A morte
sempre traz-nos indagações. Cercada de muitos mistérios, a morte toca a
divindade. As cerimônias de sepultamento tornaram-se religiosas. A
sepultura de Osiris no Egito nos fala dessa realidade religiosa. Em cada cultura, a morte chega cercada de
muitos rituais e crenças. A morte
lembra a vida, aponta para a eternidade. Os cemitérios mais antigos contam
essa história em seus mausoléus, arquitetonicamente bem construídos. Na Europa
são lugares silenciosos, pois, nos remete a muitas reflexões e lembranças. Na
Idade Média, a cerimônia de sepultamento era seguida de uma refeição, que
gerando abusos, a Igreja cuidou de proibi-las. No interior do Brasil, acontecem cerimônias
religiosas populares, como as “Incelências”.
Incelênça da Mortalha
Uma lavandeira, uma beija fulô
Lavando os paninhos de Nosso Sinhô
Quanto mais lavava, mais sangue corria
Mãe de Deus chorava; os judeus sorria
(...)
Doze lavandeiras, uma beija-flô
Lavando os paninhos de Nosso Sinhô
Quanto mais lavava, mais sangue corria
Mãe de Deus chorava; os judeus sorria
Conhecidas com vários nomes. As
“Incelências” são cantadas em sentinela, durante toda a noite, e cumprem a
função ritual de entrega da alma do ente querido aos cuidados dos Anjos e
Santos. A estes pedimos o acompanhamento, a proteção, até à entrada no céu.
O caminho é longo e diante das tentações do demônio, é indispensável a presença
protetora dos Anjos e Santos. O arcanjo São Gabriel e a Virgem Maria são os
mais invocados. Miguel, com a sua balança na mão, pesa cada alma. O papel de
advogada, então, cabe à Maria.
Incelença de Despedida
Ajunta os carregador
O defunto quer ir-se embora
Ajunta os carregador
O defunto quer ir-se embora
Eu venho pedir licença,
Licença p'ra cantar agora
Ó, alma; ó alma. Porque estás
aqui chorando
Se é por uma Incelença, já
estamos cantando
(...)
Ajunta os carregador
O defunto quer ir-se embora
Ajunta os carregadores
O defunto quer ir-se embora
Eu venho pedir licença,
Licença p'ra cantar agora
Ó, alma; ó alma. Porque estás
aqui chorando
Se é por doze Incelenças, já
estamos cantando
O canto não pode
ser interrompido nem quebrado e é cantado em ordem crescente. A “sentinela” foi trazida de Portugal e
aqui foi enriquecida com as culturas presentes no Brasil, indígenas e negras.
Para o maestro e folclorista Guerra Peixe, a “excelência é também o
próprio morto. Não é uma oração qualquer, mas uma oração excelente, cantada
a partir da meia-noite, quando tudo está excelente.
A “sentinela” é um acontecimento de muito respeito na vida do povo. Na
estrutura do catolicismo popular, destaque merecem as mulheres, também aqui nos
lembramos das “carpideiras”, que têm o papel de chorar. Conhecemos as mulheres
rezadeiras, as benzedeiras e as beatas, que ajudam o povo a rezar e a celebrar
os principais momentos da vida. Na
“sentinela”, as rezadeiras cuidam do morto e as condutoras de “incelência”
preparam os últimos atos da permanência do falecido entre os seus.
Desde os primeiros tempos, os cristãos sentiram uma profunda veneração
por seus mortos, pois usavam de aromas e incenso para honrar seus mortos. A
esperança comum unia defuntos e sobreviventes com afeto e respeito. Em sua
liturgia, a Igreja acompanha seus fiéis na experiência da morte e o que
alimenta a experiência das sentinelas é a esperança e a solidariedade humana. O
momento de oração é coberto de confiança em Deus misericordioso, quando em
outros momentos, o medo do inferno, dos castigos de Deus dominavam. O nosso povo
ainda possui na memória as imagens muito detalhadas do que é o inferno, mas
pouco sabemos do imaginário do céu. A infinita misericórdia de Deus, conhecida
por nós, deveria nos conduzir à idéia de que dificilmente algum filho seu se
perderia no inferno. Em Ariano Suassuna no “Auto da Compadecida” conhecemos
como se deu o julgamento final dos principais personagens daquela trama
literária. A misericórdia do Pai sobressai e a mediação de Maria surge como
ressonância religiosa de uma prática que tem raízes populares da fé cristã.
Convém lembrar que
nas cerimônias ritualísticas dos enterros nas comunidades rurais nordestinas,
ainda cabiam as carpideiras, os violões, a comida da boa, as lapas de caninha
cheirosa e gostosa e o morto tendo como mortalha (caixão) uma rede de 4 pés, ou
seja, espaçosa onde poderia acomodar duas pessoas.
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