DE FLORISVALDO MATTOS*
É
Imortal pela Academia de Letras da Bahia
FM
– 22.10.2005
QUARTETOS
DO OUTONO
Sono
que se desprende da algazarra,
sangue
que se dá ao corpo e se renova,
moedas
que se perdem numa farra,
crepúsculo
que é de sonhos boa prova.
Tudo
isso é marginal, o que mais vale
escorre
qual jasmins apodrecidos
entre
os dedos e pede que me cale
para
não acordar os dias idos.
Sou
mais o peixe que surge das tramas
da
água e alcança a plenitude viva
do
poente, ou mudo pássaro nas ramas,
que
celebra o que o coração aviva.
Lavro
sonhos na sombra. O claro-escuro
da
tarde declinante em meus lábios,
semelhando
palavras em um muro,
divulga
solilóquios e presságios.
A
leitura do corpo descarnado,
já
por emagrecer, já por desgosto,
mais
que seja de pranto navegado,
coleciona
ametistas de sol-posto.
Triste
Narciso que comove a artéria
por
onde correm a água e a paisagem,
busco
o rosto absoluto, a índole séria,
que
a torrente do tempo imprime à imagem,
no
espelho irremediável refletida.
Noites
são noites, e manhãs, manhãs.
E
as tardes que prescrevem para a vida
destino
de escrever palavras vãs?
A
frase que me morde o aflito crânio,
na
hora de adormecer, ideias claras
me
traz: cravo plantei, plantei gerânio,
em
pântano em que só nascem flores raras.
Vou.
Caminho. Corro, horas, dias, meses.
Livro-me
da armadilha dos delírios.
Não
quero ter um fim como o do grego,
Postado
na janela a contar círios.
Estou
só, entre as árvores queimadas,
que
margeiam meu rio distraído.
Faz-me
bem lembrá-las, eram amadas.
E
ele, pleno de curvas, comovido.
VIGÊNCIA
DA NOITE
A Guido Guerra, in memmoriam
Como
um pássaro que passeia devagar na estiva
de
um porto qualquer, olhos baços, mente esquiva,
divago
na sala, mirando as estrelas da noite que passa.
Para
ser um filósofo, em grave silêncio, me falta massa,
temas
eternos, mente febril, serenidade no olhar,
imunidade
a relógios e o grave prazer de pensar;
me
exprimo com o nada, atento aos estertores da vida,
neste
espaço que me serve de confortável guarida,
para
pensar em mim mesmo, amealhar meus ciclones,
ruídos
da alma, como quem reaviva um cemitério de clones.
Como
quem mira estrelas cadentes, na noite sossegada,
me
estiro no sofá, respiro e realinho as curvas da estrada,
mais
próximo de mim, inumeral, distante do mundo,
sem
ser nenhum gênio, mago, de pensamento profundo.
Com
um livro na mão, revista ou jornal, um copo de vinho,
converso
comigo, meus dias e noites, com saudades de mim.
Ou
com o que me resta de sustos, recompondo os cristais,
que
a vida quebrou, o vento levou e, no entanto, quer mais.
E
com tantos sentimentos vivos que me correm na veia,
na
noite diversa, como um grão que se desprende da areia,
medito
estendido no sofá desta sala como sempre agradável,
sempre
calma, sem calor de emoções, sem tempo instável.
Enquanto
a amada que vigia meus sonos dorme no quarto,
ouço
na caixa de som alguém a dizer-se de sonhos farto;
eu
próprio, em meu canto, me alimento de perdas também,
por
minhas estivas mentais aguardo a madrugada que vem.
O
vento lá fora rebenta vidraças, em plena alvorada;
cá
dentro divago, espio a noite. Não espero mais nada.
Salvador,
junho de 2006
ESTAÇÃO DE
CAÇA
(...) por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros ao longe”.
Pablo
Neruda
De
longe brasa, mas de perto gelo;
Rumor
de água ao passar, ouro o cabelo.
De mármore, estatura de colosso,
A beleza do corpo; o rosto moço
Lima e esculpe espírito e inteligência.
No
olhar esquivo, um vórtice, uma ciência.
De
alma em fuga, as duas pernas da aurora
Rompem
com passo rijo o afã do agora:
Cenário
de ânsias e melancolias,
Ruído
que é de augúrio, fatos e dias
- o seu instante, na caverna lúcida.
Sol
de galáxia me transfere luz, se da
Esguia
taça de âmbar salpicada
De
ardências me confunde e impõe-se fada
Arisca:
rastro ágil de corça em relva,
Ou
felino tropel rompendo selva.
Sobrevindo
o fragor, estruge e planta
No
imo do coração lodo de pântano.
Silencioso
terror repele e ensombra
O
que fora esperança, agora sombra,
Em rota de naufrágio. Apalpo o escuro
No
mar de seus olhos, onde procuro,
Perscruto
acenos, véspera do abismo.
Venço
o risco, respiro atalhos, cismo.
Logo
estancas, como água de remanso.
Longe
dos cactos, eu também me canso.
Franqueada
a noite para céu risonho,
Escancaro
as janelas de meu sonho:
Qual
colibri que sorve a flor num beijo,
Desfolho-te,
mulher, enquanto arquejo.
SSA,
13/01/2007
BANHADAS DE
LÁGRIMA ESTÃO AS PEDRAS
Ver
a força do dia romper, vibrando
Entre
um crepúsculo e o outro crepúsculo,
Ver
surgir da terra um ranger de músculo;
Nada
tenho a dizer, estou chorando.
O
dia amanhece, quando amanheço,
Estático,
no espaço da varanda.
Preso
a formas e cores, não esqueço
A
mão universal que isso comanda.
Afasto
da mente a mediocridade
Que
navega de um polo a outro do dia.
Cá
me defronto com outra realidade,
Não
tenho hora para a melancolia.
Natureza
é tudo, me diz Cézanne.
Cá
estou para ver, o resto se dane!
·
Resumo biográfico do autor
·
Nascido em Uruçuca, antiga Água Preta do Mocambo, no sul do Estado
da Bahia, Florisvaldo Mattos diplomou-se em Direito (1958), mas optou pelo
exercício do jornalismo, integrando inicialmente a equipe fundadora do “Jornal
da Bahia”, como extensão da militância cultural de parcela do grupo nuclear da
Geração Mapa, que atuou na Bahia nos anos 60 sob a liderança do cineasta
Glauber Rocha. Ex-professor da Universidade Federal da Bahia, exerceu entre
1987-89 a presidência da Fundação Cultural do Estado; escritor e poeta, desde
1995 ocupa a Cadeira 31, da Academia de Letras da Bahia. Obras publicadas:
“Reverdor”, 1965, “Fábula Civil”, 1975, “A Caligrafia do Soluço & Poesia
Anterior”, 1996, "Mares Anoitecidos", 2000, e "Galope Amarelo e
Outros Poemas, (todos de poesia); “Estação de Prosa & Diversos”, (coletânea
de ensaios, ficção e teatro, 1997); e “A Comunicação Social na Revolução dos
Alfaiates”, 1998 (ensaio). "Travessia de oásis - A sensualidade na poesia
de Sosígenes Costa", ensaio, 2004. Jornalista, após passar por vários
órgãos de comunicação, inclusive na chefia da sucursal do “Jornal do Brasil” na
Bahia, desde 1990, integra a Redação do jornal “A Tarde”, de Salvador, onde até
outubro de 2003 dirigiu o seu caderno “Cultural” (premiado em 1995 pela
Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA), sendo hoje seu editor-chefe.
Lnçou em 2011,”Poesia Reunida e Inéditos”, pela Escrituras Editora, de São
Paulo, e este ano, em agosto, “Sonetos elementais – Uma antologia”, pela
Caramurê Publicações, de Salvador. Tem em preparo um livro de ensaio
memorialístico sobre boemia literária e mundanismo urbano nos anos 50 e 60.
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