Crônica de Jayme
Barbosa
Extraída do livro
Crônicas Recolhidas
O ser
humano, do primitivo ao civilizado, sempre foi comparável a bicho. Às vezes,
para elogiar o vigor físico de um homem, diz-se ser ele um touro ou um galo.
Não se vá por isso chamar uma mulher de vaca
ou, muito menos, galinha: dá zebra,
ela vira uma arara. Na França,
insulto grave é camelo. Entre os
chineses, o pior apodo é o de tartaruga.
Aqui entre nós, é comum referir-se a alguém como um bicho, para isso ou aquilo; agora, se disser bicha, dá cacete. É questão de ponto de vista metafórico ou
semântico. Em Portugal, “bicha” é fila. Mas já vi um português aqui na nossa
terra escangalhar-se de rir defronte de O Paneleiro Baiano, paneleiro lá é o
mesmo que veado aqui, dentro da linha de alcunhas animalísticas. Por outro
lado, vale lembrar que em São Paulo havia um casa comercial de destaque chamada
“Ao Veado de Ouro”. Era de portugueses, estás a ver.
O hábito
dessas comparações é de tal modo arraigado que ao chamar de gata a felinesca criatura que nos passa
a frente, já nem lembramos do bichinho de referência. Os gaúchos, das lides
pampáicas, chamam-nas potrancas. No fim, são qualificações elogiosas, ambas.
Curiosamente, embora considerado o melhor amigo do homem, cachorro é usado como denominação injuriosa, principalmente no
Iraque. Veja o xingamento que sofreu Bush, junto com as sapatadas. No feminino
pior ainda. Aqui no Brasil, chamar alguém de macaco é discriminação racial: dá cadeia. Já burro e porco dispensam
explicações. Os de mais destaque viram asnos,
mulos, cavalgaduras. Estranhamente, diz-se com frequência: fulano é
inteligente pra burro. O mau amigo é
amigo urso. Embora seja fêmea do bode
cabra significa também homem valente,
mau: Cabra bom da peste! Cabra macho! Agora, xingar mulher
raivosa de jararaca, por mais que mereça, dá bode. E por aí vai.
Os textos
sagrados são também chegados a esses confrontos. O Kama Sutra classifica as
mulheres e homens como animais, de acordo com a dotação genital de cada um.
Desaconselha, por exemplo casamento de mulher coelha com homem jumento,
ou vice versa, mas aconselha mulher pomba
a casar com homens lebre. Respeite-se
pois, a sabedoria hindu.
Em época
mais recente, o genial Eugène Ionesco nos brindou com a peça Rinoceronte. É extraordinário ver a
semelhança de inúmeros políticos nossos com o cascudo animal: o olhar iracundo,
o unicórnio em riste, os antebraços flexionados e as munhecas encolhidas,
pronto para o atraque. Quanto mais autoritária a política, maior o bando de
rinocerontes por aí.
Vai daí que
nos tempos de antanho, quando passava parte do meu cotidiano no sofrido
ambiente de trabalho, dei para observar o zoológico em volta. Não se tratava,
diga-se de passagem, de nenhuma alusão ofensiva aos companheiros circundantes
da época nem aos animais a eles assemelhados. Afinal, estava também sujeito a
parecer com algum bicho de nossa vasta fauna; na melhor hipótese com um
mamífero desengonçado, como a anta sapateira,
por exemplo. Que a pobre anta não se vexe com a comparação.
Além disso, agrada
a qualquer vivente ver-se cercado de doces focas,
elegantes gazelas, imponentes girafas, inquietos macacos, micos, guaxinins, plácidos cordeiros, impávidos gaviões;
acima de tudo, gatas mansas ou
ariscas, e esgalgas potrancas
Mas o melhor
da fauna toda era a manada de elefantes.
Antes de abordá-la, vale lembrar que no último conto dos Contos de Belazarte,
Mário de Andrade tece comentário sobre o elefante
que amarrou no rabo com corda grossa penuginha de beija-flor, caída numa folha, e saiu passeando na jungla pensando
ser beija-flor.
Pois não é
que o destino me concedeu o privilégio de conviver com uma manada de rabo
enfeitado. Digo melhor, o privilégio de apreciá-los, vez que, por serem avis rara, eles mantinham o resto da
animalidade à distância
O que mais
espécie causava ao nosso cotidiano, contudo, era ver um sisudo leão marinho tanger gentilmente a manada
de elefantes, que pensava ser beija-flor. Mistérios da Natureza.
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