quinta-feira, 17 de outubro de 2013

POEMAS


DE FLORISVALDO MATTOS*
É Imortal pela Academia de Letras da Bahia



FM – 22.10.2005

            QUARTETOS DO OUTONO


Sono que se desprende da algazarra,
sangue que se dá ao corpo e se renova,
moedas que se perdem numa farra,
crepúsculo que é de sonhos boa prova.

Tudo isso é marginal, o que mais vale
escorre qual jasmins apodrecidos
entre os dedos e pede que me cale
para não acordar os dias idos.

Sou mais o peixe que surge das tramas
da água e alcança a plenitude viva
do poente, ou mudo pássaro nas ramas,
que celebra o que o coração aviva.

Lavro sonhos na sombra. O claro-escuro
da tarde declinante em meus lábios,
semelhando palavras em um muro,
divulga solilóquios e presságios.

A leitura do corpo descarnado,
já por emagrecer, já por desgosto,
mais que seja de pranto navegado,
coleciona ametistas de sol-posto.

Triste Narciso que comove a artéria
por onde correm a água e a paisagem,
busco o rosto absoluto, a índole séria,
que a torrente do tempo imprime à imagem,

no espelho irremediável refletida.
Noites são noites, e manhãs, manhãs.
E as tardes que prescrevem para a vida
destino de escrever palavras vãs?

A frase que me morde o aflito crânio,
na hora de adormecer, ideias claras
me traz: cravo plantei, plantei gerânio,
em pântano em que só nascem flores raras.

Vou. Caminho. Corro, horas, dias, meses.
Livro-me da armadilha dos delírios.
Não quero ter um fim como o do grego,
Postado na janela a contar círios.

Estou só, entre as árvores queimadas,
que margeiam meu rio distraído.
Faz-me bem lembrá-las, eram amadas.
E ele, pleno de curvas, comovido.


            VIGÊNCIA DA NOITE

                        A Guido Guerra, in memmoriam
                                    
Como um pássaro que passeia devagar na estiva
de um porto qualquer, olhos baços, mente esquiva,

divago na sala, mirando as estrelas da noite que passa.
Para ser um filósofo, em grave silêncio, me falta massa,

temas eternos, mente febril, serenidade no olhar,
imunidade a relógios e o grave prazer de pensar;

me exprimo com o nada, atento aos estertores da vida, 
neste espaço que me serve de confortável guarida,

para pensar em mim mesmo, amealhar meus ciclones,
ruídos da alma, como quem reaviva um cemitério de clones.

Como quem mira estrelas cadentes, na noite sossegada,
me estiro no sofá, respiro e realinho as curvas da estrada,

mais próximo de mim, inumeral, distante do mundo,
sem ser nenhum gênio, mago, de pensamento profundo.

Com um livro na mão, revista ou jornal, um copo de vinho,
converso comigo, meus dias e noites, com saudades de mim.

Ou com o que me resta de sustos, recompondo os cristais,
que a vida quebrou, o vento levou e, no entanto, quer mais.

E com tantos sentimentos vivos que me correm na veia,
na noite diversa, como um grão que se desprende da areia,

medito estendido no sofá desta sala como sempre agradável,
sempre calma, sem calor de emoções, sem tempo instável.

Enquanto a amada que vigia meus sonos dorme no quarto,
ouço na caixa de som alguém a dizer-se de sonhos farto;

eu próprio, em meu canto, me alimento de perdas também,
por minhas estivas mentais aguardo a madrugada que vem.

O vento lá fora rebenta vidraças, em plena alvorada;
cá dentro divago, espio a noite. Não espero mais nada.

Salvador, junho de 2006


ESTAÇÃO DE CAÇA
           
                        (...) por exemplo: “A noite está estrelada,
                        e tiritam, azuis, os astros ao longe”.
                                                                       Pablo Neruda
  
De longe brasa, mas de perto gelo;
Rumor de água ao passar, ouro o cabelo.

De mármore, estatura de colosso,
A beleza do corpo; o rosto moço
 
Lima e esculpe espírito e inteligência.
No olhar esquivo, um vórtice, uma ciência.
 
De alma em fuga, as duas pernas da aurora
Rompem com passo rijo o afã do agora:
 
Cenário de ânsias e melancolias,
Ruído que é de augúrio, fatos e dias

- o seu instante, na caverna lúcida.
Sol de galáxia me transfere luz, se da
 
Esguia taça de âmbar salpicada
De ardências me confunde e impõe-se fada
 
Arisca: rastro ágil de corça em relva,
Ou felino tropel rompendo selva.
 
Sobrevindo o fragor, estruge e planta
No imo do coração lodo de pântano.
 
Silencioso terror repele e ensombra
O que fora esperança, agora sombra,

Em rota de naufrágio. Apalpo o escuro
No mar de seus olhos, onde procuro,
 
Perscruto acenos, véspera do abismo.
Venço o risco, respiro atalhos, cismo.
 
Logo estancas, como água de remanso.
Longe dos cactos, eu também me canso.
 
Franqueada a noite para céu risonho,
Escancaro as janelas de meu sonho:
 
Qual colibri que sorve a flor num beijo,
Desfolho-te, mulher, enquanto arquejo.

SSA, 13/01/2007


BANHADAS DE LÁGRIMA ESTÃO AS PEDRAS

Ver a força do dia romper, vibrando
Entre um crepúsculo e o outro crepúsculo,
Ver surgir da terra um ranger de músculo;
Nada tenho a dizer, estou chorando.

O dia amanhece, quando amanheço,
Estático, no espaço da varanda.
Preso a formas e cores, não esqueço
A mão universal que isso comanda.

Afasto da mente a mediocridade
Que navega de um polo a outro do dia.
Cá me defronto com outra realidade,
Não tenho hora para a melancolia.

Natureza é tudo, me diz Cézanne.
Cá estou para ver, o resto se dane!

·         Resumo biográfico do autor
·         Nascido em Uruçuca, antiga Água Preta do Mocambo, no sul do Estado da Bahia, Florisvaldo Mattos diplomou-se em Direito (1958), mas optou pelo exercício do jornalismo, integrando inicialmente a equipe fundadora do “Jornal da Bahia”, como extensão da militância cultural de parcela do grupo nuclear da Geração Mapa, que atuou na Bahia nos anos 60 sob a liderança do cineasta Glauber Rocha. Ex-professor da Universidade Federal da Bahia, exerceu entre 1987-89 a presidência da Fundação Cultural do Estado; escritor e poeta, desde 1995 ocupa a Cadeira 31, da Academia de Letras da Bahia. Obras publicadas: “Reverdor”, 1965, “Fábula Civil”, 1975, “A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior”, 1996, "Mares Anoitecidos", 2000, e "Galope Amarelo e Outros Poemas, (todos de poesia); “Estação de Prosa & Diversos”, (coletânea de ensaios, ficção e teatro, 1997); e “A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates”, 1998 (ensaio). "Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa", ensaio, 2004. Jornalista, após passar por vários órgãos de comunicação, inclusive na chefia da sucursal do “Jornal do Brasil” na Bahia, desde 1990, integra a Redação do jornal “A Tarde”, de Salvador, onde até outubro de 2003 dirigiu o seu caderno “Cultural” (premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA), sendo hoje seu editor-chefe. Lnçou em 2011,”Poesia Reunida e Inéditos”, pela Escrituras Editora, de São Paulo, e este ano, em agosto, “Sonetos elementais – Uma antologia”, pela Caramurê Publicações, de Salvador. Tem em preparo um livro de ensaio memorialístico sobre boemia literária e mundanismo urbano nos anos 50 e 60. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário