Viagem II
Conto de Luiz Carlos Facó
Saímos de Dacar ao badalar das três
horas. O céu limpo e o mar calmo prenunciavam uma viagem tranquila. Indiferente
a tais prognósticos, nossa nau singrava o mar, espadanando água para todos os
lados com garbo e elegância. Sem se preocupar, quer com o tempo quer com os
dramas, alegrias, emoções saudades e esperanças que carregava. Sentimentos,
contidos e trancados a incontáveis chaves nos corações dos passageiros, cujos
semblantes só denunciavam tédio, impaciência e o desejo vão de ver os dias
abreviados, permitindo-lhes, o quanto antes, atingir seus destinos.
Entre os ansiosos eu me colocava. Para
disfarçar tal estado de ânimo, passara a observar, por horas, o encontro do céu
e do mar no horizonte longínquo. Ou trocar ideias com um libanês, de nome Fuad,
há anos radicado no Brasil. Requintado no falar e no modo de vestir. Segundo
ele, próspero industrial em São Paulo. Versado na vida política brasileira e
internacional, conhecedor profundo das cidades que eu visitaria.
Nossas conversas, que varavam a
madrugada, foram provavelmente as responsáveis pela transformação daquele mero
conhecimento assim pensava, em admiração. Propiciava-me, também, semear as
primeiras sementes de uma amizade, presumivelmente, duradoura.
Raramente nos distanciávamos.
Compartilhávamos todas as refeições. Frequentávamos o bar onde sorvíamos
deliciosos coquetéis, preparados sob a sua orientação. Experimentávamos licores
produzidos em diversos países. O melhor é que jamais paguei um só centavo de
dólar pelas despesas realizadas. Ele se prontificava a saldá-las.
Ademais, encontramos muitas afinidades
no nosso modo de pensar.
Enquanto se desenvolvia aquele
amistoso conhecimento, o navio fazia escalas em Funchal, capital da ilha da
Madeira, e em Lisboa.
Nesses dois portos, Fuad sumiu.
Juntei-me a outros amigos para uma
perfunctória exploração das duas cidades.
Em Funchal, comprei bordados, comi uma
suculenta bacalhoada acompanhada de bom vinho.
Em Lisboa, senti-me europeu. Visitei
seus principais pontos turísticos. A praça monumental Marquês de Pombal, o
Mosteiro dos Jerônimos, Estoril, o Alfama, onde assisti a um espetáculo de
fados, reservando, para mais tarde, inteirar-me melhor da vida e costumes
lisboetas.
Quando o navio partiu rumo a Gênova,
eis que surge, como por encanto, a figura de Fuad.
Fidalgo, como sempre, desculpou-se
pela ausência. Alegava razões comerciais para o seu desaparecimento. Cridas sem
hesitações.
Fazia-se tarde. Meu corpo, castigado
pela aquela jornada, em Lisboa, exigia cama. Recolhi-me ao camarote após
despedir-me do quase amigo. Meia hora depois, quando conciliara o sono, batem à
porta. Fui conferir quem me molestava. Era Fuad. Estava apreensivo, porém não
despido dos seus modos corretos. Eu, Álvaro Pinto Dantas de Carvalho e Wilson
Carvalho Oliveira, colegas e companheiros do mesmo aposento, esperamos,
curiosos, as suas explicações para a intempestiva visita. E ela veio de
inopino, através de um pedido:
- Desembarco amanhã em Gênova. Peço
aos amigos que levem esse pacote para Marselha. Tenho negócios inadiáveis para
tratar na Itália. Tão logo me desvencilhe deles, vou encontra-los em Marselha.
Provavelmente no dia do desembarque de vocês ou, no mais tardar, no
subsequente. Caso haja algum tipo de impedimento que me faça perder esse
encontro, entreguem ao meu portador esta encomenda. Seu nome é Barris Abdulla.
Se ele não aparecer, darei um jeito de solucionar a pendenga. Não se assustem
com o conteúdo do pacote. São sementes de café brasileiro que pretendo plantar
na minha terra natal. O Abdulla, meu primo e administrador de uma pequena
propriedade que lá possuo, encarregar-se-á de leva-las até o Líbano. Fiquem
hospedados na pensão de Sylvie. É ótima e o preço em conta. Familiar,
aconchegante. O tratamento e limpeza, ímpares. A comida e o vinho, excelentes.
Aqui está o cartão com o endereço da sua estalagem.
Feito o pedido e, na certeza que nos
convencera a aceitá-lo, despediu-se, desejando-nos boa sorte, prometendo,
ainda, um breve reencontro.
Jamais fui avaro, muito menos
perdulário da inteligência. Porquanto não a possuo na medida desejada. Eis o
porquê de não ter conseguido maldar intenções outras naquela solicitação.
Raciocínio compartilhado pelos meus colegas.
Pela manhã, acordamos com o navio
atracado em Gênova. Olhando em derredor, vi, fundeados ao lado, os paquetes
Queen Mary e o Cristóvão Colombo. Senti-me observando a grandiosidade deles,
humilhado por ter viajado no Bretagne.
Diante daqueles monstros, uma casca de noz flutuante.
Dispondo de poucas horas para conhecer
a cidade, fomos visitar a sua maior atração e preciosidade artística: o
cemitério. Repositório de um impressionante acervo de esculturas indescritíveis
pela beleza que possuem. Notáveis, pelo valor artístico que encerram.
Impressionantes, pela plasticidade de suas linhas. Cada uma delas, enfeitando
mausoléus assemelhados a palácios riquíssimos.
Jamais supusera existir tanta riqueza
numa cidade de mortos. Mesmo levando-se em conta as pirâmides, túmulo dos
faraós.
Até hoje, guardo na memória a beleza e
a paz que aquele campo-santo me transmitiu. Muito embora ainda prefira
pertencer ao campo conturbado e, quase sempre, insano dos vivos.
Dois dias depois, desembarcava em
Marselha, com o peito inflado de emoção, armas e bagagens. Era o fim da viagem
e o começo de uma nova etapa em minha vida.
Seguindo a orientação de Fuad, fomos
diretos para o petit hotel de Sylvie,
onde fanfarras acolhedoras nos recepcionaram.
Eu, Wilson, Álvaro e o professor
Machadinho – Augusto Alexandre Machado –, que se incorporara ao nosso grupo,
acomodamo-nos em dois apartamentos contíguos, cuja porta que os separa vivia
eternamente aberta.
Só havia um senão. Não existiam
banheiros e dependências sanitárias particulares em nossos cômodos.
Utilizávamos as instalações coletivas no final do corredor com uma
circunstância agravante: caso demorássemos sob a ducha do chuveiro, corríamos o
risco de sair dela ensaboados. A água despejada sobre nós era limitada a
precisos cinco minutos. Coisa dos pouco higiênicos, embora perfumados
franceses.
Marselha não me entusiasmou.
Pareceu-me triste. Cinza. Pouco atrativa. Só a comida e o vinho se salvavam.
Mas teve uma serventia: serviu de base para organizarmos nosso roteiro de
viagem e aviarmos os meios de cumpri-lo.
Entediados com a monotonia da cidade,
portuária por excelência, passamos a maior parte do tempo no hotel, mesmo
porque esperávamos o portador de Fuad ou o próprio para cumprirmos a missão que
nos fora confiada.
Resisti ao tédio, mantendo longas
conversas com a adorável Sylvie. Uma mulher beirando a casa dos quarenta anos –
uma legítima balzaquiana – mas conservando o frescor intenso da juventude.
Baixinha, magra, muito bem feita de corpo, rosto angelical que fazia sobressair
seus olhos de um intenso azul, que me fitavam com insistência, de maneira assaz
langorosa. Radicalmente diferente das demais mulheres daquela época pela sua
total desinibição e pelo interesse que demonstrava pela literatura. Nos quatro
dias que estivemos juntos, sempre a vi ocupada com a leitura. Falava depressa,
emendando um assunto ao outro. Sua perspicácia e inteligência desmentiam a
crença de que toda loira é burra.
Diante do seu refinamento, difícil de
não se notar, presumi um quê de nobreza em sua origem. Mais tarde, soube ser
ela viúva de um advogado, dos mais famosos da cidade, morto pela Gestapo quando
participava, com os maquis, forças da resistência francesa, de atentados contra
os invasores alemães. A figura dele estava presente naquele estabelecimento. Em
uma das paredes da recepção do hotel, lá estavam expostos o seu retrato e as
condecorações que havia recebido, post
mortem, do governo francês pela sua participação heroica na 2ª Grande
Guerra.
Os quatro mosqueteiros, assim nos
denominávamos, Machadinho, Álvaro, Wilson e eu, sempre éramos distinguidos por
Sylvie nos convidando, às refeições, para participar da sua mesa.
Anfitriã consumada sabia deixar à
vontade os seus convivas. Reservava-nos deliciosos quitutes, bons vinhos,
queijos e saborosas sobremesas. Só faltava o café. Raríssimo, em Marselha,
naquele período. Num daqueles jantares, querendo ser gentil, subi ao
apartamento e peguei, entre os achados da minha bagagem, um dos postes de café
solúvel, trazidos para a satisfação do meu vício. Entreguei-o a Sylvie,
pedindo-lhe que preparasse um gostoso cafezinho para nós. O curioso foi
perceber a sua estupefação. Senti na nossa hospedeira, naquele instante, ter em
suas mãos um tesouro. Seus olhos brilhavam, o sorriso sempre discreto que
sempre iluminara o seu rosto se escancarara de forma acintosa, enquanto
exclamava repetidas vezes:
- Café
du Brésil, Café du Brésil!
Depois de sorvido aquele néctar
reparador, com todas as liturgias que o momento requeria, ficamos animados em
ir à rua buscar divertimentos e emoções. Convidamos Sylvie para nos acompanhar,
mas ela educadamente recusou. Entretanto nos orientou acerca da nossa pretensa
peregrinação em busca de prazeres.
Antes de sair, vendo o vidro de café
que quedava inerte sobre a mesa, dirigi-me a ela, pedindo-lhe:
- Gardez
mon café.
Não sei se por deficiência do meu
francês ou pela sabedoria de Sylvie, perdi aquele pote irremediavelmente. Seu
entendimento do vocábulo guardar, enfatizado por mim, foi ficar para ela. Diante
daquela situação tragicômica, cujas explicações de nada adiantariam, o jeito
foi esquecer o prejuízo. Em compensação, ganhei abraços apertados e beijos
melosos de agradecimentos. Menos mal.
Afora o Château D’If, erigido em meio ao mar como o nosso Forte de São
Marcelo, suposta prisão do Conde de Monte Cristo, uma das personagens mais
famosas da literatura mundial, criada por Alexandre Dumas, em Marselha, nada
brilhava. Nem a noite dos seus inúmeros cabarés. Por isso, nosso retorno ao
hotel deu-se cedo.
Ao entrarmos, deparamo-nos com Sylvie,
lendo atentamente, sob a luz de um abajur, um livro de Jean-Paul Sartre,
disse-me depois. O título, nem lembro. A
lembrança que me ficou foram de seus olhares pousados nos meus, plenos de
pedidos. Algumas vezes, demonstrando recato, outras tantas, pura lascívia. As
mesmas expressões que os meus deixavam transparecer, num encontro incendiário,
propiciador do escancaramento da porta de sua alcova para o idílio ambicionado
por ambos. Um ambiente que exalava, para mim, ora o olor de rosas, as flores da
paixão, ora o perfume de um ramalhete de saudades, as flores do adeus.
Hoje, ao escrever sobre o episódio,
debito à minha fraqueza ter sucumbido aos apelos do sexo. Sobremodo, porque
jurara à minha noiva, poucos dias antes, fidelidade absoluta. Nada mais
corruptível do que o chamamento da carne. Penitencio-me pelo pecado,
dedicando-lhe estes versos:
Tu, sempre tu!
Não me julgues leviano; se no momento
A vida me perfuma
Outra mulher – é que tem alguma
Graça, que a ti eleva o pensamento.
Dia seguinte, à tarde, partimos.
Porém, Fuad, ou o seu preposto não apareceram. A apreensão tomava conta de
todos nós. Resolvemos, levados por tal sentimento, unanimemente, relatar o
ocorrido ao professor Machadinho. Este se fez preocupado, exigindo que
abríssemos o pacote que nos fora confiado. Ao fazermos, defrontamo-nos com um
saco aveludado, de cor azul, contendo numerosos diamantes lapidados. De
tamanhos e cores variados. Acaso os somássemos, encontraríamos ali mais de cem
quilates da preciosa gema.
Da surpresa e abatimento que nos
cercara, passamos à ação. Machadinho telefonou ao consulado brasileiro em
Marselha, solicitando a presença, urgente, de um dos seus representantes em
nosso hotel. E ele não fez se esperar. Em poucos minutos, estávamos diante do
vice-cônsul. Atento e apreensivo, ele
ouviu nossa história. Porém, sossegou-nos dizendo que se encarregaria dos
demais procedimentos legais, liberando-nos para prosseguirmos viagem. Ficaram
com ele as pedras, mediante um recibo de depósito, nossos nomes, nosso destino
final e a esperança de superarmos, incólumes, tamanho imbróglio provocado por
mera inocência, estupidez ou burrice, quiçá, pela inexperiência dos nossos 21
anos.
Meses depois, em Coimbra, Wilson,
folheando uma passada edição do Diário de Lisboa, nela viu a foto de Fuad
acompanhada da notícia de que ele, notório contrabandista de pedras preciosas
sul-americanas, diamantes e esmeraldas, e o seu grupo haviam sido pressões. O
nosso pasmo foi grande. Maior mesmo foi sabermos que o seu nome não era Fuad,
tampouco de nacionalidade libanesa. Era sírio. Ou melhor, tinha dupla
cidadania: brasileira e síria. E o verdadeiro nome era Barris Abdulla.
Quanto às pedras entregues ao
vice-cônsul, jamais tivemos notícias.
Do episódio, absolutamente verdadeiro
– ainda vivem Wilson e Álvaro para testemunhá-lo – restou-me a certeza de que
“todo baiano burro nasce morto”, mas os inocentes ou trouxas sempre vingam.
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