quinta-feira, 7 de novembro de 2013

SENHOR NOZINHO

O dono de metade da Ilha de Itaparica*

Conto de Luiz Carlos Facó




*Personagens e história são reais. Remontam à minha meninice e juventude.


Eu o conheci beirando seus oitenta anos, ou quando havia ultrapassado essa marca. Magro, espigado, vistoso, de cabeleira negra e basta, não apresentava a idade que lhe imputavam. Só a severidade nas atitudes e o cenho sempre cerrado poderiam lhe aproximar daquela estimativa, guardada por ele, a sete chaves. Apesar daquela sisudez, sua voz era serena, quase doce. Jamais alguém o ouvira altear a fala para repreender, mais asperamente, um desafeto ou algum dos seus presos. Presos? Sim. Ele os fazia, aos magotes. Era o delegado da localidade, denominada Duro, na Ilha de Itaparica.
Como não havia criminosos por aquelas bandas sua atividade se voltava para prender bêbados. Não os suportava. Mas tinha justificativa para as suas detenções: todo “come água” é inconveniente. E descortesia é ofensa, até para mulher-dama. Portanto, prendê-los é dever da autoridade. Nem que seja para curar o porre de cão no cimentado chão da delegacia.
- Esse menino vai ser nó cego. É dos bons, vai dar trabalho. Irá tirar muito “cabaço” de mulher bonita pela vida afora e tem o corpo fechado por Exu – dizia Honorina, aparadeira, ao exibi-lo aos presentes logo após a ocorrência do parto. Numa presciência, quase nunca desmentida. Olhem – dizia ela, sublinhando sua observação e apontando, a todos, o “colhão” do recém-nascido – nunca vi mais roxo. É dos bons, daqueles que todas as mulheres babam, se enrabicham.  
Nascido nos caminhos do oeste baiano – paraíso de encantamento projetado e criado por divindade de bom gosto, apurado senso estético, onde se encontram as cachoeiras do Redondo e do Acaba-Vida, localizadas na bacia do rio de Janeiro, que se estende por milhares de hectares. Com veredas típicas do cerrado, palmeiras de buritis e matas ciliares, num ecossistema que abriga uma fauna riquíssima. Com chusmas de veados, tamanduás, tatus, aves e répteis, sobressai-se o rio de Ondas. Terra de abundância e de irrepreensível beleza, mas que pertencia a poucos, que não a dividiam sequer para meação. Daí a razão, penso eu, do êxodo familiar vindo a seguir.    
Ali Nozinho viveu até seus nove anos sem arredar passo, até quando seus pais trocaram o município de Barreiras pela Ilha de Itaparica, em busca de trabalho e fortuna. Com o correr do tempo, a família enricou. O menino, crescido bonito e fogoso, açambarcara a bem-querença de todos, além da admiração das mulheres. Elas caiam-lhe aos pés. Dele, todas eram escravas. Satisfaziam-no nos seus menores e maiores desejos e caprichos. Algumas se apaixonaram tanto por ele, que abriam os seus baús à espada, ágil e irrequieta, orgulhosamente sustida entre as pernas do D. Juan. 
Com o passar do tempo, o desassossegado jovem monopolizara, além do posto de autoridade, todos os demais poderes administrativos que, porventura, saciassem a sua vontade de mandar, comandar, ditar, determinar. Nem por isso ficou menos querido. Sua gente, como ele mesmo proclamava, procurava-o em busca de conselho, orientação e pedidos. Esses, quase sempre, atendidos. Quando justos, gabava-se em afirmar. Dele, dizia o povo:
- É um ilhéu “retado”. Esquecido das suas raízes longínquas. E mais: tem o corpo fechado e saco roxo. Nasceu assim: um belo reprodutor.
O número de suas desvirginadas era incontável. O de filhos, da mesma forma. Quando à porta de casa ou da delegacia, não se cansava em responder:
- Deus o abençoe, meu filho – aos meninos e meninas que passavam diante dele pedindo-lhe a bênção.
Era do seu feitio jamais rejeitar quem se proclamasse do seu sangue. Do nome de todos talvez não lembrasse, os das mães, jamais esqueceu. Com elas, era dócil e paciente. Não se furtava de prestar-lhes socorro, mormente àquelas desertadas de morar com ele, por motivos vários, no imenso casarão de mais de vinte quartos que erguera na principal praça da vila. Casa que parecia um mafuá, dada a balburdia nela existente; o vozerio esganiçado do mulherio, da criançada e da diversidade de gente que por lá transitava e trabalhava.


Filho único de pais ricos, deles herdou, em terras e dinheiro, fortuna incalculável. Era praticamente dono da Ilha, além de extensa plantação de dendê e usina de beneficiamento do azeite, mangueirais, cajuais e todo tipo de frutas. Só de saveiros, navegando pelo recôncavo, indo e vindo repleto de mercancias, tinha pra lá de dúzia e meia. Desprezava, contudo, mexer com gado. Dizia ele:
- Dá trabalho. Esse animal só vive com bicheira, e quando se solta, êta canseira para trazê-lo de volta.
Inteligente, mas totalmente ignorante, fizera o curso primário na “marra” e usava dicionário próprio para comunicar-se. Para ele, “espancar pose” nada mais era que querer aparecer; “filé”, gente bonita, mulher formosa, “um petisco”; “dilurimento”, mal estar, incomodo; “milambas”, puxa-saco sem vergonha; “cangaço”, pessoa esquelética; “resenha”, correspondia a crítica; “tomando sopa”, se fazendo de besta; “carroceria arrumada”, mulher de bunda bem feita, de bunda arredondada que nem a coroa do meio (uma coroa formada de areias alvíssimas que imergia das águas oceânicas que banhavam o litoral do Jaburu); “capa de cangaia”, mulher sem atrativos, mulher feia; “sentar a mutamba”, surrar, dar uma coça para valer. Esse particularíssimo e singular dialeto – quem disse que não existem dialetos no Brasil? – só os ignorantes, que desconhecem, aqui, além do português, falam-se outras cem línguas – indígenas – e diversos linguajares regionais, como o adotado por Nozinho, trazido das suas origens e cultivado por seus pais, ao qual ajuntou o dos ilhéus.
- Vai de “onze” – a pé – compadre, pra donde? - perguntava Nozinho ao passante, aligeirado, que chispava diante da sua casa.
- Vou visitar meu pai. Como minha mula está manca, vou arrastando areia – respondia o passante, remando que nem barqueiro em dia de vento contra.
- Sossegue, homem, monte minha égua ela está “porreta” trotando beleza! Não renegue a oferta, considerarei ofensa se o fizer.
Doutra feita, aconselhava a um amigo:
- Soube que vosmecê, seu “azuado” anda “purgando” (escorrendo pus) pela “manjuba” (genitália). Isto é como levar um “sapeca-iaiá” (cacetada). Procure o Dr. Pio Bittencourt, ele cura esse incômodo num instante. Por enquanto, por precaução, afaste-se das “quengas” do puteiro. Dê prazo à libertinagem.
Mesmo assim, com esse falar arrevesado, todos o compreendiam e, respeitosamente, o afagavam, quer pela sua bondade quer pelo grande cabedal que dispunha e ostentava, sem jactâncias.
Dada à grande compatibilidade dele com o povo e à admiração devotada pelas mulheres por aquele macho de traços marcantes e olhos azuis, não raramente aparecia a Nozinho uma mãe rebocando pela mão uma filha, por volta dos quatorze ou quinze anos, com sobejos prenúncios de boa parideira, com o seguinte cochicho:
- Sabe, moço, tenho ouvido falar muito bem do senhor. Dos seus cuidados com as pessoas. Do seu espírito caridoso. Como sou mulher pobre, privada de marido, mãe de uma resma de filhos, impedida de posses para bem criá-los, trouxe-lhe Nenzinha, minha filha mais velha, para que o senhor a arranche. Trabalhadora é. Faz de um tudo. Sossegada, vive no seu canto. Varre, arruma, lava, passa, cozinha o trivial e não tem medo do trabalho pesado. Segundo sei, o senhor seria incapaz de negar-me um adjutório para aprumá-la. Ademais, ela é jeitosa. Pura formosura, e, como toda mulher moça, nessas condições, poderá trazer alegrias para vosmecê e a sua casa.
- Como é mesmo a sua graça, dona? – perguntou-lhe Nozinho.
- Eudóxia, moço bonito!
- Pois é, iaiá, já apadrinho doze jovens, com mais uma seria uma renque para sustentar.
- Mas o senhor pode, “seo” Nozinho. Além disso, não se despreza um galho verde como esse, um rebento que se prepara para dar seus primeiros frutos. Na flor da idade, taluda, de pele macia, cabelos lisos e dentes da brancura da espuma das marés. Um pitéu. Demais, veio de mala e cuia.
- Sendo assim, Eudóxia, fico com ela se for limpinha e não tiver “aftim” (morrinha) não suporto mulher bodosa, que cheire mal.
- Quanto a isso fique despreocupado, ela tem fragrância de mato virgem, cheiro de terra quente molhada de chuvisco, odor de alfazema, incenso e mirra.
Não se pense, contudo, que o jovem caritativo (!) tão logo se apossasse da futura cria, levasse-a, de imediato, para a cama. Longe disso. Ele observava a rapariga por vários dias. Reparava nos seus trejeitos. Atentava no seu modo de ser, sentar, conversar, trabalhar, principalmente lhe conferia o sorriso – carecia não ter nenhum dente cariado. Só muito depois, apreciando o espólio, se ele o cativasse, através do jogo da sedução, o conquistador se aproximava da preia. Precavidamente levava dias atiçando a cobiçada através de pequenos mimos, de comedidas atenções. Começando por presenteá-la. Ora um paninho de chita para um vestidinho bem caprichado, uma sandália de couro, uma argola, uma pulseira, um perfume, de preferência Royal Briar, um ruge, um batom, uma calcinha, um sutiã, uma camisola rendada. Pequenas coisas para empetecá-la. Só então, cumpridas tais formalidades, partia para a cama, depois de um jantar a dois, com muita ostra e carne pé de bunda. Era a hora do vamos ver, da festança do himeneu. E, que festança...
Os habitantes da ilha, quase todos miseráveis, e cuja alimentação provinha da pesca artesanal, moradores em casebres rústicos levantados de adobe e recobertos de fibras de piaçava, ganhando parco dinheirinho advindo do artesanato de barro que preparavam, ficavam encantados com o desprendimento de Nozinho em alimentar tantas bocas, vesti-las e educá-las. Os comentários a esse respeito eram quase unânimes, louvando-o. Só uns poucos faziam muxoxos a tal laudatório. Na verdade, desdenhavam-no, classificando-o corruptor de menores, homem sem compostura, um aproveitador de donzelas e de suas precárias situações sócio financeiras. Varão assim, desconjuro. É um aproveitador, isto sim. Ademais, desrespeitoso com a comunidade.
Padre Lemos, pároco da Igreja do Coração de Maria, nesse sentido, muitas vezes, falara com Nozinho.
- Meu amigo, modere seus ímpetos. Contenha-se. Evite abrigar essas jovens sob seu teto.  Tantos concubinatos são contra a lei de Deus e dos homens. Algum dia, você há de prestar contas a Ele, que tudo sabe e tudo vê através da Sua Onisciência, Onipotência, Onipresença.
- Não se preocupe, meu bom homem – respondia o aconselhado, dispondo de toda a sua argúcia e civilidade. Essas meninas estão aqui porque pais e mães, insistentemente, me pediram. Impuseram-me. Nenhuma delas achegou aqui por porta travessa ou a contragosto, obrigada ou arrebanhada por este seu servo, de forma vil ou às avessas. Sem exceção, todas dispõem de livre-arbítrio. Frequentam escola, são bem vestidas, alimentadas, e, quando se enamoram de algum jovem espadaúdo e bonito, trabalhador, coisa que não impeço, arrumo a vida delas e dos maridos ou amásios. Nunca deixei nenhuma na rua da amargura. Infortunadas. Propicio-lhes bom recomeço de vida. O dote que lhes dou, quando partem, é suficiente para iniciarem um renascimento decente, eventualmente tenham juízo. Acaso todos agissem como eu, esse “miserê” que nos cerca jamais existiria.
- Mas, meu amigo – insistia o padre – este seu sultanato, com todas estas odaliscas mirins é um acinte à inteligência de todos. Ninguém de bom-senso crerá que você não se aproveite delas. Não as use para satisfação do seu apetite sexual.
- Padre, darei liberdade a qualquer pessoa para inquiri-las, indagar-lhes se as molesto. Se algum dia as forcei deitar-se comigo. Acaso provada essa indignidade, imputada sem razão a este seu servidor, serei o primeiro a mandar-me daqui de tão injuriado e envergonhado que ficarei. Elas vêm a mim espontaneamente, como eu vou ao senhor dar meu óbolo para a Igreja e suas obras sociais, como, da mesma forma, paguei as construções das escolas daqui, o salário dos professores, a edificação do mercado local, o erguimento do pequeno estaleiro para reparo das embarcações dos nossos pescadores. E tudo isso faço sem alegar, sem pleitear cargos políticos. Sou delegado por imposição e detenho alguns poderes porque me foram outorgados, impingidos. Nada pleiteei e jamais mendigarei poderes, embora os tenha. Sou insubornável ao aliciamento e à corrupção.  Peco por ser orgulhoso. Poderia até ser deputado, mas descarto a honra.
Essas conversas prosperavam, quase sempre, quando os dois se encontravam, mas jamais as levaram ao convencimento de um ou do outro. Acontecidas em alto nível, nenhuma delas provocara ranhuras na amizade existente entre ambos. Porém, cada qual ficava em seu cada qual, ocupando trincheiras opostas, plenas de armamentos e munições de ataque, ou sejam, as palavras do convencimento e as das concessões. As últimas, poucas. Porém, revestidas de capacidade cicatrizante. Propiciadoras a que ambos continuassem a exercer seus sacerdócios: Lemos, pregando as palavras do Senhor, Nozinho, acoitando as donzelas necessitadas e trepando-as.
Para o comedor de donzelas, o tempo passava como de costume. Parecia indolente, mas capciosamente fugaz. Fazia o bem! Sempre “fudião” e reproduzindo que nem garanhão premiado. Indo daqui a acolá, sem tirar os pés da ilha, seduzia sem se apaixonar.
Para ele paixão era uma “xoxota” bem carnuda, um “grelo” grande, peitos duros e bicos intumescidos, mulher de cintura fina, coxas grossas, bunda bem esculpida, sorriso debochado e ais e uis estridentes na hora do acasalar. Contar, embora sua sisudez dissesse o contrário, seus “causos” que eram muitos; alardear a sua verve, quando reunido com amigos e até desconhecidos.
Uma vez, fui protagonista de um desses episódios. Tinha eu por volta de oito ou dez anos. Contava ele a um grupo de amigos, que carne pé de bunda é que lhe dava sustança. Portanto, chovesse ou fizesse sol, haveria de ter à mesa aquela iguaria. Eu, na minha inocência, ousei interrompê-lo:
- O que é carne pé de bunda?
- É carne do traseiro do boi. Duríssima, porém bem preparada vira acepipe, coisa fina.
- E o senhor só come dessa carne - indaguei, acenando-lhe minha óbvia pureza.
- Eu lá sou besta, meu filho. Eu também como, diariamente, carne mijada. Olhe em volta e veja quantos meninos e meninas saíram delas.
Dada a resposta, as gargalhadas dos ouvintes ecoaram ensurdecedoras. Sem nada entender, fiquei “a ver navios” como avestruzes, segundo afirmam os ignorantes, que, para escapar dos predadores, enfiam a cabeça em qualquer buraco encontrado no pasto.
Dias depois, minha mãe, ao servir-me uma feijoada, na nossa casa de veraneio, em Mar Grande - Ilhota, pergunta-me, diante dos seus convivas:
- Luiz Carlos, que carnes você deseja para acompanhar o feijão?
E, eu, munido das informações de Nozinho, repliquei com firmeza:
- Pé de bunda e carne mijada, elas dão sustança.
Àquela infeliz declaração todos emudeceram. Minha mãe quase deixa cair o prato que detinha em suas mãos, os convidados entreabriram os lábios num pálido sorriso, como se dizia à época, num sorriso amarelo. Só meu pai contrastava naquele cenário de estupefação. Ria à larga. Um riso folgazão, gostoso, gargalhada que fez desanuviar o ambiente, mas incapaz de privar-me da reprimenda:
- Meu filho, não repita mais isso, depois eu lhe explicarei do que se trata - explicação caída nos emaranhados do esquecimento, ou, propositadamente omitida, para não açular os instintos da concupiscência que, atavicamente, nascem conosco.
“Ó paí, ó”! Parece que a desgraça sempre anda a espreita de alguém para atazaná-la. Inferná-la. Desestruturá-la.
Um belo dia, aparece no Duro uma mulher carregada de bagagens. O saveiro que a transportara estava repleto delas. Eram malas e mais malas, quinquilharias e embrulhos, montões de embrulhos. Descarregados, encheram a ponte de atracação. Os carregadores, ali postados, gananciosos em ganhar uns “bicos” ofereceram seus préstimos à dona, que, antes de contratá-los, perguntou:
- Há algum hotel por aqui, ao menos, uma pousada onde possa hospedar-me?
- Hum! Desses luxos madame, carecemos. Nem rancho temos. No Duro, só existe uma casa que poderia dar guarida a vosmecê. É a casa do seu Nozinho. Grande é, mas vive cheia. Portanto, será difícil de encontrar cama desocupada para acomodá-la. Apressou-se em informá-la um daqueles que a cercavam.
- Em sendo assim, arriba pra lá, pra casa do Nozinho – apontou, decidida, a estranha visitante.
A caminhada era curta e se fez rápida. E, em lá chegando, Nozinho, que desfrutava da fresca da manhã, no passeio confronte a sua casa, levantou-se para melhor divisar a procissão, capitaneada pela mulher, que se dirigia em sua direção e a qual, depois de alguns passos, postou-se defronte dele.
Nesse instante, os olhos do velho delegado repousaram em meio aos daquela jovem e deliciosa rapariga. Posso dizer, dos deles saíram faíscas. Faíscas de deslumbramento, fogos de artifício, que espocam nos céus, formando caleidoscópios de concepções, imagens e cores que transcendem nossas imaginações. O coração do ancião saíra do andamento de valsa, que até então o regia, e passara a ser tangido pelo andamento de um tango, de um samba, de um cancã. Tão lépido batia, que lhe ocasionou breve instante de entorpecimento, e em cujo lapso as palavras lhe faltavam. Ou, se ditas, eram desconexas. Dos dela, escapavam o espiar da curiosidade, o exame minucioso do interlocutor, as labaredas da malandragem, as expressões de uma “bagageira” (meretriz) escolada, o mirar de um predador sobre a vítima.
A privação do mutismo acontecido só se desfez graças à informalidade da visitante. Perspicaz, observadora do impacto que causara, fez-se mais insinuante e, mostrando um sorriso devastador, pleno de blandícias, cutucou verbalmente o visitado:
- Bom dia, senhor Nozinho. Meu nome é Susete. Sou viúva. Chegada do Rio de Janeiro há poucos dias. Aqui, aportando, fui informada da indisponibilidade de acomodações para mim. Por isso vim pedir-lhe guarida por um par de dias, até comprar uma casa que me acolha. Desculpe-me a ousadia, mas esta é a única solução que encontrei para não pegar o caminho de volta.
Estático, maravilhado – era para estar mesmo ante a beleza daquela mulher, criada sabe-se lá por quem, talvez por um escultor grego, dada a harmonia dos traços daquela figura envolvente, um sex-symbol – o instado meneava a cabeça, passava as mãos pelos fartos cabelos sem concatenar as ideias ou dar uma resposta à inquisidora. Numa espera inquietante para ela que por meios e modos procurava insinuar-se ao interlocutor.
Passados aqueles instantes de incerteza e expectativa, finalmente Susete fez-se toda sorrisos ante a fala de Nozinho:
- Terei prazer em recebê-la. A demora está em arrumar um quarto. Mas, dá-se um jeito.
A essa decisão, desencadearam-se explosões de descontentamentos e estupefações. As mulheres da casa queixavam-se. Discutiam entre si. Era um “esperretetê” só. Quase em uníssono afirmavam que a paz delas tinha ido para o brejo. O povo, que se aglomerara diante da casa de Nozinho, para conferir a beleza majestática da visitante, exclamava:
- Valha-nos, Deus. O homem ficou “lelé da cuca”, abrigou Exu travestido de saia. Onde já se viu dar guarida a uma desconhecida? E se for “marreteira”? Uma criminosa? Esse “mais velho que corno” (ancião) está se metendo em “camisa de onze varas”, está armando um “mangue de fazer dó”.
Se tais imprecações foram ouvidas por Nozinho, ele as ignorou. Susete já se acomodara no cômodo a ela reservado com todas as pompas e circunstâncias.
Em toda a Ilha, não se falava doutro assunto senão da misteriosa dama instalada na mansão de Nozinho. Era tema obrigatório, provocador de mil opiniões e prognósticos funestos. Até os terreiros de Mãe Mundica e de Mãe Ritoca, famosas por suas predições, preocupadas com a situação, anteciparam as festas ritualísticas em homenagem aos seus santos de fé, desejosas em ouvir os Orixás. Mas, em ambos os xirês, roda de força de invocação dos Orixás, aconteceram imprevistos. As equédes, filhas-de-santo, das duas casas, só incorporavam Exu. E este, irreverente, como sempre, fazia ameaças e imprecava:
- Aquele Nozinho, “potroso” (portador de escroto grande), – “rei da cocada preta”, comedor de virgens desvalidas, vai se mancar, esvaziar o mealheiro, vai ficar “fuleiro” (sem eira nem beira).  Ele caiu na minha armadilha. Agora, dane-se! Comeu tanta “xoxota” que agora vai ser comido.
Ante tantas ameaças, prenúncios aziagos, restou aos participantes dizer baixinho: - “Vixe Maria”.
Avisado dos catastróficos vaticínios, Nozinho deu de ombros. Na verdade ele só se ocupava de Susete. Seu coração, que jamais conhecera o amor, estava mergulhado por inteiro naquele sentimento que lhe surgira repentinamente. Tanto assim, obediente aos desejos da amada, desfizera-se das concubinas, mesmo com grande aperto no peito. Deixara de lado os amigos, abandonara a delegacia, as atividades comerciais. Só pensava na cama, no bem bom, na hora de vadear. Estar ao lado de Susete, de quem desfrutava das aulas ministradas pela rameira, PHD em libertinagem, conhecedora do Kama Sutra, de trás para frente, de frente para trás e das catilinárias do sexo, disso, Nozinho não abria mão. E tal foi sua perdição. Susete, esperta como uma águia, que à distância localiza a presa e com voo rasante subjuga-a, de forma implacável, depois de insistentes e recusados pedidos de casamento, aceitou concretizá-lo, acaso Nozinho passasse seus bens para o seu nome. Sob a alegação de que, com a idade dele, não poderia realizá-lo em comunhão de bens.
Reticente, Nozinho procrastinava a decisão. Deixava-se quedar no enigma shakespeariano: “ser ou não ser, eis a questão”. Ao mesmo tempo, Susete, useira e vezeira em aplicar golpes baixos, “arrumava a cama” – compunha-a de acordo com a vontade dela. Fazia-a macia, ao idoso amásio. Agia sempre repleta de surpresas. Ora, um coito anal, por vezes, um oral. A maioria das vezes um “sessenta-e-nove”, prática desconhecida pelo velho, que a ela tanto se apegou fazendo-o debandar do papai-e-mamãe, do convencionalismo, para adotar aquelas maravilhosas práticas.    
Feita a papelada, consumou-se o casório, sem comes e bebes. Numa cerimônia simples, com parecença de velório. Casamento que só durou um mês, pois Susete, num descuido de Nozinho, alugara um saveiro e se mandara para outras plagas, deixando atrás de si um marido esquelético, ardendo de fogo e paixão, esquecido num casarão vazio e de posse de um único bem, a primeira fazenda que o seu pai comprara na região.
Está visto que Nozinho não tinha o corpo fechado. Exu fizera a parte dele, como prometera. O povo tinha razão. Susete era o próprio, em forma de mulher.
Dessa história, parte do folclore itaparicano, prenhe de irracionalidades, típica da fragilidade humana, dos sentimentos que sacodem a alma dos fracos como erupções vulcânicas fazem tremer o chão de bucólicas regiões, acode-me, sentença do escritor Otávio Melo Alvarenga para explicá-la: “Os abismos só se cavam aos pés de quem os anda palpando.” Rematada por um provérbio inglês, muito antigo: “Depois da festa, conte as consequências”. 

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