O dono de metade da Ilha de Itaparica*
Conto de Luiz Carlos Facó
*Personagens e história são reais. Remontam à minha meninice e
juventude.
Eu o conheci beirando seus oitenta
anos, ou quando havia ultrapassado essa marca. Magro, espigado, vistoso, de
cabeleira negra e basta, não apresentava a idade que lhe imputavam. Só a
severidade nas atitudes e o cenho sempre cerrado poderiam lhe aproximar daquela
estimativa, guardada por ele, a sete chaves. Apesar daquela sisudez, sua voz
era serena, quase doce. Jamais alguém o ouvira altear a fala para repreender,
mais asperamente, um desafeto ou algum dos seus presos. Presos? Sim. Ele os
fazia, aos magotes. Era o delegado da localidade, denominada Duro, na Ilha de
Itaparica.
Como não havia criminosos por aquelas
bandas sua atividade se voltava para prender bêbados. Não os suportava. Mas
tinha justificativa para as suas detenções: todo “come água” é inconveniente. E
descortesia é ofensa, até para mulher-dama. Portanto, prendê-los é dever da
autoridade. Nem que seja para curar o porre de cão no cimentado chão da
delegacia.
- Esse menino vai ser nó cego. É dos
bons, vai dar trabalho. Irá tirar muito “cabaço” de mulher bonita pela vida
afora e tem o corpo fechado por Exu – dizia Honorina, aparadeira, ao exibi-lo
aos presentes logo após a ocorrência do parto. Numa presciência, quase nunca
desmentida. Olhem – dizia ela, sublinhando sua observação e apontando, a todos,
o “colhão” do recém-nascido – nunca vi mais roxo. É dos bons, daqueles que
todas as mulheres babam, se enrabicham.
Nascido nos caminhos do oeste baiano –
paraíso de encantamento projetado e criado por divindade de bom gosto,
apurado senso estético, onde se encontram as cachoeiras do Redondo e do
Acaba-Vida, localizadas na bacia do rio de Janeiro, que se estende por milhares
de hectares. Com veredas típicas do cerrado, palmeiras de buritis e matas
ciliares, num ecossistema que abriga uma fauna riquíssima. Com chusmas de
veados, tamanduás, tatus, aves e répteis, sobressai-se o rio de Ondas. Terra de
abundância e de irrepreensível beleza, mas que pertencia a poucos, que não a
dividiam sequer para meação. Daí a razão, penso eu, do êxodo familiar vindo a
seguir.
Ali Nozinho viveu até seus nove anos
sem arredar passo, até quando seus pais trocaram o município de Barreiras pela
Ilha de Itaparica, em busca de trabalho e fortuna. Com o correr do tempo, a
família enricou. O menino, crescido bonito e fogoso, açambarcara a bem-querença
de todos, além da admiração das mulheres. Elas caiam-lhe aos pés. Dele, todas
eram escravas. Satisfaziam-no nos seus menores e maiores desejos e caprichos.
Algumas se apaixonaram tanto por ele, que abriam os seus baús à espada, ágil e
irrequieta, orgulhosamente sustida entre as pernas do D. Juan.
Com o passar do tempo, o
desassossegado jovem monopolizara, além do posto de autoridade, todos os demais
poderes administrativos que, porventura, saciassem a sua vontade de mandar, comandar,
ditar, determinar. Nem por isso ficou menos querido. Sua gente, como ele mesmo
proclamava, procurava-o em busca de conselho, orientação e pedidos. Esses,
quase sempre, atendidos. Quando justos, gabava-se em afirmar. Dele, dizia o
povo:
- É um ilhéu “retado”. Esquecido das
suas raízes longínquas. E mais: tem o corpo fechado e saco roxo. Nasceu assim:
um belo reprodutor.
O número de suas desvirginadas era
incontável. O de filhos, da mesma forma. Quando à porta de casa ou da
delegacia, não se cansava em responder:
- Deus o abençoe, meu filho – aos
meninos e meninas que passavam diante dele pedindo-lhe a bênção.
Era do seu feitio jamais rejeitar quem
se proclamasse do seu sangue. Do nome de todos talvez não lembrasse, os das
mães, jamais esqueceu. Com elas, era dócil e paciente. Não se furtava de
prestar-lhes socorro, mormente àquelas desertadas de morar com ele, por motivos
vários, no imenso casarão de mais de vinte quartos que erguera na principal
praça da vila. Casa que parecia um mafuá, dada a balburdia nela existente; o
vozerio esganiçado do mulherio, da criançada e da diversidade de gente que por
lá transitava e trabalhava.
Filho único de pais ricos, deles
herdou, em terras e dinheiro, fortuna incalculável. Era praticamente dono da
Ilha, além de extensa plantação de dendê e usina de beneficiamento do azeite,
mangueirais, cajuais e todo tipo de frutas. Só de saveiros, navegando pelo
recôncavo, indo e vindo repleto de mercancias, tinha pra lá de dúzia e meia.
Desprezava, contudo, mexer com gado. Dizia ele:
- Dá trabalho. Esse animal só vive com
bicheira, e quando se solta, êta canseira para trazê-lo de volta.
Inteligente, mas totalmente ignorante,
fizera o curso primário na “marra” e usava dicionário próprio para
comunicar-se. Para ele, “espancar pose” nada mais era que querer aparecer;
“filé”, gente bonita, mulher formosa, “um petisco”; “dilurimento”, mal estar,
incomodo; “milambas”, puxa-saco sem vergonha; “cangaço”, pessoa esquelética;
“resenha”, correspondia a crítica; “tomando sopa”, se fazendo de besta;
“carroceria arrumada”, mulher de bunda bem feita, de bunda arredondada que nem
a coroa do meio (uma coroa formada de areias alvíssimas que imergia das águas
oceânicas que banhavam o litoral do Jaburu); “capa de cangaia”, mulher sem
atrativos, mulher feia; “sentar a mutamba”, surrar, dar uma coça para valer.
Esse particularíssimo e singular dialeto – quem disse que não existem dialetos
no Brasil? – só os ignorantes, que
desconhecem, aqui, além do português, falam-se outras cem línguas – indígenas –
e diversos linguajares regionais, como o adotado por Nozinho, trazido das suas
origens e cultivado por seus pais, ao qual ajuntou o dos ilhéus.
- Vai de “onze” – a pé – compadre, pra
donde? - perguntava Nozinho ao passante, aligeirado, que chispava diante da sua
casa.
- Vou visitar meu pai. Como minha mula
está manca, vou arrastando areia – respondia o passante, remando que nem
barqueiro em dia de vento contra.
- Sossegue, homem, monte minha égua
ela está “porreta” trotando beleza! Não renegue a oferta, considerarei ofensa
se o fizer.
Doutra feita, aconselhava a um amigo:
- Soube que vosmecê, seu “azuado” anda
“purgando” (escorrendo pus) pela “manjuba” (genitália). Isto é como levar um
“sapeca-iaiá” (cacetada). Procure o Dr. Pio
Bittencourt, ele cura esse incômodo num instante. Por enquanto, por
precaução, afaste-se das “quengas” do puteiro. Dê prazo à libertinagem.
Mesmo assim, com esse falar
arrevesado, todos o compreendiam e, respeitosamente, o afagavam, quer pela sua
bondade quer pelo grande cabedal que dispunha e ostentava, sem jactâncias.
Dada à grande compatibilidade dele com
o povo e à admiração devotada pelas mulheres por aquele macho de traços
marcantes e olhos azuis, não raramente aparecia a Nozinho uma mãe rebocando
pela mão uma filha, por volta dos quatorze ou quinze anos, com sobejos
prenúncios de boa parideira, com o seguinte cochicho:
- Sabe, moço, tenho ouvido falar muito
bem do senhor. Dos seus cuidados com as pessoas. Do seu espírito caridoso. Como
sou mulher pobre, privada de marido, mãe de uma resma de filhos, impedida de
posses para bem criá-los, trouxe-lhe Nenzinha, minha filha mais velha, para que
o senhor a arranche. Trabalhadora é. Faz de um tudo. Sossegada, vive no seu
canto. Varre, arruma, lava, passa, cozinha o trivial e não tem medo do trabalho
pesado. Segundo sei, o senhor seria incapaz de negar-me um adjutório para
aprumá-la. Ademais, ela é jeitosa. Pura formosura, e, como toda mulher moça,
nessas condições, poderá trazer alegrias para vosmecê e a sua casa.
- Como é mesmo a sua graça, dona? –
perguntou-lhe Nozinho.
- Eudóxia, moço bonito!
- Pois é, iaiá, já apadrinho doze
jovens, com mais uma seria uma renque para sustentar.
- Mas o senhor pode, “seo” Nozinho.
Além disso, não se despreza um galho verde como esse, um rebento que se prepara
para dar seus primeiros frutos. Na flor da idade, taluda, de pele macia,
cabelos lisos e dentes da brancura da espuma das marés. Um pitéu. Demais, veio
de mala e cuia.
- Sendo assim, Eudóxia, fico com ela
se for limpinha e não tiver “aftim” (morrinha) não suporto mulher bodosa, que
cheire mal.
- Quanto a isso fique despreocupado,
ela tem fragrância de mato virgem, cheiro de terra quente molhada de chuvisco,
odor de alfazema, incenso e mirra.
Não se pense, contudo, que o jovem
caritativo (!) tão logo se apossasse da futura cria, levasse-a, de imediato,
para a cama. Longe disso. Ele observava a rapariga por vários dias. Reparava
nos seus trejeitos. Atentava no seu modo de ser, sentar, conversar, trabalhar,
principalmente lhe conferia o sorriso – carecia não ter nenhum dente cariado.
Só muito depois, apreciando o espólio, se ele o cativasse, através do jogo da
sedução, o conquistador se aproximava da preia. Precavidamente levava dias
atiçando a cobiçada através de pequenos mimos, de comedidas atenções. Começando
por presenteá-la. Ora um paninho de chita para um vestidinho bem caprichado,
uma sandália de couro, uma argola, uma pulseira, um perfume, de preferência
Royal Briar, um ruge, um batom, uma calcinha, um sutiã, uma camisola rendada.
Pequenas coisas para empetecá-la. Só então, cumpridas tais formalidades, partia
para a cama, depois de um jantar a dois, com muita ostra e carne pé de bunda.
Era a hora do vamos ver, da festança do himeneu. E, que festança...
Os habitantes da ilha, quase todos
miseráveis, e cuja alimentação provinha da pesca artesanal, moradores em
casebres rústicos levantados de adobe e recobertos de fibras de piaçava,
ganhando parco dinheirinho advindo do artesanato de barro que preparavam,
ficavam encantados com o desprendimento de Nozinho em alimentar tantas bocas,
vesti-las e educá-las. Os comentários a esse respeito eram quase unânimes,
louvando-o. Só uns poucos faziam muxoxos a tal laudatório. Na verdade,
desdenhavam-no, classificando-o corruptor de menores, homem sem compostura, um
aproveitador de donzelas e de suas precárias situações sócio financeiras. Varão
assim, desconjuro. É um aproveitador, isto sim. Ademais, desrespeitoso com a
comunidade.
Padre Lemos, pároco da Igreja do
Coração de Maria, nesse sentido, muitas vezes, falara com Nozinho.
- Meu amigo, modere seus ímpetos.
Contenha-se. Evite abrigar essas jovens sob seu teto. Tantos concubinatos são contra a lei de Deus
e dos homens. Algum dia, você há de prestar contas a Ele, que tudo sabe e tudo
vê através da Sua Onisciência, Onipotência, Onipresença.
- Não se preocupe, meu bom homem –
respondia o aconselhado, dispondo de toda a sua argúcia e civilidade. Essas
meninas estão aqui porque pais e mães, insistentemente, me pediram.
Impuseram-me. Nenhuma delas achegou aqui por porta travessa ou a contragosto,
obrigada ou arrebanhada por este seu servo, de forma vil ou às avessas. Sem
exceção, todas dispõem de livre-arbítrio. Frequentam escola, são bem vestidas,
alimentadas, e, quando se enamoram de algum jovem espadaúdo e bonito,
trabalhador, coisa que não impeço, arrumo a vida delas e dos maridos ou
amásios. Nunca deixei nenhuma na rua da amargura. Infortunadas. Propicio-lhes
bom recomeço de vida. O dote que lhes dou, quando partem, é suficiente para
iniciarem um renascimento decente, eventualmente tenham juízo. Acaso todos
agissem como eu, esse “miserê” que nos cerca jamais existiria.
- Mas, meu amigo – insistia o padre –
este seu sultanato, com todas estas odaliscas mirins é um acinte à inteligência
de todos. Ninguém de bom-senso crerá que você não se aproveite delas. Não as
use para satisfação do seu apetite sexual.
- Padre, darei liberdade a qualquer
pessoa para inquiri-las, indagar-lhes se as molesto. Se algum dia as forcei
deitar-se comigo. Acaso provada essa indignidade, imputada sem razão a este seu
servidor, serei o primeiro a mandar-me daqui de tão injuriado e envergonhado
que ficarei. Elas vêm a mim espontaneamente, como eu vou ao senhor dar meu
óbolo para a Igreja e suas obras sociais, como, da mesma forma, paguei as construções
das escolas daqui, o salário dos professores, a edificação do mercado local, o
erguimento do pequeno estaleiro para reparo das embarcações dos nossos
pescadores. E tudo isso faço sem alegar, sem pleitear cargos políticos. Sou
delegado por imposição e detenho alguns poderes porque me foram outorgados,
impingidos. Nada pleiteei e jamais mendigarei poderes, embora os tenha. Sou
insubornável ao aliciamento e à
corrupção. Peco por ser orgulhoso.
Poderia até ser deputado, mas descarto a honra.
Essas conversas prosperavam, quase
sempre, quando os dois se encontravam, mas jamais as levaram ao convencimento
de um ou do outro. Acontecidas em alto nível, nenhuma delas provocara ranhuras
na amizade existente entre ambos. Porém, cada qual ficava em seu cada qual,
ocupando trincheiras opostas, plenas de armamentos e munições de ataque, ou
sejam, as palavras do convencimento e as das concessões. As últimas, poucas.
Porém, revestidas de capacidade cicatrizante. Propiciadoras a que ambos
continuassem a exercer seus sacerdócios: Lemos, pregando as palavras do Senhor,
Nozinho, acoitando as donzelas necessitadas e trepando-as.
Para o comedor de donzelas, o tempo
passava como de costume. Parecia indolente, mas capciosamente fugaz. Fazia o
bem! Sempre “fudião” e reproduzindo que nem garanhão premiado. Indo daqui a
acolá, sem tirar os pés da ilha, seduzia sem se apaixonar.
Para ele paixão era uma “xoxota” bem
carnuda, um “grelo” grande, peitos duros e bicos intumescidos, mulher de
cintura fina, coxas grossas, bunda bem esculpida, sorriso debochado e ais e uis
estridentes na hora do acasalar. Contar, embora sua sisudez dissesse o
contrário, seus “causos” que eram muitos; alardear a sua verve, quando reunido
com amigos e até desconhecidos.
Uma vez, fui protagonista de um desses
episódios. Tinha eu por volta de oito ou dez anos. Contava ele a um grupo de
amigos, que carne pé de bunda é que lhe dava sustança. Portanto, chovesse ou
fizesse sol, haveria de ter à mesa aquela iguaria. Eu, na minha inocência,
ousei interrompê-lo:
- O que é carne pé de bunda?
- É carne do traseiro do boi.
Duríssima, porém bem preparada vira acepipe, coisa fina.
- E o senhor só come dessa carne -
indaguei, acenando-lhe minha óbvia pureza.
- Eu lá sou besta, meu filho. Eu
também como, diariamente, carne mijada. Olhe em volta e veja quantos meninos e
meninas saíram delas.
Dada a resposta, as gargalhadas dos
ouvintes ecoaram ensurdecedoras. Sem nada entender, fiquei “a ver navios” como
avestruzes, segundo afirmam os ignorantes, que, para escapar dos predadores,
enfiam a cabeça em qualquer buraco encontrado no pasto.
Dias depois, minha mãe, ao servir-me
uma feijoada, na nossa casa de veraneio, em Mar Grande - Ilhota, pergunta-me,
diante dos seus convivas:
- Luiz Carlos, que carnes você deseja
para acompanhar o feijão?
E, eu, munido das informações de
Nozinho, repliquei com firmeza:
- Pé de bunda e carne mijada, elas dão
sustança.
Àquela infeliz declaração todos
emudeceram. Minha mãe quase deixa cair o prato que detinha em suas mãos, os
convidados entreabriram os lábios num pálido sorriso, como se dizia à época,
num sorriso amarelo. Só meu pai contrastava naquele cenário de estupefação. Ria
à larga. Um riso folgazão, gostoso, gargalhada que fez desanuviar o ambiente,
mas incapaz de privar-me da reprimenda:
- Meu filho, não repita mais isso,
depois eu lhe explicarei do que se trata - explicação caída nos emaranhados do
esquecimento, ou, propositadamente omitida, para não açular os instintos da
concupiscência que, atavicamente, nascem conosco.
“Ó paí, ó”! Parece que a desgraça
sempre anda a espreita de alguém para atazaná-la. Inferná-la. Desestruturá-la.
Um belo dia, aparece no Duro uma
mulher carregada de bagagens. O saveiro que a transportara estava repleto delas.
Eram malas e mais malas, quinquilharias e embrulhos, montões de embrulhos.
Descarregados, encheram a ponte de atracação. Os carregadores, ali postados,
gananciosos em ganhar uns “bicos” ofereceram seus préstimos à dona, que, antes
de contratá-los, perguntou:
- Há algum hotel por aqui, ao menos,
uma pousada onde possa hospedar-me?
- Hum! Desses luxos madame, carecemos.
Nem rancho temos. No Duro, só existe uma casa que poderia dar guarida a
vosmecê. É a casa do seu Nozinho. Grande é, mas vive cheia. Portanto, será
difícil de encontrar cama desocupada para acomodá-la. Apressou-se em informá-la
um daqueles que a cercavam.
- Em sendo assim, arriba pra lá, pra
casa do Nozinho – apontou, decidida, a estranha visitante.
A caminhada era curta e se fez rápida.
E, em lá chegando, Nozinho, que desfrutava da fresca da manhã, no passeio
confronte a sua casa, levantou-se para melhor divisar a procissão, capitaneada
pela mulher, que se dirigia em sua direção e a qual, depois de alguns passos,
postou-se defronte dele.
Nesse instante, os olhos do velho
delegado repousaram em meio aos daquela jovem e deliciosa rapariga. Posso
dizer, dos deles saíram faíscas. Faíscas de deslumbramento, fogos de artifício,
que espocam nos céus, formando caleidoscópios de concepções, imagens e cores
que transcendem nossas imaginações. O coração do ancião saíra do andamento de
valsa, que até então o regia, e passara a ser tangido pelo andamento de um
tango, de um samba, de um cancã. Tão lépido batia, que lhe ocasionou breve
instante de entorpecimento, e em cujo lapso as palavras lhe faltavam. Ou, se
ditas, eram desconexas. Dos dela, escapavam o espiar da curiosidade, o exame
minucioso do interlocutor, as labaredas da malandragem, as expressões de uma
“bagageira” (meretriz) escolada, o mirar de um predador sobre a vítima.
A privação do mutismo acontecido só se
desfez graças à informalidade da visitante. Perspicaz, observadora do impacto
que causara, fez-se mais insinuante e, mostrando um sorriso devastador, pleno
de blandícias, cutucou verbalmente o visitado:
- Bom dia, senhor Nozinho. Meu nome é
Susete. Sou viúva. Chegada do Rio de Janeiro há poucos dias. Aqui, aportando,
fui informada da indisponibilidade de acomodações para mim. Por isso vim
pedir-lhe guarida por um par de dias, até comprar uma casa que me acolha.
Desculpe-me a ousadia, mas esta é a única solução que encontrei para não pegar
o caminho de volta.
Estático, maravilhado – era para estar
mesmo ante a beleza daquela mulher, criada sabe-se lá por quem, talvez por um
escultor grego, dada a harmonia dos traços daquela figura envolvente, um sex-symbol – o instado meneava a cabeça,
passava as mãos pelos fartos cabelos sem concatenar as ideias ou dar uma
resposta à inquisidora. Numa espera inquietante para ela que por meios e modos
procurava insinuar-se ao interlocutor.
Passados aqueles instantes de
incerteza e expectativa, finalmente Susete fez-se toda sorrisos ante a fala de
Nozinho:
- Terei prazer em recebê-la. A demora
está em arrumar um quarto. Mas, dá-se um jeito.
A essa decisão, desencadearam-se
explosões de descontentamentos e estupefações. As mulheres da casa
queixavam-se. Discutiam entre si. Era um “esperretetê” só. Quase em uníssono
afirmavam que a paz delas tinha ido para o brejo. O povo, que se aglomerara
diante da casa de Nozinho, para conferir a beleza majestática da visitante,
exclamava:
- Valha-nos, Deus. O homem ficou “lelé
da cuca”, abrigou Exu travestido de saia. Onde já se viu dar guarida a uma
desconhecida? E se for “marreteira”? Uma criminosa? Esse “mais velho que corno”
(ancião) está se metendo em “camisa de onze varas”, está armando um “mangue de
fazer dó”.
Se tais imprecações foram ouvidas por
Nozinho, ele as ignorou. Susete já se acomodara no cômodo a ela reservado com
todas as pompas e circunstâncias.
Em toda a Ilha, não se falava doutro
assunto senão da misteriosa dama instalada na mansão de Nozinho. Era tema
obrigatório, provocador de mil opiniões e prognósticos funestos. Até os
terreiros de Mãe Mundica e de Mãe Ritoca, famosas por suas predições,
preocupadas com a situação, anteciparam as festas ritualísticas em homenagem
aos seus santos de fé, desejosas em ouvir os Orixás. Mas, em ambos os xirês,
roda de força de invocação dos Orixás, aconteceram imprevistos. As equédes,
filhas-de-santo, das duas casas, só incorporavam Exu. E este, irreverente, como
sempre, fazia ameaças e imprecava:
- Aquele Nozinho, “potroso” (portador
de escroto grande), – “rei da cocada preta”, comedor de virgens desvalidas, vai
se mancar, esvaziar o mealheiro, vai ficar “fuleiro” (sem eira nem beira). Ele caiu na minha armadilha. Agora, dane-se!
Comeu tanta “xoxota” que agora vai ser comido.
Ante tantas ameaças, prenúncios
aziagos, restou aos participantes dizer baixinho: - “Vixe Maria”.
Avisado dos catastróficos vaticínios,
Nozinho deu de ombros. Na verdade ele só se ocupava de Susete. Seu coração, que
jamais conhecera o amor, estava mergulhado por inteiro naquele sentimento que
lhe surgira repentinamente. Tanto assim, obediente aos desejos da amada,
desfizera-se das concubinas, mesmo com grande aperto no peito. Deixara de lado
os amigos, abandonara a delegacia, as atividades comerciais. Só pensava na
cama, no bem bom, na hora de vadear. Estar ao lado de Susete, de quem
desfrutava das aulas ministradas pela rameira, PHD em libertinagem, conhecedora
do Kama Sutra, de trás para frente, de frente para trás e das catilinárias do
sexo, disso, Nozinho não abria mão. E tal foi sua perdição. Susete, esperta
como uma águia, que à distância localiza a presa e com voo rasante subjuga-a,
de forma implacável, depois de insistentes e recusados pedidos de casamento,
aceitou concretizá-lo, acaso Nozinho passasse seus bens para o seu nome. Sob a
alegação de que, com a idade dele, não poderia realizá-lo em comunhão de bens.
Reticente, Nozinho procrastinava a
decisão. Deixava-se quedar no enigma shakespeariano: “ser ou não ser, eis a questão”. Ao mesmo
tempo, Susete, useira e vezeira em aplicar golpes baixos, “arrumava a cama” –
compunha-a de acordo com a vontade dela. Fazia-a macia, ao idoso amásio. Agia
sempre repleta de surpresas. Ora, um coito anal, por vezes, um oral. A maioria
das vezes um “sessenta-e-nove”, prática desconhecida pelo velho, que a ela
tanto se apegou fazendo-o debandar do papai-e-mamãe, do convencionalismo, para
adotar aquelas maravilhosas práticas.
Feita a papelada, consumou-se o
casório, sem comes e bebes. Numa cerimônia simples, com parecença de velório.
Casamento que só durou um mês, pois Susete, num descuido de Nozinho, alugara um
saveiro e se mandara para outras plagas, deixando atrás de si um marido
esquelético, ardendo de fogo e paixão, esquecido num casarão vazio e de posse
de um único bem, a primeira fazenda que o seu pai comprara na região.
Está visto que Nozinho não tinha o
corpo fechado. Exu fizera a parte dele, como prometera. O povo tinha razão.
Susete era o próprio, em forma de mulher.
Dessa
história, parte do folclore itaparicano, prenhe de irracionalidades, típica da
fragilidade humana, dos sentimentos que sacodem a alma dos fracos como erupções
vulcânicas fazem tremer o chão de bucólicas regiões, acode-me, sentença do
escritor Otávio Melo Alvarenga para
explicá-la: “Os abismos só se cavam aos
pés de quem os anda palpando.” Rematada por um provérbio inglês, muito
antigo: “Depois da festa, conte as
consequências”.
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