Conto de Mário Cabral
extraído do livro
Aracaju Bye Bye, de sua autoria
Bola-Sete
foi o líder do porto de Aracaju. Porte, musculoso, preto-retinto. Um metro e
noventa de altura. Sorriso branco na boca. Na época a estiva sergipana era
pequena, o porto quase morto, parado, a barra estreita e arenosa. Mesmo assim
entravam a for do Rio Sergipe os navios do Loide e da Costeira, com nomes que a
gente não esquece: Baipendi, o Itaperuna, o Itaquera. Também, de vez em quando,
por lá
apareciam a barca norueguesa Hera e o patacho dinamarquês Hother. Penoso
o trabalho da estiva. O porto desaparelhado a exigir do homem maior dispêndio
de força e energia, eis as sacas de sal, de carne ou de açúcar, de sessenta
quilos, eram transportadas na cabeça, da ponte para o armazém, ou vice-versa,
em caminhada longa e penosa, em fila indiana. Espáduas nuas, negras ou
bronzeadas, reluzentes como se estivessem untadas de óleo. Ao longo da margem
do rio, dormitavam, baixos e pesados, os armazéns, os velhos trapiches
abarrotados de mercadorias. A liderança de Bola-Sete era mais de fato do que de
direito.
Era líder
por ser bom e por ser forte. Os comerciantes gostavam dele. Quando passava,
fora do serviço da estiva, ali, por perto da ponte do Lima, ia cumprimentando:
- Boa tarde,
seu Faria.
- Boa tarde
seu Cabral.
- Boa tarde,
seu Maneca.
E por baixo
da camisa os músculos retesavam o tecido leve de algodão barato. Apenas 22
anos. Curso primário.
Ninguém
sabia dos país dele. Não falava disso, como se guardasse um segredo, talvez um
mistério. Como o seu nome, também desconhecido. Era Bola-Sete. E morava com uma
tia em um barraco, lá pros lado da Baixa-Fria. Todo sábado, no Bar de Nery,
tomava uma dose dupla de milome, catuaba ou jurubeba, sem sair do sério, sem
brigar, sem ofender ninguém. Tinha medo da própria força. E, na sua ignorância,
possuía uma instintiva obsessão pela liberdade. Não se lhe conhecia namorada. E
houve quem o visse, muitas, vezes, caminhando diante do mar solto e bravo, para
um lado e para o outro, como se estivesse cumprindo um ritual, nesse confronto
direto com a natureza selvagem. Aos seus amigos falava sempre de liberdade. E
dizia:
- A
liberdade é o mar. Ninguém o segura...
Foi nessa
época, ai por volta de 1932, que atracou na Ponte do Lima o navio cargueiro
Poconé, carregado de farinha de trigo. A direção do porto marcou a descarga
para o horário das 10 às 16 horas, em turmas. Bola-Sete disse logo:
- Serviço
duplo só com aumento.
Os demais
estivadores concordaram. Deu-se o impasse. Zé Roberto, branquelo de olho azul,
saiu por aí em sua feição de agitador contumaz. Bola-Sete, comedido, recomendava:
- Vamos
lutar. Mas com calma, sem violência.
Aconteceu
que no dia seguinte surgiu no porto uma pequena patrulha policial: um cabo e
dois soldados. Vinha prender Zé Roberto. Este, apesar de fraco, reagiu, lutou o
quanto pôde e terminou apanhando. Quando Bola-Sete viu aquilo, três homens
contra um, o colega sendo agredido a golpes de cassetete, correu, suspendeu o
cabo no ar e o jogou longe, o mesmo fazendo com os dois soldados. Fugiram todos
sem olhar para trás. Mas duas horas depois, apareceu uma nova patrulha: um
sargento e dez soldados. A ordem era prender Bola-Sete. Perderam-no.
Amarraram-lhe os braços nas costas. Terrível humilhação! E o levaram, assim,
pelas ruas do comércio. Ele olhava para os amigos, as pessoas, as mulheres,
gritando sem parar:
- Liberdade,
Liberdade, Liberdade!
Puseram-lhe
na penitenciária de Aracaju, prisão medieval. De altos muros e torreões. No dia
seguinte, logo cedo, uma comissão de pessoas influentes foi à Chefatura de
Polícia por ele interceder. Não adiantou. Bola-Sete ficou preso por vários
meses. Sem inquérito, sem culpa formada, sem sentença judicial. Sentado no
fundo da cela pensava dia e noite. Resolveu fugir. Um dia atacou o carcereiro,
tomou o revólver, libertou os presos de sua ala e saiu, na frente, para decidir
com a guarda, mais de vinte homens armados. Não houve luta. Quando Bola-Sete
tentou levantar o braço, um tiro acertou-lhe o coração. Ele ainda gritou com a
voz rouca dos aflitos e dos desesperados:
-
Li-ber-da-de!
E desabou no
chão de pedra. Morto parecia maior do que quando vivo. Preto, musculoso,
gigantesco. Pelo tamanho e pela bondade. O seu nome ficou escrito, com pixe, na
parede lateral do Trapiche Brown. E, na
Bahia, Cuíca de Santo Amaro, rei
da literatura de cordel, escreveu A
estória de Bola-Sete, cantada na Rampa dos Saveiros, e no Largo do Bonfim.
Dele também se fala no novo porto do Estado de Sergipe, na praia de Pirambu,
onde as máquinas modernas carregam as sacas pesadas e não os homens, como
animais. Este foi o Bola-Sete. Um herói do povo!
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