quarta-feira, 16 de outubro de 2013

DESVANTAGENS DE UMA CONSTITUIÇÃO ANALÍTICA

                                               Por Raymundo Pinto
 A Constituição Federal de 1988 acaba de completar vinte e cinco anos. Vários estudos críticos têm vindo à tona, analisando suas influências positivas e negativas no desenvolvimento do nosso País, em especial nas áreas social, política e econômica. Não há como negar que seus princípios e normas ligados à liberdade e à dignidade da pessoa humana formam um arcabouço jurídico que tem permitido, no geral, a continuidade da estabilidade democrática. Os desvios e abusos mais graves devem ser creditados a uma cultura enraizada – desde remotos tempos coloniais – que leva o cidadão comum a um comportamento um tanto irresponsável
que o faz reclamar de tudo, exigir muitos direitos, mas reage mal quando é cobrado no cumprimento de seus deveres. No essencial, contudo, as instituições básicas funcionam, obviamente com as restrições impostas por uma realidade ainda muito plena de carências.
Existem, sem dúvida, diversos aspectos negativos a destacar no texto constitucional. Com apoio em opiniões abalizadas, ouso proclamar que nossa Carta Magna traz um defeito de origem: seus elaboradores optaram por redigi-la demasiadamente extensa e detalhista. Quais as desvantagens disso? O ideal é que a Lei Maior de uma Nação seja a mais sintética possível, dispondo de diretrizes ou princípios essenciais que vão nortear o seu povo e contendo regras mais gerais sobre instituições e procedimentos que os cidadãos terão de observar no dia a dia, notadamente aquelas que dizem respeito à organização do governo. O detalhamento fica por conta da chamada legislação infraconstitucional. A Constituição dos Estados Unidos (7 artigos e 27 emendas) é exemplar nesse ponto e perdura há mais de dois séculos. Muita gente justifica o fato da nossa CF ser analítica (250 artigos e quase 100 dispositivos transitórios), sob o argumento de que ela surgiu após um severo período autoritário e que, por causa disso, variadas correntes se preocuparam em introduzir e assegurar inúmeros direitos. Tornando difícil emendá-la, supunha-se que tais direitos seriam mantidos a longo prazo. A dura realidade tratou de contrariar essa pretendida “camisa de força”, sendo que 74 emendas já foram aprovadas e mais de 1.000 esperam tramitação no Congresso Nacional. 
Os excessos estão por todas as partes. Chegaram a fixar os juros máximos a serem cobrados, como se uma simples norma pudesse revogar leis da economia (o absurdo foi afastado em 2003). Uma quantidade significativa de direitos depende de regulamentação e, até hoje, decorrido tanto tempo, mais de cem deles ainda não o foram. Note-se, ainda, que a CF vigente foi promulgada antes da queda do Muro de Berlim (1989) e do esfacelamento da União Soviética (1991), fatos históricos que alteraram os rumos ideológicos no mundo. Na época da assembléia constituinte, a tendência à esquerda tinha força considerável e as posições estatizantes eram apontadas como solução para quase todos os problemas.       
Como visto, as desvantagens da forma analítica adotada pela atual CF são numerosas. Desejo aqui – diante da natural limitação espacial de um artigo para jornal – assinalar, tão somente, algumas breves considerações sobre as repercussões na área do Direito do Trabalho. Como atuei 30 anos como magistrado trabalhista e me aposentei há pouco mais de três anos, sinto-me com razoável experiência para salientar certos aspectos que me parecem fundamentais, principalmente no que toca ao ramo jurídico a que me dediquei.
O artigo 7º, que relacionou os principais direitos dos trabalhadores, contém nada menos do que trinta e quatro incisos, além de um parágrafo único que se refere aos domésticos. A crise econômico-financeira que agitou o mundo em 2008 obrigou países da Europa a flexibilizar suas legislações trabalhistas e previdenciárias. Aqui no Brasil, temos de rezar para que a crise que atualmente vivemos não venha a se agravar, pois a margem de manobra, quanto a reduzir vantagens trabalhistas, é quase nula. Basta se falar em alguma pequena alteração e as lideranças sindicais, com apoio de esquerdistas inconsequentes, logo saem a campo gritando que “a burguesia quer acabar com os direitos mínimos dos operários!” Todos aqueles benefícios constantes do referido artigo 7º são considerados “cláusulas pétreas”, isto é, não podem sofrer emendas. Como se observa, mais um grande obstáculo a ser superado pelo fato de ser analítica a nossa CF.
Ainda mais grave é o reflexo dessa situação no eterno e insolúvel problema da morosidade da Justiça. No ramo trabalhista, quando a reclamação é julgada, a parte vencida pode recorrer para o TRT. Em geral, as empresas – com frequentes atitudes protelatórias e orientadas por bons advogados – interpõem, se vencidas de novo, mais outro recurso ao TST. Verifica-se, na prática, que o humilde obreiro, em busca de seus direitos, tem de ver, não raro, os processos cumprirem a “via crusis” de três lentas instâncias, sem falar na dolorosa e às vezes interminável luta durante a fase de execução. A quantidade exagerada de direitos inscritos na CF contribui, também, para o retardamento dos processos. É que, como muitos assuntos das relações de trabalho passaram a ser matéria constitucional, aumentou bastante a possibilidade do recurso extraordinário para o STF, o qual, se acionado, equivale a uma quarta instância. Haja atraso! Em suma, “enxugar” a Constituição é algo que se impõe às futuras gerações, sob pena de sério atrofiamento do próprio desenvolvimento do Brasil. Infelizmente, não tenho esperança de que isso seja feito a curto ou médio prazo.
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Raymundo Pinto, desembargador aposentado do TRT, é escritor de obras jurídicas e membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da Academia Feirense de Letras.  


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