Assim era Salvador
Texto de Luiz Carlos Facó, do seu livro Memórias a Conta-Gotas*
- Vamos lá, pessoal, é hora de rezar!
Para muitos, era hora de vadear. Para
ele, de oração. Oração da qual vivia.
Com tal vocativo, Arigofe sinalizava o
início do carteado em sua cumbuca, situada confronte à Sinuca do Abel e do Rumba Dancing, ao lado da Rua Chile,
aberta ao arrepio da lei, pois o jogo fora banido, logo após a redemocratização
do país, pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, capitulando-o como contravenção
penal.
Mas, para aquele negro de pernas
arqueadas que lhe tiravam do prumo ao caminhar, fazendo-o cambar, a cada passo,
à esquerda e à direita, tais quais navios do ITA – Itaimbé, Itanagé, Itaquicé –
no ir e vir entre o norte e sul do litoral brasileiro, enfrentado mares
mexidos, descumprir a lei era-lhe imperioso.
Seu DNA o obrigava, pois constituído
dos naipes de paus, ouros, copas, espadas e dos valores estabelecidos,
hierarquicamente, pelas emblemáticas figuras exibidas no anverso das cartas:
valetes, damas, reis, ases e coringas.
Dono de maneirismos próprios à realeza
britânica, vestido, impecavelmente, de tropical inglês, cabeça recoberta por
chapéu de feltro, irradiando simpatia e expelindo a fumaça advinda de um
inseparável charuto mantido entre os dentes, Arigofe tornou-se figura
irremovível do nosso folclore. Deixava ver a todos que, ao fumar um Havana,
estava em tempo de vacas gordas. Ao pitar um Danneman ou um Suerdieck,
enfrentava os rigores do estio da sorte. E, se baforava um daqueles enrolados
nas coxas sensuais das charuteiras de Cruz das Almas, é porque atravessava as
vicissitudes proporcionadas pelos golpes cruéis e imprevisíveis das cartas, que
tanto amava e das quais dependia.
Sim, o Arigofe de quem falo e descrevo
é o mesmo eternizado por Jehová de Carvalho, chamando-o de “a verdade da madrugada”. Pintado como um
homem sofrido, suportando “mais de meio
século de Bahia sobre os ombros e nos olhos vermelhos de manhãs imprevistas à
cabeceira das mesas de bacará e roleta, pôquer e biribas; ele, o manso ancião
que traz, nas fibras e no sangue, a resignação dos seus ancestrais africanos...”
e louvado por Jorge Amado em alguns dos seus romances.
Um pretenso crupiê aposentado, à
revelia, por quem nunca se deu conta do fantástico mundo das cartas.
Quando o conheci, já se constituía
numa personagem mítica e controversa do universo mundano de Salvador.
Apesar dos amigos feitos, em todos os
vieses sociais, Arigofe colecionou desafetos poderosos, que dele afirmavam: é
um trambiqueiro. Capaz de manipular as cartas de forma a dar um four de damas ao adversário, reservando
para si um de ases.
Na verdade, utilizando-se desses
reprováveis recursos, nunca foi flagrado e abespinhava-se, quando indagado se
desse expediente aproveitava-se. Dava como resposta:
- Jamais! Conheço todas as “mutretas”,
ardis e trapaças passíveis de se aplicarem no carteado. Não sou nenhuma Fada
Sininho. Contudo, arrenego-as. Iansã, minha mãe, é testemunha. Por isso, vivo
os altos e baixos de qualquer jogador. Quando a sorte bafeja-me, tenho vida
nababesca, acaso abandonado por ela, roo beira de sino.
Se na vida profissional enfrentava o
risco, as subidas e descidas que a aventura do jogo proporciona, atropelos ao
seu caráter, na boemia era um vitorioso. Os donos da noite, para citar só dois,
Faleiro e Sandoval, abriam as portas de suas casas – Varandá e Restaurante
Faleiro – a ele, que desfrutava da cortesia sem mãos a medir. Comia e bebia do
melhor, levando, como sobremesa, para degustar no “castelo” mais próximo, uma
bonita e gostosa mulher que ali encontrasse.
Fazia jus à fama de grande amante que corria légua de beiço,
impulsionada pelo tititi dos seus xodós ao afirmarem: é um retado. Faz um
“minete” como bem poucos. É do ramo, sabe tudo que as mulheres apreciam. Em matéria de sexo, é um porreta, é o Kama Sutra personificado. Distinções e
comentários que davam azo à abordagem dos invejosos:
- Você pratica “minete”, Arigofe? Essa
porcaria, essa imoralidade?
Ao que ele, revestido da sua
proverbial fleuma, retrucava:
- Se o Dr. Estácio de Lima, nosso
cientista mor a preconiza, porque
eu, um negro sem eira nem beira, haveria de amaldiçoar ou desprezar tal
prática? Quanto a ser imoral, fique com o ensinamento de outro jovem cientista,
Dr. Elsimar Coutinho: “Sexo é sexo e
moral é moral”.
***
Dos seus muitos janeiros, recordados
com intensidade, gabava-se orgulhoso. Só um deles descarrilava das loas
entoadas aos demais. Aquele em que ouviu, inerte e pasmo, do gerente do Cassino
Palace Hotel, a dolorosa frase:
- Anacreon, você está despedido. O
jogo acabou, foi proibido. A casa vai ser fechada.
Duro golpe para quem sempre vivera da
profissão de crupiê e nada mais sabia fazer nesta vida de meu Deus.
Quando o vi pela primeira vez, sua
figura impressionou-me, sobremodo. Apesar da idade que lhe embranquecia a basta
cabeleira, desafiava a gravidade mantendo o corpo, surrado pelo tempo, ereto
como o de um soldado em formação. Supunha que a altivez da posição lhe
conferisse poder superior ao daqueles que o rodeavam. Apesar desse senão, dessa
arrogância expressada pelo físico, Anacreon e não Anacleon, como muitos
insistiam em chamá-lo, o que o irritava profundamente, era um homem que só
fazia amigos.
Sem ser subserviente, tinha o dom de
agradar a quem dele solicitava favores, habituado que estava em atender e
recepcionar os clientes que se acercavam das mesas de bacará e Black Jack sob sua batuta.
- Ora, faz favor, como podem confundir
Anacreon com Anacleon. Anacreon foi poeta grego, um dos nove líricos mais
copiados da antiguidade, cujos versos cantavam as musas, o amor e Dionísio. E
quem será esse Anacleon? - dizia, irreverentemente, àquele que,
propositadamente ou não, a ele se dirigia, mudando-lhe o prenome.
Outra das suas características era a
exacerbada vaidade.
- Se não cuidar das mãos, do cabelo e
do corpo, pôr-me minimamente elegante e perfumado, como poderia atender o
senhor Pamphillo de Carvalho? O casal Jorge e Maria do Carmo Corrêa Ribeiro, a
senhora Amélia Campos – mãe do famoso tapeceiro Rubico Campos, aluno do mestre Jean Luçart, e da primeira professora da
Escola Politécnica da Bahia, Lolita Campos – mais conhecida por madame zero,
pela obsessão de só jogar na roleta aquele número? - arengava, sempre que
qualquer interlocutor insinuava seu narcisismo.
Ademais, Anacreon tinha uma vexação
incontida pela discrição. Ninguém o tirava do mutismo para revelar uma
leviandade sobre outrem, mesmo que fosse alguma de domínio público. Posso
afirmar: jamais conspurcou sua biografia, tampouco maculou quaisquer versos da
sua poesia, como diria um poeta inspirado.
Por todas essas qualificações, fez-se
gerente do Clube Euterpe, no corredor da Vitória, onde jogava a fina flor da
sociedade local representada por: Pamphillo de Carvalho, Plínio Rizério,
Estácio de Lima, Liberato de Carvalho, Hanequim Dantas, José Carlos Valério,
José Carlos Facó, Joilson Góes, dentre outros.
A esse amigo de Vadinho e Mirandão,
embora ignore o paradeiro, saúdo – como fez Jorge Amado em seus livros –
conquanto desconfie dele ter se homiziado numa galáxia onde a jogatina impere,
o dinheiro tilinte e a magia das cartas, sem manipulações inconfessas,
aconteça.
Enveredo por esse caminho não só pela
admiração que por ele nutria, também por ser parte da história soteropolitana,
que irei contar adiante.
É ler para conferir.
***
Nas rodas da jogatina, todos o
conheciam. Era Mariano pra lá, Mariano pra cá.
Eu só fui conhecê-lo na casa do alfaiate italiano, Ercole Politano, que,
diariamente, recebia os endinheirados baianos para noitadas de jogos de azar:
pôquer, pife-pafe, pontinho, biriba, canastra, batidinha e outros quês tais.
Nessa época, ele era um simples
parceiro. Embora havido como profissional do metier, era aceito por aquele extrato social em função da sua
conduta exemplar e da sua correção no trato com o baralho.
Homem de poucas palavras, de muito siso
e pouco riso, granjeara, com tal postura, versatilidade e talento para atuar em
qualquer tipo de jogo, a confiança de todos os parceiros, que o disputavam para
formar dupla, quer no biriba quer na canastra.
Da sua vida, conheci pouco.
Contentava-me sabê-lo paraibano, amante de Salvador, nela quedado até morrer e
viver do jogo, do qual era considerado assíduo ganhador e da venda de artigos
estrangeiros, preferencialmente, relógios de marcas famosas, como Patek Felippe, Rolex, Cartier.
Confesso que, algumas vezes, me detive
analisando-o. Intrigava-me vê-lo tão soturno, como se estivesse todo o tempo
imerso em si mesmo. Incapaz de um
sorriso largo, de exteriorizar emoções, sem o toque de ânimo rebentado do
amanhecer de um dia radioso. Constatações que me levaram concluir ter ele esse
proceder como ferramenta para estudar os adversários.
Quanto mais os conhecesse, estivesse
senhor de seus sestros, das suas reações, dos seus tiques nervosos, mais
apropriadamente poderia enfrentá-los numa parada arriscada, ambição de cada
jogador.
Era essa, concluí satisfeito, a razão
daquele recolhimento, do olhar fixo pousado nos olhos dos adversários que
procuravam os seus, mas não os encontravam por estarem sempre escondidos pelas
lentes escuras de seus óculos. Assim agindo, presumo, ele conhecia as fraquezas
dos seus contendores, vedando a eles intimidade com as suas. Acaso levemos em
consideração que é através do olhar que se conhecem os homens.
Desse dia a dia, em que especulava a
esperança de ser protagonista de um espetacular golpe de sorte, Mariano não se
afastava. Ou melhor, só se deixava desviar quando os cinemas anunciavam passar
as fitas mexicanas da Pelmex, estreladas por Arturo de Cordoba e Libertad
Lamarque, Ninon Sevilla, Maria Felix, Pedro Armendariz e o Tabaris Night Club,
que, com fanfarras, exibia espetáculos estrelados pelas maiores vedetes
brasileiras: Virgínia Lane, Luz Del Fuego, Nélia Paula, Salomé Parísio, Mara
Rúbia, Wilza Carla, Anilza Leone, Renata Fonzi e as certinhas do Stanislaw
Ponte Preta. Fora dessas escapadelas
visuais, quiçá homenagem à beleza feminina, nada o fazia deixar de cumprir, até
com certa exaustão, o exercício profissional do carteado.
De fácil diálogo, esse cabra macho
vindo da terra do NEGO, tinha, fora da rinha, gestos cavalheirescos. Emprestava
dinheiro aos parceiros quebrados, sem exigir-lhes juros, prazo para pagamento,
sequer a assinatura de qualquer recibo probatório do empréstimo. Aconselhava
aos trouxas abandonarem o pano verde, impedindo, muitas vezes, que se metessem
em camisas de onze varas. Fazia-se perdulário ao distribuir gorjetas ou
capilés. Afora externar advertências aos neófitos para que se acautelassem e
não se lambuzassem do sonho de ganhar dinheiro com as cartas entre as mãos.
Elas são madrastas, segundo Shakespeare: “o destino é o que baralha as cartas, mas nós somos os que jogamos”, repetia ele em tom
compassivo e professoral.
Como deu com o costado na Bahia não
dizia. Aproveitadores desse silêncio, com os pés no estribo da má fé,
asseguravam: foi tangido da terra natal, catapultado. Outros, menos
inconsequentes, diziam ser responsável por aquela migração seu amor por uma
bunda escultural de uma certa dama baiana. A maioria debitava ao Circo
Fequetti, que sazonalmente passava pela cidade, nos idos da década de quarenta,
do século passado, a responsabilidade do feito, por tê-lo demitido do seu
quadro artístico, no final de uma das suas temporadas em nossa terra. Sem ter
como voltar ao torrão natal por falta de dinheiro, homiziara-se, em Salvador,
na residência do humorista Zé Coió, então ídolo da cidade, também vítima de
ação semelhante do mesmo circo.
Fazer a vida em Salvador lhe pesou, mas
não lhe pesaram as manchas das safadagens do meio onde mourejava. Tanto assim
que, após a morte do velho Politano, tornou-se, juntamente com Agenor Pitta
Lima, rei do jogo do bicho em Salvador, dono da cumbuca mais famosa de nossa
terra.
***
Naquela noite parecia que o diabo
estava solto. Pés redondos, chifres, cheiro de enxofre, não faltaram aos
temerosos e assustados parceiros, que disseram vê-los e senti-los. A casa de
Politano efervescia acicatada pelo jogo, com apostas inacreditáveis. Na verdade,
paradas milionárias entrecortadas por desentendimentos orquestrados, de quando
em quando, pelos jogadores frustrados ou vencidos, com os pés afundados no
desespero da falência ou antevendo a venda de um bem para pagar o prejuízo do
golpe sofrido, mas não assimilado.
Para diminuir toda aquela tensão,
Politano ordenara Yolanda, sua esposa, servir a janta. Lauta, por sinal, e
regada por vinhos franceses e italianos, uísque escocês e finos licores.
Providência ineficaz, porquanto as discussões foram retomadas nas diversas
mesas existentes, onde o banquete era servido. Os ganhadores faziam apologia
das suas jogadas e, pouco caso, da má sorte dos adversários. Estes, em
contraponto, escarneciam ou punham em dúvidas a lisura das intervenções
daqueles. Numa contenda em que ninguém se entendia ou pretendia, resultante do
empobrecimento de alguns e do crescimento da conta bancária doutros tantos.
Foi em meio a essa balburdia, que,
quando não administrada com as filigranas diplomáticas, pode se degenerar em
graves conflitos, como soí acontecer em casas que se dedicam a esse tipo de
empreendimento ou entretenimento, onde as emoções e o dinheiro se confundem ou
se antagonizam perigosamente, que apareceu Pedro Dias, acompanhado de um
desconhecido.
Convidado para jantar, aquiesceu, tendo
o cuidado de antes apresentar o companheiro.
- Pessoal, este é Belisário Maciel,
recomendado de Washington Setenta, nosso companheiro de jogatina. Vive nas
bandas de Ilhéus, plantando e colhendo cacau. Solta rojões acendendo o pavio com
notas de quinhentos mil réis. Conheci-o hoje e, tão logo tive esse prazer,
soube da sua fascinação pelo jogo. Trago-lhes, pois, mais um parceiro, sangue
novo e do bom, cujo baú onde guarda seu tesouro pode baixar de nível, mas não
definha, por ser lastreado em ouro.
Aquela intervenção foi oportuna porque
os ânimos arrefeceram. Os perdedores, humildíssimos pela situação, procuraram
os ganhadores para compor suas dívidas. Esses até negaceavam, mas, ao final,
alegando ato de grandeza, aceitavam cheques pré-datados, mesmo notas
promissórias numa concordância geradora de brindes com champanha Veuve Clicquot.
Desarmadas as diabólicas tramas do
belzebu do dia, a parceirada escafedeu-se. Alguns deles satisfeitos, mesmo
embolsando papéis de crédito, cujo resgate se prenunciava difícil. Outros, por
terem procrastinado suas derrocadas. Enfim, todos se faziam conscientes de que,
no jogo, mais valem as vitórias em si mesmas do que os seus efetivos resultados
financeiros, sujeitos à preamar da sorte ou à vazante do azar.
Dispersos, capituladores e capitulantes
daquela arena do pano verde, restaram na casa Anacreonte, Mariano, Arigofe,
Pedro Dias – irmão de Heitor, Prefeito de Salvador – boêmio professo, jogador
inveterado, esparramando inteligência, o desconhecido Belisário Maciel e um
parceiro de nome Juvenal, cujas características se constituíam num vício
irritante e no dinheiro vivo que o acompanhava, contido numa pasta tipo 007, da
qual nunca se afastava.
É evidente que Politano fora dormir,
aconchegado pelo lucrativo barato – percentagem recolhida pelo dono da cumbuca
de cada parada ou jogada, por fornecer o material e a alimentação dos jogadores
– arrecadado naquela tarde, quase noitinha.
Como de praxe, nessas circunstâncias, Mariano ficou responsável pelo desenrolar
das sessões subsequentes. Cabia a ele, como confiado de Politano, estabelecer
os procedimentos e prioridades que se seguiriam madrugada adentro.
A primeira providência foi estabelecer
a modalidade do jogo a desenvolver-se, preço das apostas e a parceirada que
dele participaria.
Mas nada deu certo! Arigofe dizia-se
falido. Anacreon nunca jogava com parceiro desconhecido, fosse ele quem fosse.
Pedro Dias, à tarde, perdera no Clube Comercial sua quota do dia. Ele, Mariano,
eticamente, viu-se impossibilitado de jogar, porque ali estava na qualidade de
dono da casa. Como restavam Belisário e Juvenal, jovem milionário, morbidamente
viciado, foi proposto que ambos jogassem batidinha, ao preço de quinhentos
cruzeiros a batida com as nove cartas e mil cruzeiros, se acontecesse com as
dez.
Proposta feita, proposta aceita.
Baralhos novos, fichas compradas, mesa escolhida, eis Belisário e Juvenal
confrontes, batalhando parada a parada. De longe, dado o alto valor das
apostas, para não atrapalhá-los, os jogadores remanescentes alcovitavam e, de
quando em quando, bisbilhotavam o duelo.
E ouviam os desabafos de Juvenal:
- Não é possível, não consigo ganhar
uma só parada. Parece coisa feita. Tem sal grosso na casa para eu tomar um
banho de descarrego?
Ante esse lamento, acolhido entre
risadas, os experts do jogo,
Anacreon, Mariano e Arigofe, passaram, mais atentamente, a observar o jogador
visitante e logo constataram o vício dele em mexer e remexer, seguidamente, as
mangas do paletó que o compunha. Mas, como compulsão é compulsão, nada fizeram,
até quando divisaram Belisário escamotear uma carta da manga do seu casaco.
- É ladrão, e dos bons, asseverava
Arigofe. Conheço todas as manhas da malandragem. Vamos desmascará-lo.
- Calma – interveio Anacreonte – não
façamos nada que o assuste.
- Mesmo porque – sussurrou Mariano – um
escândalo aqui seria altamente desastroso. Iria resultar em dar pano para
mangas. O necessário, agora, é ter pano para mangas.
No mesmo diapasão, o jogo continuou, se
bem que agora àquela tríplice observação se juntara a de Pedro, que lastimava
sua infeliz ideia de ter introduzido o neo conhecido naquele bunker da tavolagem soteropolitana. E,
explosivo como era, dizia entre dentes:
- Hei de arrebentá-lo, quando sair
daqui. No mínimo lhe darei uma acossa de cansanção. Isso não é coisa que se
faça a um homem digno como eu. Sinto-me enxovalhado. Aproveitar-se da minha
boa-fé é demais... Provará caro por isso.
Em meio a esses comentários, eis que
Juvenal pede desculpas a Belisário e vai ao sanitário. Aproveitando a oportunidade, Mariano segue-o
e, antes mesmo que o amigo atendesse às suas necessidades, avisa-o:
- Você está sendo furtado, Juvenal.
Pare esse jogo, de estalo. Não tem futuro. Ademais, seu dinheiro está em minhas
mãos e eu não o entregarei a esse salafrário.
Ao que Mariano, estupefato, do
aconselhado ouviu:
- Cale a boca. Não diga nada a ninguém.
Você quer estourar (acabar) o meu jogo. Se ele for embora com quem eu vou
jogar?
Nesse episódio, que ficou famoso em
meio às rodas do carteado, dois mantras baseados em adágios populares – é melhor comer pouco do que dormir sem cear e festa acabada, músicos a pé e viciados a
ponta pés – sempre repetidos por meu pai, que era um obstinado pelas
cartas, foram transgredidos. Um, por
Belisário. Se houvesse refreado sua compulsão em ganhar muito, não teria sido
descoberto. O outro, por Juvenal. Acaso tivesse se dado conta de que a festa
acabara, não teria passado pelo constrangimento do ridículo, embora, naquela
noite, escapasse de perder uma montanha de cruzeiros. Belisário, obrigado por
Mariano a tirar o paletó, não pôde evitar que as cartas afanadas desabassem de
suas mangas.
Aquela noite era mesmo do diabo!
Exorcizá-lo, quem haveria de...
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