Jorge Amado
As circunstâncias da morte do funcionário público Joaquim Soares da
Cunha são cercadas de mistérios e de versões desencontradas. A família declara
que ele morreu de forma decente, mas esconde alguns vexames dos últimos
momentos de vida do finado. Já os amigos são capazes de jurar que a morte de
Joaquim se deu mesmo no mar, como era seu desejo.
Durante quase toda a sua vida, Joaquim foi funcionário público exemplar,
contando com o respeito dos colegas e da família. Aos cinquenta anos, porém,
por motivo desconhecido, despediu-se da família com palavras ofensivas e passou
a viver na rua. Foram dez anos se entregando constantemente à bebida em
companhia dos malandros e das prostitutas de Salvador, na Bahia. A esposa
Otacília não resistiu ao drama familiar e morreu. A filha Vanda e seu marido,
Leonardo, passaram a suportar a existência daquele parente incômodo.
Certa ocasião, o dono do botequim frequentado por ele, querendo
pregar-lhe uma peça, ao invés da cachaça de sempre encheu um copo com água e
ofereceu a ele. Joaquim entornou o líquido e, ao perceber a enganação, lançou o
berro que fez surgir seu apelido: Quincas Berro d’Água.
Joaquim morreu aos sessenta anos de idade. Ao saber, Vanda passou a
tomar providências para o velório e o enterro do pai. A única coisa que ela não
conseguiu arranjar ao seu modo foi o sorriso que o morto estampava no rosto,
que nem sequer os funcionários da funerária conseguiram eliminar.
O velório foi realizado no mesmo cômodo minúsculo que tinha servido de
moradia a Quincas nos últimos anos. Desse modo, a família mantinha distância
desse parente incômodo. Vanda permaneceu ao lado do corpo do pai durante boa
parte da noite em que transcorreu o velório. O sorriso no rosto do morto
parecia retomar as ofensas dirigidas à família quando de sua partida de
casa.
A notícia da morte de Quincas chegou aos ouvidos de seus companheiros de
boêmia: Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento. Sabedores do desejo
do amigo de ter no mar seu último momento, dirigiram-se ao local do velório
dispostos a fazer cumprir essa vontade. Cansados, os parentes acabaram por se
recolher, deixando o defunto sob a guarda dos amigos.
A vigilância foi regada a muita cachaça. Em certa altura da noite,
resolveram levar o amigo para um passeio. Retiraram o morto do caixão e se
foram. Passaram pelos lugares frequentados por Quincas em vida e terminaram a
noite no barco de Mestre Manuel. Decidiram então cumprir a vontade do morto,
oferecendo-lhe uma festa em alto mar.
Repentinamente,
despencou um terrível temporal. O mar revolto lançava a embarcação de um lado
para o outro. Em um desses balanços, Quincas acabou caindo na água. Desse modo,
teve sua segunda morte e o cumprimento de sua vontade. Segundo a lenda, antes
de se lançar ao mar ele teria pronunciado os seguintes versos: “– Me enterro
como entender / na hora que resolver. / Podem guardar seu caixão / pra melhor
ocasião. /Não vou deixar me prender / em cova rasa no chão”.
Contexto
Sobre o autor
Jorge Amado é o representante baiano do chamado neorrealismo nordestino, tendência dominante na literatura brasileira dos anos 1930. Além disso, alinha-se ao realismo socialista, vertente que registrava o real a partir de uma perspectiva ideologicamente comprometida com o marxismo. Em 1958, com a publicação de uma de suas obras mais famosas, Gabriela, cravo e canela, imprimiu um novo rumo à sua carreira, que passou a explorar mais fortemente a sensualidade e o humor. Desse filão faz parte a novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água.
Importância do livro
Por vezes, o esforço dos escritores da geração de 1930 em retratar a realidade de maneira crítica acabava por restringir o espaço da fantasia e da imaginação. Sem abrir mão da perspectiva sociológica, Jorge Amado reservou espaço para o absurdo em algumas de suas narrativas. É o que ocorre em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água. Como um bom contador de histórias, o narrador desenvolve seu enredo surpreendente, preocupando-se menos em ser verdadeiro e mais em ser verossímil.
Por vezes, o esforço dos escritores da geração de 1930 em retratar a realidade de maneira crítica acabava por restringir o espaço da fantasia e da imaginação. Sem abrir mão da perspectiva sociológica, Jorge Amado reservou espaço para o absurdo em algumas de suas narrativas. É o que ocorre em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água. Como um bom contador de histórias, o narrador desenvolve seu enredo surpreendente, preocupando-se menos em ser verdadeiro e mais em ser verossímil.
Contexto histórico
A década de 1950 é a época do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, período de particular efervescência cultural. O otimismo dominante na vida social e política brasileira, depois do término da ditadura Vargas em 1945, talvez tenha contribuído para a criação do clima fantástico e cômico da narrativa de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água.
A década de 1950 é a época do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, período de particular efervescência cultural. O otimismo dominante na vida social e política brasileira, depois do término da ditadura Vargas em 1945, talvez tenha contribuído para a criação do clima fantástico e cômico da narrativa de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água.
É possível inserir A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água na
tradição da sátira menipéia, caracterizada pelo contato entre o mundo dos
mortos e o dos vivos. De fato, essas duas dimensões dividem aqui o espaço por
si só místico da cidade de Salvador. Tudo na narrativa é concebido sob o
estigma do duplo, a começar pelo próprio protagonista, que merece duas formas
de tratamento distintas: Joaquim Soares da Cunha, funcionário público exemplar
e pai de família respeitável, entrega-se à vida boêmia e passa a ser chamado de
Quincas Berro d’Água.
Duas faces da sociedade estão representadas. De um lado, o universo da
ordem estabelecida, com o devido enquadramento dos indivíduos em instituições
sociais respeitáveis, como a família, o casamento e o trabalho. Esse universo
mata Quincas duas vezes: a primeira, quando a filha Vanda cria para os filhos
uma versão imaginosa, para explicar o afastamento familiar do pai boêmio; e a
segunda, quando, na tentativa de dar solenidade ao seu velório, veste-o de
forma condizente com a imagem respeitável que tentavam imprimir a ele. Com
isso, mata-se o boêmio e tenta impor o universo da ordem. No entanto, a
desordem levanta Quincas até do túmulo.
De outro lado, o universo da desordem, a que Quincas se entrega ao
rejeitar a lógica perversa que o envolvia, segundo a qual o casamento, a
família e o trabalho deveriam ser sustentados mesmo que conduzissem à
infelicidade. Quincas recusa essa lógica até o fim e mesmo além do fim. O
sorriso escancarado que exibe em seu caixão faz lembrar o preceito latino que
diz ridendo castigat mores, isto é, rindo, ele faz a crítica das normas
sociais. E ao fazê-la, mostra que, de certa forma, estas estão mais caquéticas
do que ele.
Quincas encontra cúmplices na representação do universo libertário: são
seus amigos de boêmia, cujos nomes revelam a mesma duplicidade do protagonista.
Com efeito, os apelidos Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento
escondem identidades sociais certamente tão convencionais quanto a de Joaquim
Soares da Cunha. Quando trocam as roupas do morto, resgatam suas vestes de
boêmio, devolvendo-lhe a identidade e, com ela, não a vida, mas a morte, a
verdadeira morte de Quincas Berro d’Água.
A narrativa de
Jorge Amado está incluída em um volume chamado Os velhos marinheiros.
Nada mais apropriado: isto era justamente o que Quincas desejava ser. Se não o
conseguiu em vida, afogado nas convenções, alcançou na morte, navegando livre
pelo mar.
Fernando
Marcílio
Mestre em Teoria Literária pela Unicamp
Fonte:
Educação. Literatura
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