Memórias
de Luiz Carlos Facó
Encanto-me quando deparo ante uma
frase lapidar. Fico pasmo diante daquela que, em poucas palavras, encerra tudo
quanto o autor, objetivamente, necessitava dizer ou grafar para explicitação
cabal da sua ideia.
Sem mais nem menos. Ignorando dourados do estilo, liturgias
literárias, propiciadoras de falsas ou equivocadas canonizações. Tal capacidade conceitual, própria de alguns
eleitos em conceber ou cunhar frases que se tornaram antológicas, parece-me um
dom concedido a poucos pelos deuses da inteligência.
Praticantes desse ofício, mundo afora,
existem muitos. Porém, os considerados mestres, referenciados pela lucidez e
pela agudeza criativas são episódicos. Mas, caudalosos no esbanjar talento.
A Bahia, particularmente Salvador, sua
gente, suas mulheres, suas belezas naturais, a culinária têm sido alvos por
parte desses monstros criativos de conceituações soberbas.
Sílvio Valente, poeta baiano, forjado e bebido nos
alambiques de Santo Amaro da Purificação, cuja cachaça, ali produzida, beirava
à perfeição do néctar destilado por Baco,
dono dos melhores alambiques do universo, satírico e lírico a um só tempo, e
cuja veia poética jamais esmaeceu durante seu diminuto ciclo de trinta e quatro
anos de vida, escreveu acerca de suas conterrâneas: “Cheira manga rosa, tem gosto de sapoti, olhares de coisa feita, é doce
como arroz-doce e treme que nem canjica. Mas, faz chorar como pimenta e
escorrega que nem ladeira...” Acerca da Academia de Letras da Bahia, pouso
honorário e definitivo de intelectuais aclamados, ele grafava ser uma: “Sociedade onde se entra imortal e sai morto”.
Pergunto, sem jactância: há porventura
na história da literatura, uma definição mais própria e tão enfática da mulher
baiana? Duvido!
Monteiro Lobato, ícone da minha infância e juventude,
onímodo escritor, amo do Sítio do Pica
Pau Amarelo, Caçadas do Pedrinho,
Urupês, A Barca de Gleyre e tantos outros tomos, ensandecidos de
genialidade, visceralmente ligado à Bahia, principalmente, na luta empreendida
em considerar O Petróleo é Nosso, escreveu, alhures, sobre o povo desta Terra
Paraíso: “Vocês (baianos) fazem da
amizade dos pratos da cozinha baiana: um vatapá de sentimentos, um efó do
coração.”
Pablo Neruda, festejado poeta chileno, quando em visita a
esta Terra de tantos dengos e inspiração, a ela se referiu: “Uma cinta de misterioso feitiço envolve a
cidade da Bahia (Salvador)”.
Octávio Mangabeira, ex-governador deste sítio
paradisíaco, famoso por suas tiradas irreverentes, perspicazes, confidenciava
aos amigos: “Pense em um absurdo. Na
Bahia já aconteceu”. Ou, “Baiano é
capaz de gastar cem para outro não ganhar dez.”
Manoel Benício dos Passos, figura do folclore baiano, no final
do século XIX, ao apagar das luzes do reinado de Pedro II, criou uma máxima com
a legitimidade da imortalidade: “Baiano
burro nasce morto”.
Não é preciso bamburrar, como fazem os
garimpeiros, no leito dos rios, para encontrar diamantes tão valiosos, quer em
pureza quer em quilates, como os acima expostos. Eles são mais, facilmente,
encontradiços do quanto imaginamos. Basta que nos dediquemos a uma garimpagem
prática e corriqueira. Resumidamente: folhear e ler bons livros, nos quais, por
certo, encontraremos à disposição esses tesouros, adornos que costumo nominar
de artesanatos culturais ou ourivesarias da escrita.
Há alguns anos, então morador da
bucólica Pituba, tempos idos que não têm volta, convidei à nossa casa, para
passar alguns dias, uma amiga que fizera no curso primário – meu primeiro amor,
amor de criança, grito de heterossexualidade. Ela, auto desterrada em Paris,
por motivos profissionais e sentimentais – casara-se com francês – aceitou, de
pronto, minha veemente convocação, feita em tom de intimação.
Margarida é o nome dela. Com marido e
filhos a tiracolo, chegou ansiosa. Dizia e perguntava a um só tempo: rever a
boa-terra já era de bom tamanho, confraternizar com parentes e amigos era
ótimo, sentir suas raízes novamente seria como beber do leite-mãe, que seus
filhos sorveram dos seus seios, intumescidos dele, quando nasceram. O que de
melhor poderia então acontecer naquela oportunidade?
Como não há história sem humor nem
drama, conto uma irmã gêmea da graça, afundada no inusitado, chafurdada no patético.
Ao desembarcar no aeroporto, naquela
época, 2 de Julho, virgem de nomes de santos ou políticos, Margarida estava
submetida ao fluxo menstrual. Preocupada com o fato, pede ao marido que
corresse à farmácia, em busca de absorventes íntimos. Esse, pouco familiarizado
com o idioma, recorre a minha ajuda.
Tarefa resolvida em dois tempos pela farmacêutica, com a indicação da
marca Tampax. Última novidade mercadológica para mulheres que se propunham
tomar banho de mar, de piscina, andar muito, usar calças, bermudas e shorts. Era, segundo a profissional,
última palavra para libertar mulheres ativas das inconveniências daqueles
incômodos mensais.
Em casa, arriadas as bagagens,
detivemo-nos pouco. Ganhamos a rua. Demandávamos tempo para comprar mortalhas e
acesso às atrações do carnaval, que logo rebentaria com a força dum terremoto,
tão caro a minha conviva, mas dele divorciado há duas décadas. Festa, inda
restrita ao Campo Grande, Avenida Sete, Praça Castro Alves e a da Sé, comandada
por Luís Caldas, Sara Jane, Gerônimo, o Trio Elétrico de Dodô e Osmar, grandes
astros da época do frevo baiano e do incipiente axé.
Entretidos em bater pernas, na azáfama
das compras de última hora, passamos o dia inteiro na rua. Culminamos jantando num restaurante qualquer,
divorciados dos compromissos que a vida nos impõe.
Já em casa, depois dos cuidados em
arrumar bagagens dispersas pelos quartos, quando nos preparávamos para o
descanso noturno, eis que somos tomados por um grito aterrador vindo da suíte
onde Margarida se encontrava.
O afefé –
vocábulo ioruba, muito empregado nos terreiros de Salvador, cujo conceito,
segundo Dorothy Miranda, estudiosa competente dos costumes afro-brasileiros,
nos ensina: “Afefé - a tempestade/ é
vento muito forte,/ o companheiro de Iansã/ é coisa de grande porte.” –
abateu-se sobre nossas cabeças.
Os gemidos de
Margarida misturados aos idiomas ali falados, francês e português, o desespero
do marido, os gritos dos filhos, remetiam-nos à aflição e às perguntas: o que
aconteceu? Ela está bem?
Não fora
confirmação do adágio popular de que “depois
da tempestade vem a bonança”, teríamos penado, mais. Muito mais. Bonança,
advinda de uma confidência de Claude:
Margarida nunca usou Tampax. Viu-se
em apuros para arrancá-lo. Fui ajudá-la. Daí, o abre pernas, que vocês devem
ter ouvido, a ela por mim determinado no sentido de retirá-lo naturalmente.
Malgrado minhas boas intenções, não consegui, meus dedos longos e desajeitados
devem tê-lo empurrado para bem longe do canal vaginal. Com os olhos marejados
dizia crer que esse estrupício devia estar a caminho do útero. Urgia levá-la ao
hospital.
Socorrida a
tempo por médicos diligentes, Margarida escapou de maiores consequências, sob
comentário chistoso do marido. Felizmente meu ninho de prazeres escapou ileso.
Doravante, adeus Tampax.
Nosso
carnaval foi apoteótico. Encontramos velhos amigos, congraçamo-nos com
desconhecidos, bebemos o quanto pudemos para saciar a sede dos destilados,
comemos as porcarias vendidas pelos ambulantes, gastamos nossas energias, sem
outro motivo senão emularmos aqueles que nos cercavam. Apreciamos, curiosos, ruas tomadas por
multidões de foliões, com parecença de peixes no período da piracema, cardumes
imensos de várias espécies, nadando na mesma direção, determinados, contando
com a ajuda da natureza, com o instinto a indicar-lhes o caminho como o trio elétrico
o mostra aos histriões. Afrontando a correnteza que os empurra para trás,
seguiam impávidos, sem esmorecimentos ou deserções. Na certeza de que
prestesmente encontrariam o local ideal para o bailado da procriação, e, em
meio ao qual, fêmeas despejariam suas ovas para serem fertilizadas pelos
reprodutores.
Nesse cenário
psicodélico, o ar impregnara-se do cheiro gostoso do desejo, da volúpia da
fornicação, deixando-nos a impressão de atuarmos nela como coadjuvantes ou
meros espectadores privilegiados de uma orgia do inferno de Dante.
Ao ocaso
daquela visita sentimental, para mim, como dizem os franceses ravissant, indaguei de Margarida o que
achara de Salvador. Ela, como um raio
que despenca dos céus, omissos de avisos ou contemplações, disse sem meias
palavras: - “é a única cidade do mundo
que cheira, a um só tempo, a esperma, suor e cerveja”.
Não é
maravilhoso em poucos vocábulos resumir Salvador?
Daí esta
crônica, cujo propósito foi enaltecer aqueles que, sucintamente e sem
hipocrisias puritanas, são capazes de dizer melhor do que os frasistas
verborrágicos e impostores.
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