terça-feira, 22 de outubro de 2013

O CENTENÁRIO DO POETINHA

Por JOACI GÓES
É empresário e Membro da Acadêmia de letras da bahia


Neste 19 de outubro o Brasil celebra os cem anos de nascimento de Vinícius de Moraes que recebeu na pia batismal o nome de Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes, consoante decisão do seu pai, o latinista Clodoaldo que, igualmente, pespegaria  nomes romanos aos filhos Laetitia e Helius. 

  
Diplomata, jornalista, cineasta e dramaturgo, foi precoce a manifestação de seu talento para a poesia e as mulheres que exerceu com brilho crescente desde os nove anos de idade, quando escreveu o primeiro poema de amor, inspirado em uma colega de escola que reencontraria 56 anos depois. O Poetinha bebia, fumava e amava sem régua e sem compasso. Era um apaixonado pela vida, dedicado a fazer tudo que lhe desse prazer. Carlos Drummond de Andrade disse que Vinícius “foi o único de nós que teve vida de poeta”. 

Dele se dizia que passou metade da vida viajando e a outra metade amando. Teve nove mulheres, oficialmente reconhecidas, em dez casamentos, já que com a primeira, Tati, a única com quem casou no civil, voltaria a juntar-se, mais uma vez. Foi ela a inspiradora de seus versos mais famosos: “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”. 
Aos que tentavam lhe pespegar o apodo de mulherengo, corrigia pedagógico: “mulherólogo”. Indagado sobre com quantas mulheres pretendia se unir, respondeu: “Com quantas for necessário”. Seus amores – dizia - eram sua inspiração. Para minimizar, talvez, o sentimento de culpa, costumava ser muito generoso com as mulheres de quem se separava, deixando com elas os bens do casal e levando, apenas, os objetos pessoais. 
Sua separação da baiana  Gesse Gessy não foi diferente. Deixou para ela a bela mansão do farol de Itapuã. Apesar disso, Gesse, irresignada com a separação, reteve as identidades de Vinícius e seus cartões de crédito, negando-se, peremptoriamente, a devolvê-los. Em plena ditadura, a obtenção de novos documentos, inclusive o passaporte, demoraria um tempo que resultaria desastroso para Vinícius, em face de compromissos artísticos iminentes, dentro e fora do Brasil. 
Reunido com uma plêiade de velhos e dedicados amigos, como Édio Gantois, Carybé, Jorge Amado e Calasans Neto, alguém lembrou que o advogado de Gesse era o grande civilista Orlando Gomes, amigo fraternal do autor destas linhas. Procurado pela ilustre trupe, intercedi junto ao professor Orlando Gomes, que, em minha presença telefonou para Gesse, determinando a imediata devolução dos documentos. Como Gesse se recusasse a fazê-lo, mestre Orlando respondeu que a partir daquele momento ele não seria mais seu advogado.

Temendo perder tão valioso patrono, Gesse recuou, devolvendo os documentos, para gáudio do Poetinha que, como de preceito, celebrou a reconquista da liberdade de movimentos, tomando todas, consoante o entendimento segundo o qual “se o cão é o melhor amigo do homem, whisky é o cão engarrafado”.   
  
A vasta produção de Vinícius compreende música, literatura, teatro e cinema. Ninguém no Brasil teve tantos parceiros musicais, destacando-se Tom Jobim, Toquinho, Baden Powell, João Gilberto, Chico Buarque, Carlos Lyra, Francis Hime e muitos outros. Inovador, por excelência, misturava ritmos brancos com negros, samba com candomblé e o comportamento aristocrático com o boêmio. Sua poesia reflete a busca e o encontro; a serenidade e a desesperança; a paz e a turbulência; o divino e o profano; a força e a fraqueza; a chegada e a partida. Tudo isso se fundindo no amálgama rico da vida e do prazer. Na maturidade, reviu sua posição integralista da juventude. Num debate, em 1942, defendeu a superioridade do cinema mudo sobre o sonoro. 
Vinícius foi uma estrela que atraiu para a sua órbita personalidades como Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, Hélio Pelegrino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Moacyr Werneck de Castro, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Lúcio Costa, Afonso Reidy, Jorge Moreira, José Reis, Alfredo Ceschiatti, Santa Rosa, Pancetti, Augusto Rodrigues, Djanira, Bruno Giorgi, Aníbal Machado, João Cabral de Melo Neto, Manoel Bandeira, Carlos Drummond, Pedro Nava, Sérgio Buarque de Holanda. 
Sua amizade com Pablo Neruda rendeu muitos versos de ambos os poetas. Com Jobim, propagou a bossa nova, ritmo criado pelo baiano João Gilberto. É um dos nomes mais representativos da música brasileira na segunda metade do século XX, constituindo unanimidade de crítica e de público, dentro e fora do Brasil, em qualidade e sofisticação musical. 
Somente em 1961, aos 48 anos, Vinicius gravaria sua voz, pela primeira vez, em um disco contendo os sambas “Água de Beber” e “Lamento no Morro”, ambos compostos em parceria com Tom Jobim. 
Pixinguinha veio enriquecer sua galeria de grandes parceiros musicais. Sua aposentadoria compulsória pelo AI5 magoou-o profundamente, estado de espírito momentaneamente agravado pelos apupos de estudantes salazaristas à porta do teatro em que se apresentava, em Lisboa. 
Aconselhado a se retirar pelos fundos do teatro, Vinícius optou por enfrentar os protestos. Diante dos manifestantes, começou a declamar “Poética I” (“De manhã escureço/De dia tardo/De tarde anoiteço/De noite ardo”). Repentinamente, um dos jovens tirou a capa do seu traje acadêmico e a lançou ao solo, à guisa de tapete, para que Vinicius pudesse caminhar sobre ela, no que foi seguido por colegas, modo simbólico, em Portugal, de expressar alto  apreço acadêmico. 
Em 2005, a versão, em inglês, de “Garota de Ipanema”, “The Girl from Ipanema”, de 1963, com Astrud Gilberto, Tom Jobim, João Gilberto e Stan Getz, foi eleita pela Biblioteca do Congresso Americano como uma das 50 grandes obras musicais da Humanidade. A justiça brasileira, em 1998, 18 anos depois de sua morte, anistiou-o. Em 2006, foi, oficialmente reincorporado à carreira diplomática, e, em fevereiro de 2010, a Câmara dos Deputados aprovou sua promoção póstuma a ministro de primeira classe, equivalente a embaixador, o posto mais alto da carreira diplomática.                     
    
Na noite de 8 de julho de 1980, quando definia com Toquinho detalhes para o lançamento do álbum “Arca de Noé”, Vinícius alegou cansaço, tomou banho e foi deitar-se. Mais tarde, a empregada o encontrou na banheira, com dificuldades para respirar. O Poetinha viria a falecer na madrugada do dia 9 de julho de 1980, aos 66 anos, 8 meses e 20 dias, no Rio de Janeiro, a mesma cidade onde nasceu.
    
Em sua última entrevista, respondeu a um repórter que lhe perguntou se tinha medo de morrer: “Não, meu filho. Eu não estou com medo da morte. Estou é com saudades da vida”.
    
Vinicius de Moraes morreu com a aurora, que é nome de mulher.


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