Redemoinho de Palavras
Alguns contos, outros casos e mais histórias
Guilherme Radel
É excepcional romancista e Professor Emérito da UFBA
A inconveniência já desmanchou
amizades seguras, sociedades firmes e casamentos sólidos.
A inconveniência tem origem em
manifestação de pensamento impróprio em hora imprópria ou ante pessoa imprópria
ou ante plateia imprópria.
Eu me vacinei de cometer
inconveniência, mas, antes de me vacinar, cometi ainda algumas. Como das coisas
ruins a gente se esquece, eu só me lembro de uma delas.
Certa feita, meu bloco da Madragoa
se infiltrou numa festa de 15 anos, que
naquele tempo se chamava de festa de debutante. A aniversariante tinha vários
irmãos e nós passávamos como amigos de um desses irmãos. A festa tinha tudo
pare ser um sucesso, mas não decolou. Embora contasse com a orquestra de Carlos
Lacerda, a melhor de Salvador naqueles dias, houvesse muito chope e muito
uísque, faltava animação. Havia muitos homens para poucas mulheres. Desolado,
encostei-me num dos pilares que sustentavam uma varanda no andar acima, quando
fui abordado por um senhor simpático.
–
Você tem um cigarro?
Ofereci-lhe o maço de cigarros.
Ele retirou um e me agradeceu.
–
Deseja fogo? – perguntei.
–
Sim. È um favor.
Aproximei meu isqueiro aceso do
seu cigarro e o acendi. Ele deu uma puxada e soltou a fumaça sem tragar.
–
Que tal está achando a festa? – ele me perguntou.
–
Uma merda.
–
Eu, também - ele emendou.
–
Eu estou com uns amigos por isso não vou embora. E o senhor por que não vai embora?
–
Eu sou o dono da casa.
Desejei um buraco para me
enterrar.
Eu não tinha ainda me vacinado de
cometer inconveniência, mas já sabia que não se deve tentar consertá-la. A
emenda é sempre pior que o soneto. O senhor simpático deu uma ou duas tragadas
no cigarro, despediu-se e se afastou. Ele saiu para um lado e eu sai para o
outro. Deixei os amigos. Escafedi-me.
Era muito comum reunir os
parentes, amigos e trabalhadores ao lado da churrasqueira da Fazenda Paschoal
Gomes para comer churrasco e beber umas e outras. Uísque, cerveja, vinho, erva
doce, gim, vodca, com tira-gostos de coração de frango, fígado de cordeiro no
redenho, ovos de codorna, iscas de carne de sol, lingüiça toscana, amendoim
cozido, enquanto se esperava o churrasco que era de carnes variadas, como
cordeiro, alcatra de boi, frango caipira, linguiça toscana, com acompanhamento
de salada de batatas com maionese, farofa dourada, vinagrete, feijão tropeiro e
arroz.
Num certo dia, passava das 13
horas, o couro comendo, a conversa rendendo e a risadaria acontecendo, quando
Tomaz e Rebeca iniciaram uma discussão. Tomaz achando que certo serviço deveria
ter sido feito por telefone e Rebeca argumentando que por e-mail fora melhor.
Tomaz argumentou que o telefone é mais fácil, ainda mais com o advento do
aparelho celular.
–
Ora, Tomaz, qual é o idiota que hoje não mexe com informática? –
perguntou Rebeca.
Luzia, minha esposa, e eu
levantamos o braço.
Rebeca viu que tinha cometido uma
inconveniência. Agredira os futuros sogro e sogra. Tentou consertar, mas trocou
menos por mais.
–
Qual é o idiota com mais de 80 anos que não mexe com informática?
Novamente, Luzia e eu levantamos o
braço. Foi uma risadaria geral.
–
Desculpe, D. Luzia. Não foi isso que eu quis dizer.
–
Rebeca, pare! – ordenou Tomaz com autoridade. – Você só esta
falando merda.
A risadaria foi grande.
Bocamole entrou na nossa turma de
paraquedas. Chamávamos de nossa turma, aquele grupo de pessoas que entrou no
Departamento de Saneamento, depois SAER, depois Embasa no inicio da década de
60 do século passado. Eram Luzia, Maria Helena, Jorge Nogueira, Jayme Barbosa,
Antônio Carlos, eu e as esposas de Jayme, Lena, e de Jorge, Sérgia. Íamos
juntos para todos os cantos. Comíamos e bebíamos juntos. Alegrávamo-nos juntos.
Bocamole entrou no grupo. Era uma pessoa rude e maleducada, não sabia usar o
talher, bochechava o vinho para limpar os dentes. Era desastrado. Fez carreira,
venceu na vida sem fazer força.
Quando tinha uns cinquenta anos,
conseguiu umas terras em Santo Antônio de Jesus, fez um loteamento e
enriqueceu. Aculturou-se na turma. Hoje, lê Nietzsche, ouve Bach e vê Godard.
Foi um dos casos mais notáveis de
alfabetização de adultos.
Certa feita, Bocamole ofereceu um
jantar para a turma. Sua mulher, Raymunda, uma das pessoas mais simpáticas que
conheci caprichara no cardápio e Bocamole, com assessoria de Jayme Barbosa,
ofereceu-nos excelentes vinhos.
Lá para tantas, a conversa
enveredou por nacionalidades.
Bocamole, que ainda não conhecia
bem a turma, foi enfático em sua opinião.
–
Eu não gosto de espanhóis.
–
Boca, os pais de Luzia eram espanhóis. – advertiu-o Jorginho.
–
Não, não estou falando de todos espanhóis, eu me refiro aos
galegos.
–
Boca, os pais de Luzia eram galegos – advertiu-o Jayme.
Bocamole, não fez de rogado, e,
imediatamente, remendou.
–
Eu não falo de todos os galegos, eu falo desses padeiros.
–
Boca, pare de falar besteira. O pai de Luzia era dono de padaria –
eu o adverti.
Não houve quem contivesse a
gargalhada.
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