quarta-feira, 15 de outubro de 2014

DE GENTE E DE BICHO

 Crônica de Jayme Barbosa
Extraída do livro Crônicas Recolhidas


O ser humano, do primitivo ao civilizado, sempre foi comparável a bicho. Às vezes, para elogiar o vigor físico de um homem, diz-se ser ele um touro ou um galo. Não se vá por isso chamar uma mulher de vaca ou, muito menos, galinha: dá zebra, ela vira uma arara. Na França, insulto grave é camelo. Entre os chineses, o pior apodo é o de tartaruga. Aqui entre nós, é comum referir-se a alguém como um bicho, para isso ou aquilo; agora, se disser bicha, dá cacete. É questão de ponto de vista metafórico ou semântico. Em Portugal, “bicha” é fila. Mas já vi um português aqui na nossa terra escangalhar-se de rir defronte de O Paneleiro Baiano, paneleiro lá é o mesmo que veado aqui, dentro da linha de alcunhas animalísticas. Por outro lado, vale lembrar que em São Paulo havia um casa comercial de destaque chamada “Ao Veado de Ouro”. Era de portugueses, estás a ver.

O hábito dessas comparações é de tal modo arraigado que ao chamar de gata a felinesca criatura que nos passa a frente, já nem lembramos do bichinho de referência. Os gaúchos, das lides pampáicas, chamam-nas potrancas.  No fim, são qualificações elogiosas, ambas. Curiosamente, embora considerado o melhor amigo do homem, cachorro é usado como denominação injuriosa, principalmente no Iraque. Veja o xingamento que sofreu Bush, junto com as sapatadas. No feminino pior ainda. Aqui no Brasil, chamar alguém de macaco é discriminação racial: dá cadeia. Já burro e porco dispensam explicações. Os de mais destaque viram asnos, mulos, cavalgaduras. Estranhamente, diz-se com frequência: fulano é inteligente pra burro. O mau amigo é amigo urso. Embora seja fêmea do bode cabra significa também homem valente, mau: Cabra bom da peste! Cabra macho! Agora, xingar mulher raivosa de jararaca, por mais que mereça, dá bode. E por aí vai.
Os textos sagrados são também chegados a esses confrontos. O Kama Sutra classifica as mulheres e homens como animais, de acordo com a dotação genital de cada um. Desaconselha, por exemplo casamento de mulher coelha com homem jumento, ou vice versa, mas aconselha mulher pomba a casar com homens lebre. Respeite-se pois, a sabedoria hindu.
Em época mais recente, o genial Eugène Ionesco nos brindou com a peça Rinoceronte. É extraordinário ver a semelhança de inúmeros políticos nossos com o cascudo animal: o olhar iracundo, o unicórnio em riste, os antebraços flexionados e as munhecas encolhidas, pronto para o atraque. Quanto mais autoritária a política, maior o bando de rinocerontes por aí.
Vai daí que nos tempos de antanho, quando passava parte do meu cotidiano no sofrido ambiente de trabalho, dei para observar o zoológico em volta. Não se tratava, diga-se de passagem, de nenhuma alusão ofensiva aos companheiros circundantes da época nem aos animais a eles assemelhados. Afinal, estava também sujeito a parecer com algum bicho de nossa vasta fauna; na melhor hipótese com um mamífero desengonçado, como a anta sapateira, por exemplo. Que a pobre anta não se vexe com a comparação.
Além disso, agrada a qualquer vivente ver-se cercado de doces focas, elegantes gazelas, imponentes girafas, inquietos macacos, micos, guaxinins, plácidos cordeiros, impávidos gaviões; acima de tudo, gatas mansas ou ariscas, e esgalgas potrancas
Mas o melhor da fauna toda era a manada de elefantes. Antes de abordá-la, vale lembrar que no último conto dos Contos de Belazarte, Mário de Andrade tece comentário sobre o elefante que amarrou no rabo com corda grossa penuginha de beija-flor, caída numa folha, e saiu passeando na jungla pensando ser beija-flor.
Pois não é que o destino me concedeu o privilégio de conviver com uma manada de rabo enfeitado. Digo melhor, o privilégio de apreciá-los, vez que, por serem avis rara, eles mantinham o resto da animalidade à distância

O que mais espécie causava ao nosso cotidiano, contudo, era ver um sisudo leão marinho tanger gentilmente a manada de elefantes, que pensava ser beija-flor. Mistérios da Natureza.

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