Série: Os cem melhores contos brasileiros
Por Marina Colasanti
Quando o coágulo de sangue explodiu na cabeça de
Jeffrey Curtain, algo nele foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu
pensamento viu-se subitamente decepado do corpo.
Sem
espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de traduzir-se em
grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse na boca. Passado isso,
nada mais havia a não ser a nova dimensão.
- O
Dr. Jewett acha que não há esperança – repetia a enfermeira em voz baixa, aos
eventuais visitantes. – O Sr. Curtain poderá viver indefinidamente, mas não
tornará a ver. Nem se mexerá, nem pensará. Apenas respirará.
De
fato, Jeffrey respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à situação do
restante do corpo, continuavam exercendo sua tarefa com a mesma fiel
regularidade com que durante tantos anos lhe haviam fornecido aquele ar
indispensável para que se levantasse a cada manhã, e a cada manhã se barbeasse
dando partida para mais um dia, que haveria de catapultá-lo da mesa de
refeições para a mesa de trabalho, diante da máquina de escrever e dos contos
que produzia para alimentar o próprio corpo, e com ele os próprios pulmões
encarregados de fornecer aquele ar indispensável para.
Jeffrey
teria ficado orgulhoso dos seus pulmões, se apenas se desse conta de que
funcionavam, ou sequer de que os tinha. Mas, apesar do corpo de Jeffrey
continuar possuindo pulmões e outros órgãos em perfeito estado de
funcionamento, seu cérebro os desconhecia e comportava-se como se deles não
necessitasse. Assim como não necessitava de visão ou da audição.
Cortadas
as ligações que o haviam ancorado ao resto do corpo, o cérebro de Jeffrey
Curtain não dava mais ordens. E os médicos, enganados pelo silêncio dessa voz
de comando, haviam decretado sua morte, entretanto, emparedado na caixa
craniana cujos orifícios a ruptura havia vedado com sangue espesso como chumbo,
o cérebro pensava.
Talvez
fosse mais correto dizer que luzia. Pois nada do que havia vivido até então se
assemelhava à luz límpida e pura por ele agora gerada na óssea escuridão da sua
caverna. Jeffrey Curtain havia-se livrado para sempre da escravidão da
coerência. Sua mente, solta, tudo se permitia, tudo realizava.
Aos
poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey entrou em
entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo sua obediência a
ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente sob as calhas permitia-se
escurecer. Começou a descascar. Enormes escamas quebradiças abriam-se feito
conchas na velha superfície, entregando a madeira ao tempo, sem que pérola
rolasse.
Crescia
a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis que em
constante outono desprendiam-se das paredes e caíam volteando, enquanto na
imobilidade do corpo de Jeffrey, outro movimento se processava. Vinda dos pés –
ou seria da nuca? – a paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava
por dentro, buscando alcançar-lhe o coração.
Na
cidadezinha, todos se referiam a ele como se já estivesse morto.
E
todas as manhãs, sua mulher o barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama
para a cadeira e da cadeira para a cama, falando-lhe como se fala a um cão
amigo, embora sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que
um cão é capaz. Nada lhe vinha daquele corpo, além do hábito.
Mas
Roxanne falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias, evitando
perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silencio ou se para preencher
com suas palavras o silêncio que dele parecia emanar.
Sem
que ela pudesse ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos, por trás da
pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos ossos, um silêncio cheio
de sons e palavras tecia sua sinfonia no cérebro de Jeffrey. Nunca mais ele
havia precisado se expressar de forma audível ou legível. Nunca mais ele havia pensado
para outros. Pensado só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrável dos seus
desejos, deixando-se escorrer por ele como em água, sem saltos ou fraturas. A
fabulação, que havia sido sua forma de viver, tornava-se sua vida. E ali
deitado, imóvel, Jeffrey criava e costurava uma após a outra, as imagens da
longa narrativa.
Um
neurologista – fama convocada para validar o que vários outros já haviam
afirmado – tentou convencer Roxanne de que era inútil dispensar o tamanho
cuidado ao enfermo. “Se Jeffrey tivesse consciência do seu estado”, disse em
voz autoritariamente piedosa, “desejaria morrer. Desejaria libertar-se da
prisão do próprio corpo.”
Mas
Jeffrey não desejava morrer. Assim como não desejava livrar-se do próprio
corpo. Esse corpo que, sem movimentos, atrofiava-se aos poucos sobre a cama,
não lhe era prisão. Nem lhe fazia falta. Antes, havia sido necessário ocupar-se
dele, vigiar seus alarmas, suas dores, seus sintomas, lutar diariamente para
atender sua fome inesgotável, protegê-lo. Antes havia sido imperioso servi-lo,
e às suas exigências. Talvez então lhe fosse mais prisão do que agora, quando,
impedido o contato entre o pensamento e suas carnes, eram elas que o serviam.
De
alguma forma, poder-se-ia dizer que Jeffrey não tinha consciência do seu estado.
Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo. E sim porque, na longa
travessia na qual seu pensamento estava empenhado, o fato de não falar ou
mover-se parecia tão menor que se via excluído.
Jamais,
olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria Roxanne da intensa movimentação
que o habitava. Sem gesto que o cansasse, Jeffrey não dormia, seu estado era um
só. E nesse estado, de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de tempo
e de país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como nunca
havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água, e voava, voava.
Longas
vezes, enfastiado talvez da tanta agitação, o cérebro de Jeffrey deixava-se
ficar, girando apenas ao redor de um pensamento, envolvendo-o nos fios
prateados das suas ideias, aprumando-lhe as formas e o sentido, até vê-lo
crescer, tão intenso como se a vida não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas
explodisse naquele momento, carga milenar que desde sempre trazia consigo.
Erguiam-se então na pálida atmosfera do quarto as invisíveis torres, e os sinos
badalavam ensurdecedores no cérebro de Jeffrey. Sem que seu som cortasse o ar
pesado do cheiro de remédios.
Os
anos haviam devorado o seguro de Jeffrey. Roxanne fora obrigada a vender uma
parte da terra atrás da casa, depois a abrir mão de uma faixa de jardim à
direita. Uma hipoteca tornara-se inevitável.
E no
entanto, como nos primeiros dias, quando a doença se manifestara e ainda
parecia possível reverter o destino, ela continuava a amar o marido.
Amava,
em verdade, aquele homem que havia antes, e que ela teimava em sobrepor a esta
pálida coisa cada dia menor e mais leve, coisa quase humana que ainda
transportava da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, como se
carregasse um fardo ou um feto.
- Que
mais posso eu fazer? – perguntava-se puxando de leve as cortinas, não fosse o
sol bater sobre o pobre rosto que, único movimento perceptível, parecia
voltar-se sempre em direção a luz.
Uma
luz quente derramava-se sobre as imagens dos pensamentos de Jeffrey, naquela
tarde em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu que seu corpo o
chamava. Desobstruíam-se os ouvidos, sons alheios aos seus lhe chegavam como
ruído de cachoeira, ou vento, ou cantoria. As placas ósseas da sua fronte, as
maçãs do seu rosto abriam-se como batentes empurrados por dentro e o sol, com
intensidade nunca antes alcançada, vinha expulsa-lo da caverna.
O fio
do pensamento de Jeffrey lançou-se para aquela luz.
Roxanne,
que cochilava na cadeira ao pé da cama, acordou sobressaltada. Estendeu a mão
para tocar o marido. Não foi preciso. Antes mesmo de olhá-lo, soube que estava
sozinha na casa. Recolheu a mão ao colo, segurou-a com a outra, e deixou-se
ficar. O sol se pôs. O perfume dos lilases pareceu enlouquecer as cigarras, o
coaxar das rãs pairou sobre o peitoril da janela.
Só
então Roxanne levantou-se.
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