sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A INCOVENIENCIA

Redemoinho de Palavras
Alguns contos, outros casos e mais histórias



Guilherme Radel
É excepcional romancista e Professor Emérito da UFBA



A inconveniência já desmanchou amizades seguras, sociedades firmes e casamentos sólidos.


A inconveniência tem origem em manifestação de pensamento impróprio em hora imprópria ou ante pessoa imprópria ou ante plateia imprópria.

Eu me vacinei de cometer inconveniência, mas, antes de me vacinar, cometi ainda algumas. Como das coisas ruins a gente se esquece, eu só me lembro de uma delas.

Certa feita, meu bloco da Madragoa se infiltrou numa festa de 15 anos,  que naquele tempo se chamava de festa de debutante. A aniversariante tinha vários irmãos e nós passávamos como amigos de um desses irmãos. A festa tinha tudo pare ser um sucesso, mas não decolou. Embora contasse com a orquestra de Carlos Lacerda, a melhor de Salvador naqueles dias, houvesse muito chope e muito uísque, faltava animação. Havia muitos homens para poucas mulheres. Desolado, encostei-me num dos pilares que sustentavam uma varanda no andar acima, quando fui abordado por um senhor simpático.

–        Você tem um cigarro?

Ofereci-lhe o maço de cigarros. Ele retirou um e me agradeceu.

–        Deseja fogo? – perguntei.

–        Sim. È um favor.

Aproximei meu isqueiro aceso do seu cigarro e o acendi. Ele deu uma puxada e soltou a fumaça sem tragar.

–        Que tal está achando a festa? – ele me perguntou.

–        Uma merda.

–        Eu, também - ele emendou.

–        Eu estou com uns amigos por isso não vou embora.  E o senhor por que não vai embora?

–        Eu sou o dono da casa.

Desejei um buraco para me enterrar.

Eu não tinha ainda me vacinado de cometer inconveniência, mas já sabia que não se deve tentar consertá-la. A emenda é sempre pior que o soneto. O senhor simpático deu uma ou duas tragadas no cigarro, despediu-se e se afastou. Ele saiu para um lado e eu sai para o outro. Deixei os amigos. Escafedi-me.



Era muito comum reunir os parentes, amigos e trabalhadores ao lado da churrasqueira da Fazenda Paschoal Gomes para comer churrasco e beber umas e outras. Uísque, cerveja, vinho, erva doce, gim, vodca, com tira-gostos de coração de frango, fígado de cordeiro no redenho, ovos de codorna, iscas de carne de sol, lingüiça toscana, amendoim cozido, enquanto se esperava o churrasco que era de carnes variadas, como cordeiro, alcatra de boi, frango caipira, linguiça toscana, com acompanhamento de salada de batatas com maionese, farofa dourada, vinagrete, feijão tropeiro e arroz.

Num certo dia, passava das 13 horas, o couro comendo, a conversa rendendo e a risadaria acontecendo, quando Tomaz e Rebeca iniciaram uma discussão. Tomaz achando que certo serviço deveria ter sido feito por telefone e Rebeca argumentando que por e-mail fora melhor. Tomaz argumentou que o telefone é mais fácil, ainda mais com o advento do aparelho celular.

–        Ora, Tomaz, qual é o idiota que hoje não mexe com informática? – perguntou Rebeca.

Luzia, minha esposa, e eu levantamos o braço.

Rebeca viu que tinha cometido uma inconveniência. Agredira os futuros sogro e sogra. Tentou consertar, mas trocou menos por mais.

–        Qual é o idiota com mais de 80 anos que não mexe com informática?

Novamente, Luzia e eu levantamos o braço. Foi uma risadaria geral.

–        Desculpe, D. Luzia. Não foi isso que eu quis dizer.

–        Rebeca, pare! – ordenou Tomaz com autoridade. – Você só esta falando merda.

A risadaria foi grande.



Bocamole entrou na nossa turma de paraquedas. Chamávamos de nossa turma, aquele grupo de pessoas que entrou no Departamento de Saneamento, depois SAER, depois Embasa no inicio da década de 60 do século passado. Eram Luzia, Maria Helena, Jorge Nogueira, Jayme Barbosa, Antônio Carlos, eu e as esposas de Jayme, Lena, e de Jorge, Sérgia. Íamos juntos para todos os cantos. Comíamos e bebíamos juntos. Alegrávamo-nos juntos. Bocamole entrou no grupo. Era uma pessoa rude e maleducada, não sabia usar o talher, bochechava o vinho para limpar os dentes. Era desastrado. Fez carreira, venceu na vida sem fazer força.

Quando tinha uns cinquenta anos, conseguiu umas terras em Santo Antônio de Jesus, fez um loteamento e enriqueceu. Aculturou-se na turma. Hoje, lê Nietzsche, ouve Bach e vê Godard. Foi um dos casos  mais notáveis de alfabetização de adultos.

Certa feita, Bocamole ofereceu um jantar para a turma. Sua mulher, Raymunda, uma das pessoas mais simpáticas que conheci caprichara no cardápio e Bocamole, com assessoria de Jayme Barbosa, ofereceu-nos excelentes vinhos.

Lá para tantas, a conversa enveredou por nacionalidades.

Bocamole, que ainda não conhecia bem a turma, foi enfático em sua opinião.

–        Eu não gosto de espanhóis.

–        Boca, os pais de Luzia eram espanhóis. – advertiu-o Jorginho.

–        Não, não estou falando de todos espanhóis, eu me refiro aos galegos.

–        Boca, os pais de Luzia eram galegos – advertiu-o Jayme.

Bocamole, não fez de rogado, e, imediatamente, remendou.

–        Eu não falo de todos os galegos, eu falo desses padeiros.

–        Boca, pare de falar besteira. O pai de Luzia era dono de padaria – eu o adverti.

Não houve quem contivesse a gargalhada.


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