sábado, 31 de janeiro de 2015

A SAGA DOS ARIGÓS – A HISTÓRIA DOS SOLDADOS DA BORRACHA – PARTE II

 Por ARIADNE ARAÚJO – JORNAL DO POVO, CEARÁ

Final de A Guerra da Borracha e o capítulo Seca & Migração

 Invasões e escassez

 O ataque a Pearl Harbour arrastou os Estados Unidos para a guerra contra o Japão. Mas foram as invasões japonesas na Malásia e Borneo - sob o domínio inglês -, que trouxeram o pânico aos estrategistas americanos. Isso significava um corte brusco em 97% de suas fontes de suprimentos. Na cabeça da lista: a borracha. O mercado ocidental da goma elástica estava, então, fechado para os Aliados.

Antes disso acontecer, no entanto, os EUA tinham feito alguns esforços para evitar um possível desastre. Alarmados pela extensão e intensidade do conflito no Pacífico e temendo um colapso civil e militar, os EUA intensificaram o seu programa de procura e compra da borracha. A iniciativa aumentou o estoque, principalmente através de permutas com a Inglaterra. O negócio era trocar borracha crua por produtos agrícolas, como algodão. O embaixador inglês Lord Halifax tinha motivos suficientes para satisfazer as necessidades de borracha da indústria americana.

Primeiro a Inglaterra precisava de divisas para enfrentar a guerra. Em segundo lugar, os ingleses tentavam evitar com isto que os americanos montassem uma poderosa indústria de borracha sintética. Também estava em jogo um possível apoio à causa anglo-francesa. Mas, apenas três meses após o ataque a Pearl Harbour - Porto das Pérolas -, no Hawai, os EUA proibiam a venda de pneus. Fora da ocupação japonesa, os Aliados ainda tinham como alternativas a Índia, Ceilão, Libéria, África e América Latina.

Confusão e tumulto. As repartições do governo americano começaram a se abarrotar de sugestões de especialistas. Eram dezenas de planos e projetos para procura e produção de borracha. Foi em meio ao desespero como esse que os americanos se depararam com a Amazônia, de longe o maior depósito de borracha natural. A Rubber Development Corporation assumiu, então, o comando da orientação e organização de planos do governo americano para obtenção do látex amazônico. E a história do Exército da Borracha começa a ser desenhada. (AA)

 Como os ingleses roubaram o ouro branco

 De simples droga do sertão a ouro branco. A exploração da borracha vegetal na América remonta aos tempos pré-colombianos. Para os índios que habitavam o golfo do México, ela era moeda e pagamento de tributos aos Astecas. As expedições científicas nos séculos XVIII e XIX, no Vale Amazônico, voltavam fascinadas. No começo do século XVI, a descoberta já não era uma simples notícia, mas sim uma possibilidade comercial em meio a uma Europa ávida por novas oportunidades econômicas.

O inventor americano Charles Goodyear resolveu o problema em 1839: o ponto ideal de elasticidade e impermeabilidade. Ou melhor, a vulcanização. O processo tornava a borracha resistente às variações de temperatura e abria os caminhos para a indústria do processamento da borracha. De um lado a outro do Atlântico surgiram correias, mangueiras, calçados, pisos, artigos esportivos, vestimentas impermeáveis, equipamentos cirúrgicos e elásticos.

A invenção do pneumático (1888), o aparecimento do automóvel (1895) e a massificação da bicicleta como veículo de transporte causaram o surto da borracha nos mercados mundiais. De todas as áreas onde se operava a extração do látex, a Amazônia era a que oferecia maior segurança e amplas possibilidades: quantidade quase ilimitada de seringueiras e gomais e boa produtividade das árvores. Mas, no final do século passado, o Norte do Brasil era ainda a região de cacauais, cafezais, dos engenhos, das lavouras e do pastoreio.

Tarde demais para tanta paz. Começava a desenfreada corrida rumo aos seringais. A Amazônia transforma-se na região das héveas, do ouro negro, dos pioneiros, dos seringueiros, dos patrões, dos aviadores. No início, na chamada fase cabocla, os seringais foram explorados por mão-de-obra local: mestiços ou tapuios. O boom da borracha, no entanto, chamou a atenção de trabalhadores do outro lado País. O historiador Celso Furtado estima em 500 mil o número de nordestinos que se retiraram para a Amazônia nesse primeiro ciclo da borracha.

Os seringalistas ou patrões sabiam onde procurar operários. Em Fortaleza, Recife e Natal, eles encontravam desempregados e refugiados, fugitivos da seca e da miséria no sertão. A arregimentação tinha uma propaganda forte. Trazia a ilusão de enriquecimento rápido, de trabalho autônomo, de liberdade, do El Dorado. De 1850 a 1900 a população do Vale Amazônico aumentou dez vezes. No livro História Econômica do Ceará, Raimundo Girão calcula: das 300.902 pessoas que emigraram do Ceará, no período de 1869 até o final do século, 225.526 se destinaram para a Amazônia.

Era difícil imaginar que aquela euforia fosse passageira. O Brasil dominava o mercado mundial e tinha o maior reservatório de seringueiras do Planeta. A economia da borracha se expandiu entre 1880 e 1920. Em 1913, por exemplo, a borracha responde por 20% da exportação total do País. A riqueza da região parecia inesgotável. Mas a prosperidade do Vale Amazônico estava com seus dias contados. Na Inglaterra, um plano bem articulado estava sendo traçado. A idéia era roubar o ouro branco do Brasil.

O aventureiro inglês Henry Wickham fez o trabalho sujo ``nas barbas'' do governo brasileiro. Ele chegou à Amazônia em 1876 como um excêntrico colecionador de orquídeas, à procura de tubérculos raros. Às margens do Tapajós, ele iniciou suas experiências. Plantou uma grande quantidade de seringueiras e, logo logo, produziu as cobiçadas sementes. Um navio de Sua Majestade Britânica, o Amazonas, levou o contrabando como se fossem preciosos pacotes de orquídeas. Na verdade, eram milhares de sementes da árvore da borracha a caminho das estufas londrinas e depois para o Ceilão. Estava preparada a surpresa.

Fraude ou contrabando? Enquanto o Brasil ainda comentava o farto banquete oferecido em Belém aos tripulantes do navio de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra, as sementes roubadas davam início ao cultivo de seringueiras nas colônias britânicas do Oriente. Sem tecnologia, com um sistema arcaico na extração do látex, baixa produtividade e elevados custos, o sistema extrativista da Amazônia não resistiu. A concorrência era organizada, trabalhava com pesquisa e cultivo racional. Estava quebrado o monopólio brasileiro.

Quebradeira geral. Falências e concordatas. Seringais desativados. Esse foi o calamitoso ano de 1913. Sem esperanças, Epitácio Pessoa resolve fornecer passagens aos nordestinos para que regressem às suas regiões. Uma corrente migratória em sentido contrário. Trinta anos depois, em plena Segunda Guerra Mundial, o sonho do El Dorado volta a mexer com a cabeça dos brasileiros. Os nordestinos já sabem o caminho. É o mesmo que levou e trouxe avós e pais. (AA)
  

Eles fizeram esta história


Esperança de voltar - A venda de picolés é o complemento da aposentadoria de João Vitorino Bezerra, 65. Quando chegou à Amazônia, foi trabalhar em um seringal próximo aos índios urubus-araras. ``Chorei muito de saudade da minha terra, no Ceará. O meu sonho, estar perto de meus pais na hora da morte deles, eu não realizei. Mas continuo sonhando em voltar à minha terra''. Na festa do Soldado da Borracha, João Vitorino não perdeu a chance: levou o carrinho de picolé. Dois coelhos com uma cajadada: rever amigos e ganhar uns trocados para sustentar os netos.

Medo da polícia - Benedito Ferreira, 84, nasceu em Riacho do Sangue, na região do Jaguaribe, no Ceará. Só a oração de Santa Luzia era garantia de proteção contra os perigos da selva ou mau patrão. Mesmo depois de tanto tempo, o aposentado ainda tem um medo da época de seringueiro: que a polícia venha prendê-lo por uma briga que acabou mal em meio à floresta. O rival foi ferido de morte? Ele não sabe, mas, por via das dúvidas, é melhor prevenir. Além de um problema na perna que o impede de andar direito, ele traz outra herança: o castelhano. ``Aprendi a falar espanhol com os bolivianos''.

Amuleto da sorte - Uma bola de borracha. Fui tudo o que sobrou da lembrança da época de seringueiro. Filho de paraibano, José Correa dos Santos, 58, conta que tudo era difícil para o soldado da borracha. Em Cruzeiro do Sul, município do Acre, próximo à fronteira com o Peru, ele hoje é proprietário de um pequeno comércio de secos e molhados. O dinheiro para montar o próprio negócio ele conseguiu porque deixou a vida de seringueiro e foi ``regatear'', ou melhor, comerciar pelos rios do Acre. Hoje, um quilo de borracha pendurado por um cordão funciona como um amuleto de sorte na entrada do comércio. ``Só venci porque deixei a vida de soldado da borracha''.

  
PERCURSO DA BORRACHA PELO MUNDO


Acordos de Washington - Sem estoques de borracha e diante de um colapso da principal matéria-prima para a indústria bélica, os Estados Unidos assinaram os Acordos de Washington com o Brasil. O objetivo era extrair da Amazônia, o maior reservatório de látex do Planeta, 100 mil toneladas de borracha por ano. Por causa disso, um plano de atração de mão-de-obra foi colocado em ação. Cerca de 55 mil nordestinos foram levados pelo Governo Federal para trabalhar na floresta.

Monopólio - Em 1876, a Inglaterra iniciou o cultivo de seringueiras em bases racionais nas colônias do Oriente, como a Malásia. As sementes, roubadas da Amazônia por um aventureiro, Henry Wickman, foram levadas para estufas inglesas e, anos depois, deram origem a um novo mercado fornecedor de borracha. O Brasil perdia o monopólio para a Inglaterra.

El Dorado - A partir de 1943, a Amazônia viveu um novo El Dorado. A corrida em busca do ouro branco que, no século passado, já havia provocado um processo migratório do Nordeste para o Norte do País, voltou a acontecer. Segundo um boletim divulgado pelo Governo Federal, a extração da metade da borracha disponível na Amazônia já resolveria a crise da borracha em que se achavam os Aliados.

Alternativa - Os ingleses temiam que os americanos montassem uma poderosa indústria de borracha sintética. Três meses após o ataque a Pearl Harbour, no Hawai, os EUA já proibiam a venda de pneus. O mercado alternativo para compra da matéria prima pelos Aliados era formado pela Índia, Ceilão, Libéria, África e América Latina

Cultivo racional - Na Malásia, as sementes de seringueiras, roubadas do Brasil, foram cultivadas de forma racional. Nas plantações do Oriente, ao contrário do Brasil, a distância entre as árvores era a mínima necessária, sob orientação de pesquisas. Na Amazônia, os seringueiros tinham que se embrenhar na floresta à procura do látex. Isso significava perda de tempo e de produção. Principalmente por causa disso, a seringa da Malásia conquistou o mercado internacional.



A origem da minha viagem
A esta santa terra
É porque em quarenta e três
O Mundo estava em guerra
Foi a causa de tudo
Que nesta História se encerra
Raimundo de Oliveira (RO), cordelista e soldado da borracha



Eu já ia para a guerra
Já estava sorteado
Mas havendo necessidade
Para a borracha fui tirado.
O bem da Pátria também era
Um bom serviço prestado.
(RO)

 SECA & MIGRAÇÃO


Dinheiro fácil. A promessa atraiu milhares de nordestinos para o Exército da Borracha. No trabalho de arregimentação de voluntários, o Governo Federal pediu ajuda a padres, médicos, enfermeiras. Nos alojamentos, construídos para receber os soldados, problemas com a comida, surtos e motins.

Uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branca, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca de flandre, um prato fundo, um talher, uma rede e uma carteira de cigarros Colomy. No lugar da mala, um saco de estopa. O enxoval do soldado da borracha era o presente do presidente Getúlio Vargas aos voluntários do Inferno Verde, como ficou conhecida a Amazônia posteriormente. Melhor que isso, só a promessa de dinheiro fácil estampada em cartazes de propaganda do Governo Federal. Difícil resistir. Principalmente para quem vive no Sertão em um ano de muita miséria. Na seca de 1942, cerca de 55 mil nordestinos se alistaram para a Batalha da Borracha.

Ou corre ou morre. Joaquim Moreira de Souza, de Russas, oeste do Ceará, explica: a seca me cutucou. A ameaça de inclusão na Força Expedicionária Brasileira, que lutava na Itália, foi o empurrão que faltava. Mas na inauguração da Campanha Nacional da Borracha, Getúlio Vargas empolgou os indecisos. ``Brasileiros! A solidariedade dos vossos sentimentos me dá a certeza prévia da vitória''. Pra completar, um prêmio para o seringueiro campeão. O maior fabricante de borracha durante o ano levaria 35 mil cruzeiros. Isso e mais vantagens: uma viagem grátis, ou quase, de caminhão, trem e navio por mais de cinco mil quilômetros até o “El Dorado''.

Só em Fortaleza, no Ceará, a Campanha da Borracha encontrou 30 mil flagelados à espera de ajuda. No Interior do Estado (Sobral, Iguatu e Crato), o Governo Federal também abriu postos de arregimentação. Um exame físico e a assinatura de contrato selavam o compromisso. Os voluntários passavam a empregados de imediato. Com direito ao salário de meio dólar por dia e alojamento até a partida, a tropa vivia sob firme disciplina militar. Para abrigar tanta gente, às vezes mil em um único dia, o jeito foi construir uma hospedaria modelo, de nome Getúlio Vargas, perto da igreja São Judas Tadeu, no bairro Olavo Bilac, zona Oeste de Fortaleza.

Além de aliciadores profissionais, a mando dos patrões - donos de seringais no Amazonas -, o trabalho de convencimento era feito por padres, médicos, advogados. A promessa era de que os voluntários voltariam como heróis da Pátria, sob total apoio do Governo Federal, e ficariam ricos na extração da borracha. O que não foi dito, milhares de nordestinos tiveram que descobrir depois, quando já era tarde demais para voltar. De livres, passaram a escravos. No coração da selva, isolamento e solidão. Eles trabalhariam para pagar uma dívida econômica e moral com o patrão. De lá, não se podia escapar.

A prisão pela dívida. O soldado já chegava devendo. Um patrão ou seringalista anotava o débito em sua conta e ele trabalhava para pagar. Um novelo de linha que nunca tinha fim. Havia sempre mais dívidas a pagar: a comida, a roupa, a arma, o material de trabalho, o remédio. Tudo era vendido, a preços dobrados, por uma única pessoa. E ela não tinha pressa, nunca, em dar baixa naqueles números infindáveis. Algemas invisíveis para um exército enganado. Os nordestinos descobriam, então, o que era o Inferno Verde.

Para muitos, foi como uma condenação à morte. O mundo dos cavalos, bois, safras de arroz e feijão, sol e terra, secas e flagelos se acabou. Agora eram canoas e barcos, onças pintadas, estranhas moléstias, florestas e rios tortuosos. A população da Amazônia reparou no espanto. Assim, a patente era de soldado e o apelido de passarinho. Os migrantes eram como a pequena ave de arribação, o arigó, típica do Nordeste, que vaga de uma lagoa a outra. Mas os problemas começavam antes da chegada à Amazônia. Promessas mirabolantes eram chamariz para os desavisados.

A parafernália de organizações estrangeiras e brasileiras, envolvidas na operação de guerra, não se entendia. Do lado americano, a Board of Economic Warfare hostilizava a Reconstruction Finance Corporation. A Rubber Reserve Company não se comunicava com a Defense Supllies Corporation. Do lado brasileiro, o Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), a Superintendência para o Abastecimento do Vale Amazônico (Sava), o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), o Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (Snapp) pareciam não falar a mesma língua.

A Torre de Babel podia ter rendido pelo menos um conto: O Caso do Sumiço das Mulas. Em 1942 pelo menos 1.581 mulas se perderam entre São Paulo e Acre. A última notícia que se teve dos animais é que, depois de quatro meses, não haviam chegado ainda a Cuiabá. Ou então a importação de 5 mil toneladas de farinha de trigo por conta de um erro na tradução português-inglês. Nesse caso, tudo o que os soldados da borracha queriam era a velha farinha de mandioca. O alfaiate João Rodrigues Amaro, 72 - na época com 17 anos -, não achou graça desses e de outros enganos na Campanha da Borracha.

Alistado em Sobral, norte do Ceará, ele conta que a comida nos pousos, ou seja, alojamentos, era péssima. Muitas vezes o cozinheiro levava na cara o prato de alimento. Na água e no sal, o feijão, arroz, farinha e charque. Pra evitar a reclamação, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia contratou três nutricionistas e alardeou a notícia pelos jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Marta Novais Filho, por exemplo, tinha a tarefa de padronizar a bóia dos amarelados guerreiros da borracha, como diz o jornal Suplemento Econômico (Rio de Janeiro, em 1942).

Milhões de moscas perseguiam os homens nos refeitórios, dormitórios, recreios. No alojamento de Belém, um surto de meningite matou pelo menos 12 pessoas. A assistência médico-sanitária era precária. O mês em que não havia óbito era comemorado. O exames de rotina se limitavam a diagnosticar se o soldado havia ou não contraído doenças sexualmente transmissíveis. No ato da admissão, banhos e raspagem de cabelo. Os incapazes e doentes eram dispensados. Sair dos alojamentos, só com autorização da chefia e mesmo assim com hora pra voltar.

Com o passar do tempo, cercados de arames e vigias, os alojamentos começaram a parecer campos de concentração. Sem trabalho ou tarefa fixa, sem atividade esportiva ou um simples aparelho de rádio, migrante brigava com migrante ou com a guarda. Para o Departamento Nacional de Imigração, esses conflitos tinham jeito de motim. Para a população, de arruaça. Soltos, andavam ao léu pelas ruas e as brigas se multiplicavam. Os arigós, enquanto aguardavam transporte para a viagem, eram chamados de vagabundos, de come-e-dorme, temidos, com suas peixeiras e, mais tarde, facas jebond. (Ariadne Araújo)

Arte de Chabloz mobiliza soldados


Uma procissão se aproxima. Homens, mulheres e crianças se arrastam pela estrada. Uma nuvem de poeira toma conta do ar. Para Jean-Pierre Chabloz, uma acidental testemunha da seca de 1943 no Ceará, aquele era um cenário saído de um campo de concentração. Fantasmas, mais que seres humanos. Em uma rede suspensa por um pau, uma criança morre de fome. A visão é de desastre. Vales descarnados. Nos arbustos, apenas uma ou duas folhas prestes a cair. Tudo sob o peso de um rigoroso racionamento. Extensões queimadas e requeimadas, fazendas sonolentas e aquela infindável multidão de retirantes.

Em 1942, O artista plástico suíço Pierre Chabloz se apaixonou pelo Ceará ainda na estrada, durante uma viagem de 24 horas de São Luis (MA) a Fortaleza (CE). Ele vinha contratado pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta). Era o novo chefe da Divisão de Desenhos Publicitários na Campanha Nacional da Borracha. A primeira tarefa: criar quatro grandes cartazes para incentivar a produção de látex. Depois, vários mapas de biótipos de nordestinos, que ajudariam na seleção dos candidatos. Por último, a decoração publicitária dos caminhões que, periodicamente, levariam as turmas contratadas até metade do caminho.

As peças publicitárias da Campanha da Borracha foram enviadas para todo o Norte e Nordeste do País. Para fazer o trabalho, Pierre Chabloz teve que viajar em um pequeno avião até Belém, no Pará. A idéia era ver pessoalmente a extração de látex para reproduzir. Também de São Luís veio a sede do Semta. No Maranhão a arregimentação caminhava de forma lenta. Os candidatos não apareciam. A notícia de milhares de flagelados no Ceará, em busca de ajuda na Capital, quase foi comemorada. Não por Chabloz, que se admirou com a força que viu nos retirantes.

As impressões do artista plástico foram anotadas em um diário escrito em francês. Hoje, todo o detalhamento do trabalho do Semta - desenhos, explicações minuciosas sobre os alojamentos, passeatas, transporte -, está a salvo no arquivo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc). Pierre Chabloz também guardou exemplares dos cartazes e fotos raras da época, feitas por ele, para ilustrar suas explicações particulares. (AA)


Campanha era puro engodo


Tudo pela vitória comum. Um trabalho de brasilidade. A propaganda dirigida e veiculada nos meios de comunicação fazia cada novo trabalhador na seringa se sentir um genuíno soldado de um novo front, a Amazônia. No discurso, eles eram tão importantes quanto os aviadores e marinheiros que lutavam no litoral contra a pirataria submarina ou ainda os soldados das Nações Unidas. Contribuição anônima de trabalhadores admiráveis. Sacrifício e labor incansável. Ainda por cima, ``dinheiro a rodo''.

Puro engodo. A mais chocante das mentiras era a forma de apresentar a coleta do látex. Nas esquinas, retratos de seringueiros em meio a infindáveis tambores carregados por caminhões ou jeeps. É claro que não se tratava dos seringais da Amazônia, mas das plantações da Firestone na África ou da Malásia e Ceilão. A persuasão ideológica gastou milhões de dólares na imprensa, rádio e cinema.

Outra campanha de persuasão abarcava todos os brasileiros. Ainda na política de boa vizinhança, o Brasil foi invadido por jornalistas, radialistas, editores, professores, cientistas, artistas, escritores, músicos, diplomatas, empresários, técnicos, estudantes e pesquisadores de mercados do Norte do Continente. Eles traziam o american way of  life. O ministro Oswaldo Aranha, numa tirada de bom humor, explicou: mais uma missão de boa vontade e declaramos guerra aos EUA. (AA)


Eles fizeram esta história


Favela e palafita - Lá é cavalo. Aqui é canoa. A diferença até hoje não sai da cabeça de Lourenço Canário da Silva, 75. No bairro da Lagoa, no igarapé São Salvador, em Cruzeiro do Sul, no Acre, ele mora com a mulher em uma palafita. A comunidade, cerca de 380 famílias, compõe uma grande favela às margens do braço do rio Juruá. Um cenário muito diferente do que Lourenço conheceu em Aracoiaba, no Ceará, onde nasceu. ``Ganhei uma passagem de Getúlio Vargas e em troca dei minha vida. Tudo mudou''. Como soldado da borracha ele conseguiu uma aposentadoria de dois salários mínimos. É o que sustenta a casa.

Cordel e turismo - Um ex-seringueiro, Raimundo Nonato da Silva, 66, ganha a vida hoje contando a história da campanha da borracha para os turistas. No Museu da Borracha, em Rio Branco, no Acre, ele recebe os visitantes e mostra um pouco da vida na floresta, na extração do látex. ``Meu pai era cearense. Eu era pequeno, mas via o que os patrões faziam com os seringueiros. Eles amarravam as pessoas, metia a peia e botava pimenta nas feridas. Era preciso ser muito homem''. O sofrimento dele e do pai estão nos versos de cordéis que ele escreve. Uma poesia que veio como herança dos antepassados do Ceará.

Saúde comprometida - O boato de ficar rico fez Joaquim Evangelista Pontes, 78, deixar o emprego de entregador de pão em Russas, no Ceará, para ser seringueiro em Rio Branco, no Acre. ``Escapei foi por aqui''. Um companheiro de profissão, Sebastião Simão, 90, teve menos sorte. ``A vista enfraqueceu de tanto trabalhar no escuro, pela madrugada a dentro, atrás da borracha''. Simão veio do Rio Grande do Norte, na época da II Guerra, e hoje suas lembranças são de tristeza e de doenças. ``Até hoje tenho dor de cabeça e esmorecimento de tanta picada de mosquito que levei. Passei muito tempo em hospital. Quase morri''.




Sou filho do nordestino,
Natural do Ceará; vim embora para
O Acre para a seringa cortar, produzir
Borracha, ganhar dinheiro, para a sua
Terra de origem um dia poder voltar.
Raimundo Nonato (RN), cordelista e soldado da borracha)



Saindo lá do Nordeste onde
Morava no sertão, deixando lá os seus
Pais, junto com seus irmãos, para
Vir morar nas matas do Acre, no
Seringal do patrão.
(RN)

Origem: Centro Espírita Beneficente União do Vegetal e Jornal do Povo, Ceará

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