em contraponto, escarneciam ou punham em dúvidas a lisura das intervenções daqueles. Numa contenda em que ninguém se entendia ou pretendia, resultante do empobrecimento de alguns e do crescimento da conta bancária doutros tantos.
Foi em meio a essa balburdia, que, quando não administrada com as filigranas diplomáticas, pode se degenerar em graves conflitos, como soí acontecer em casas que se dedicam a esse tipo de empreendimento ou entretenimento, onde as emoções e o dinheiro se confundem ou se antagonizam perigosamente, que apareceu Pedro Dias, acompanhado de um desconhecido.
Convidado para jantar, aquiesceu, tendo o cuidado de antes apresentar o companheiro.
- Pessoal, este é Belisário Maciel, recomendado de Washington Setenta, nosso companheiro de jogatina. Vive nas bandas de Ilhéus, plantando e colhendo cacau. Solta rojões acendendo o pavio com notas de quinhentos mil réis. Conheci-o hoje e, tão logo tive esse prazer, soube da sua fascinação pelo jogo. Trago-lhes, pois, mais um parceiro, sangue novo e do bom, cujo baú onde guarda seu tesouro pode baixar de nível, mas não definha, por ser lastreado em ouro.   
Aquela intervenção foi oportuna porque os ânimos arrefeceram. Os perdedores, humildíssimos pela situação, procuraram os ganhadores para compor suas dívidas. Esses até negaceavam, mas, ao final, alegando ato de grandeza, aceitavam cheques pré-datados, mesmo notas promissórias numa concordância geradora de brindes com champanha Veuve Clicquot.
Desarmadas as diabólicas tramas do belzebu do dia, a parceirada escafedeu-se. Alguns deles satisfeitos, mesmo embolsando papéis de crédito, cujo resgate se prenunciava difícil. Outros, por terem procrastinado suas derrocadas. Enfim, todos se faziam conscientes de que, no jogo, mais valem as vitórias em si mesmas do que os seus efetivos resultados financeiros, sujeitos à preamar da sorte ou à vazante do azar.
Dispersos, capituladores e capitulantes daquela arena do pano verde, restaram na casa Anacreonte, Mariano, Arigofe, Pedro Dias – irmão de Heitor, Prefeito de Salvador – boêmio professo, jogador inveterado, esparramando inteligência, o desconhecido Belisário Maciel e um parceiro de nome Juvenal, cujas características se constituíam num vício irritante e no dinheiro vivo que o acompanhava, contido numa pasta tipo 007, da qual nunca se afastava. 
É evidente que Politano fora dormir, aconchegado pelo lucrativo barato – percentagem recolhida pelo dono da cumbuca de cada parada ou jogada, por fornecer o material e a alimentação dos jogadores – arrecadado naquela tarde, quase noitinha.
Como de praxe, nessas circunstâncias, Mariano ficou responsável pelo desenrolar das sessões subsequentes. Cabia a ele, como confiado de Politano, estabelecer os procedimentos e prioridades que se seguiriam madrugada adentro.
A primeira providência foi estabelecer a modalidade do jogo a desenvolver-se, preço das apostas e a parceirada que dele participaria.
Mas nada deu certo! Arigofe dizia-se falido. Anacreon nunca jogava com parceiro desconhecido, fosse ele quem fosse. Pedro Dias, à tarde, perdera no Clube Comercial sua quota do dia. Ele, Mariano, eticamente, viu-se impossibilitado de jogar, porque ali estava na qualidade de dono da casa. Como restavam Belisário e Juvenal, jovem milionário, morbidamente viciado, foi proposto que ambos jogassem batidinha, ao preço de quinhentos cruzeiros a batida com as nove cartas e mil cruzeiros, se acontecesse com as dez.
Proposta feita, proposta aceita. Baralhos novos, fichas compradas, mesa escolhida, eis Belisário e Juvenal confrontes, batalhando parada a parada. De longe, dado o alto valor das apostas, para não atrapalhá-los, os jogadores remanescentes alcovitavam e, de quando em quando, bisbilhotavam o duelo.  E ouviam os desabafos de Juvenal:
- Não é possível, não consigo ganhar uma só parada. Parece coisa feita. Tem sal grosso na casa para eu tomar um banho de descarrego?
Ante esse lamento, acolhido entre risadas, os experts do jogo, Anacreon, Mariano e Arigofe, passaram, mais atentamente, a observar o jogador visitante e logo constataram o vício dele em mexer e remexer, seguidamente, as mangas do paletó que o compunha. Mas, como compulsão é compulsão, nada fizeram, até quando divisaram Belisário escamotear uma carta da manga do seu casaco.
- É ladrão, e dos bons, asseverava Arigofe. Conheço todas as manhas da malandragem. Vamos desmascará-lo.
- Calma – interveio Anacreonte – não façamos nada que o assuste.
- Mesmo porque – sussurrou Mariano – um escândalo aqui seria altamente desastroso. Iria resultar em dar pano para mangas. O necessário, agora, é ter pano para mangas.
No mesmo diapasão, o jogo continuou, se bem que agora àquela tríplice observação se juntara a de Pedro, que lastimava sua infeliz ideia de ter introduzido o neo conhecido naquele bunker da tavolagem soteropolitana. E, explosivo como era, dizia entre dentes:
- Hei de arrebentá-lo, quando sair daqui. No mínimo lhe darei uma acossa de cansanção. Isso não é coisa que se faça a um homem digno como eu. Sinto-me enxovalhado. Aproveitar-se da minha boa-fé é demais... Provará caro por isso.
Em meio a esses comentários, eis que Juvenal pede desculpas a Belisário e vai ao sanitário.  Aproveitando a oportunidade, Mariano segue-o e, antes mesmo que o amigo atendesse às suas necessidades, avisa-o:
- Você está sendo furtado, Juvenal. Pare esse jogo, de estalo. Não tem futuro. Ademais, seu dinheiro está em minhas mãos e eu não o entregarei a esse salafrário.
Ao que Mariano, estupefato, do aconselhado ouviu:
- Cale a boca. Não diga nada a ninguém. Você quer estourar (acabar) o meu jogo. Se ele for embora com quem eu vou jogar?
Nesse episódio, que ficou famoso em meio às rodas do carteado, dois mantras baseados em adágios populares – é melhor comer pouco do que dormir sem cear e festa acabada, músicos a pé e viciados a ponta pés – sempre repetidos por meu pai, que era um obstinado pelas cartas, foram transgredidos.  Um, por Belisário. Se houvesse refreado sua compulsão em ganhar muito, não teria sido descoberto. O outro, por Juvenal. Acaso tivesse se dado conta de que a festa acabara, não teria passado pelo constrangimento do ridículo, embora, naquela noite, escapasse de perder uma montanha de cruzeiros. Belisário, obrigado por Mariano a tirar o paletó, não pôde evitar que as cartas afanadas desabassem de suas mangas.
Aquela noite era mesmo do diabo! Exorcizá-lo, quem haveria de...          

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