História e romance, eis o que a cidade representa
Existem cidades que
não nos saem do pensamento. Ao visitá-las, elas aderem ao nosso eu e, delas,
dificilmente conseguimos escapar. É o caso de Carcassonne. Ela está em mim
desde quando a visitei. E isso, aconteceu há anos. Não a acolhi pelo amor às suas mulheres.
Tampouco, pelas suas histórias. Eu a acolhi, tão só, por sua singeleza, pelo
seu modo de vida, por representar o espírito francês.
Não há castelo encantado que se preze que não tenha as suas lendas. Carcassonne justifica o seu nome
com a história da dama de Carcas:
quando Carlos Magno cercou a cidadela
desta dama sarracena, achando-se desprovida de soldados, Carcas distribuiu
pelas torres e muralhas bonecos feitos de palha, armados para combate.
O estratagema
resultou em vitória, e Carlos Magno levantou o cerco, desanimado com inimigo
tão numeroso. Terá dito então a dama: “Sire, Carcas te sonne.” (“Senhor, Carcas vence-te”, em
tradução livre). Daí o nome da
cidade, que a lenda assegura que se tornou cristã, dando a dama origem à
primeira linhagem de condes de Carcassonne.
A verdade, porém, é que os romanos já tinham uma
fortificação na zona a que chamavam Carcasso, e os sarracenos, que se sucederam
aos visigodos e não ficaram por muito tempo, chamavam-lhe Carchachouna. A cidade-fortaleza foi palco de combates,
cercos, destruições maciças e, por fim, expulsão dos seus habitantes, que
resultou na ruína do que ainda estava de pé. Lendária mesmo parece ser a sua
reconstrução no século XIX, pelo arquiteto Viollet-le-Duc, o mesmo que
restaurou os santuários de Notre-Dame de Paris e Sainte-Madeleine de Vézelay.
Hoje, Carcassonne é depois da Torre Eiffel e do Mont Saint-Michel, o local
mais visitado de França. As suas
calçadas de pedra são percorridas, não por cavaleiros medievais, mas por
turistas de todas as nacionalidades, armados de vídeos e máquinas fotográficas.
O seu
casario antigo abriga uma infinidade de restaurantes e hospedarias que revivem,
através da decoração e da cozinha local, a época dourada da cidade, entre os
séculos XI e XIII. A basílica de Saint-Nazaire, construída nessa
altura, atrai visitantes de todos os credos para o seu recinto escuro, que
convida ao recolhimento, iluminado por magníficos vitrais. O encontro do românico com o gótico dá-se aqui de uma forma harmoniosa,
justificando o nome de “joia da fortaleza”, com que os folhetos turísticos
a mimoseiam. O seu órgão é um dos mais
importantes e antigos do sul de França, e de Junho a Setembro há concertos
diários - “Les Estivales d'Orgue” - que enchem a cidadela de sonoridades
quentes e arcaicas – hoje, quem sabe, modernas.
Pelas suas praças, onde ainda resistem alguns poços
de pedra que abasteciam de água a população, distribuem-se agora esplanadas
muito concorridas, com espetáculos diários de música ao vivo, bem distinta da
dos trovadores Ramon de Miraval ou Peire Vidal, que aqui viveram durante algum
tempo. Raymond-Roger Trencavel, visconde de Albi e último senhor da fortaleza,
certamente não reconheceria a sua cidade. É certo que qualquer loja de
souvenires vende conjuntos de capacete e espada, e mesmo armaduras completas.
Torres da
cidade medieval de Carcassone
Também é
fácil encontrar relógios de sol e saquinhos de pano com ervas cheirosas, das
que perfumavam as roupas das damas da época. Mas a animação é sempre pacífica,
e a magnífica iluminação nocturna não dá paz aos fantasmas, impedindo o seu
turismo noturno e doloroso; durante os meses de Verão, Carcassonne é uma cidade
profusamente habitada e muito viva.
Para reconstituir ainda melhor o ambiente medieval,
em Agosto organizam-se torneios de cavalaria e falcoaria, com participantes
vestidos a rigor, como no tempo dos cruzados. As velhas pedras da cidade não
devem apreciar particularmente a lembrança, uma vez que foram estes que, em
1209, ditaram o seu fim: o visconde de Trencavel teve a ousadia de oferecer
abrigo e proteção aos cátaros, dissidentes de um catolicismo que se afundava na
decadência moral.
O seu pecado era defenderem a pureza dos costumes
cristãos e não respeitarem a hierarquia eclesiástica.
Carcassonne foi das primeiras cidades a sofrer o
embate da guerra santa declarada pelo Papa Inocêncio III. Cercada, perdeu o
acesso crucial ao rio Aude e, numa manobra pouco “cavalheiresca”, o visconde de
Trencavel foi feito prisioneiro ao sair do castelo para negociar.
A partir daí, começou o declínio. Simon de Monfort,
o comandante da cruzada, administrou a cidade até à sua morte, mas o seu filho
foi incapaz de manter o território conquistado, e entregou-o à autoridade
direta do rei. Quando o filho do visconde de Trencavel tentou reaver as terras
do pai, Luís VIII dá ordens para arrasar a fortaleza e exilar os seus
habitantes; só sete anos mais tarde conseguem obter autorização real para se
instalarem de novo na zona - mas do outro lado do rio.
O turismo anuncia
Carcassonne como “la ville aux deux cités”, a cidade
das duas cidadelas: a antiga fortaleza, no cimo da colina, e o novo burgo que
nasceu no século XIII, aos pés da primeira, na margem esquerda do rio Aude.
Desde sempre as duas zonas tiveram existências distintas, com toda a atividade
comercial e social a desenrolar-se em baixo, enquanto a cidade-alta abrigava
uma guarnição de mais de mil soldados.
A tendência
manteve-se até hoje: só cerca de cento e vinte, dos seus quarenta e cinco mil
habitantes permanentes, habitam a cidade antiga. Mas apesar da atividade
evidente nas suas ruas e praças arborizadas, que substituíram as muralhas e
estão agora semeadas de cafezinhos acolhedores, a atração será sempre a “cité”, marco milenar da história da região do
Languedoc. Para além das comodidades e serviços turísticos de que dispõe, a
Bastide Saint-Louis, como é conhecida a cidade-baixa, serve apenas para compor
a magnífica vista que nos oferecem as torres altas da fortaleza - e do cimo
desta sentinela de pedra, não se consegue evitar a sensação de fragilidade que
vem do casario baixo e pálido da Bastide.
Passeio ao
longo das muralhas de Carcassonne
Nada é regular ou simétrico nesta obra-prima da
arquitectura militar, o que se explica pela longa história de reconstruções,
modificações e acrescento, que já dura há séculos e ainda não acabou. Mesmo
depois da expulsão dos seus habitantes, a fortaleza foi modificada e
aperfeiçoada, de modo a tornar-se um eficaz posto militar avançado.
Ao mesmo tempo que se reforçou o sistema defensivo
com a construção de uma segunda muralha exterior, também a austera Catedral de
Saint-Nazaire foi aumentada e melhorada. O castelo do conde foi rodeado por um
fosso, transformando-se numa fortaleza dentro da fortaleza. São cerca de três
quilómetros de fortificação, por onde se distribuem cinquenta e duas torres
para todos os gostos: há torres quadradas e redondas, de envergadura e tamanho
diferentes; umas têm seteiras, outras janelas e algumas são, aparentemente,
fechadas.
Toda a cidade parece estar cheia de armadilhas:
cotovelos estreitos para que só passe um inimigo de cada vez, degraus gigantescos,
fossos dissimulados, enfim, todo o mostruário do engenho militar que veio sendo
aperfeiçoado desde os romanos, destinado a guerras de cerco, tão comuns nos
tempos medievais. Só a mudança das técnicas de guerra, nomeadamente a
utilização generalizada da artilharia a pólvora, nos séculos XV e XVI, a tornou
definitivamente obsoleta.
Apesar de tudo, é impressionante o seu aspecto
exterior de castelo, ao mesmo tempo irreal e inexpugnável. Contorná-la por
entre as suas duas muralhas, espreitando pelas janelas e varandins para a
paisagem verde de vinhas e campos cultivados, é um convite para uma viagem no
tempo, que continua quando atravessamos a ponte levadiça.
As ruas estreitas de pedra cinzenta, sombrias no
Verão e protegidas dos ventos frios no Inverno, transformam-se num labirinto, e
nunca sabemos se terminam nas muralhas, na basílica ou na praça principal.
Pouco importa. Os passos ecoam de longe, e a cada esquina esperamos ver
aparecer alguém de cota de malha e elmo reluzente.
As carroças que conduzem os turistas em visitas
guiadas reforçam a esperança, com o ruído dos cascos e o soprar dos cavalos a
ressoarem nas paredes de pedra. Para continuar o recuo no tempo, é possível
visitar o castelo do visconde, que dá acesso exclusivo a certas partes da muralha.
E para terminar a viagem, nada melhor que uma visita ao Museu Medieval e ao da
Inquisição, que nos proporcionam pormenores nem sempre agradáveis da história
da cidade. Outro museu ao gosto da época é o da Tortura, que exibe sádicos e
requintados instrumentos, concebidos em noites de insónia, destinados a punir
sabe-se lá que crimes medievais...
Carcassonne
- fosso interior
Dizem os seus apreciadores mais sinceros que a
cidade não se visita de Verão: há demasiada agitação e pouca privacidade para percorrer
a velha Carcassonne, e a viagem no tempo, que deve ser feita na solidão, é
constantemente interrompida por grupos de turistas ruidosos. Das esplanadas sai
música durante o dia inteiro e os restaurantes abarrotam de gente.
A fama da “donzela do Languedoc’ ultrapassou já a
do destino turístico de eleição: já são cerca de setenta os filmes rodados
neste cenário de contos de fadas; um dos últimos foi o Robin dos Bosques, de
Kevin Kostner. Dificilmente se encontra uma obra arquitectónica desta envergadura
tão bem preservada, das torres de telhados pontiagudo, em telha vermelha ou
lousa negra, às pontes levadiças que permitem ultrapassar os fossos das
muralhas. Os seus críticos dizem que - imagine-se! - é demasiado bela,
demasiado perfeita. Mas nem sempre foi assim.
O século XVII
trouxe-lhe um golpe fatal: a Paz dos Pirenéus, que consolida de vez a anexação
pela França da zona do Roussillon, afastando para longe dali os problemas da
fronteira espanhola. Quase desabitada, a cidade vai caindo na ruína, enquanto a
parte de baixo prospera e cresce, às vezes à custa das pedras da Cité. No
início do século XIX, a bela catedral de Saint-Nazaire perde o título a favor
de Saint-Michel, na
cidade-baixa.
A velha Carcassonne vai-se transformando na
pedreira da região, e o ministério da guerra chega mesmo a autorizar a
demolição e aproveitamento das muralhas. Merimée, escritor parisiense e
inspetor dos monumentos históricos, conhece a cidade e interfere a seu favor.
Ao arquiteto Viollet-le-Duc, especialista na
restauração de monumentos medievais, é entregue o trabalho da sua reconstrução
que lhe vai levar cerca de trinta e cinco anos. Cerca de trinta por cento da
cidade vai sofrer intervenção e restauro durante esta época, mas os seus
habitantes continuam a decrescer em número, preferindo os confortos da Bastide.
Em 1955, só cerca de oitocentas pessoas habitam intramuros e hoje, parte da
centena de “resistentes” que aí se fixaram é estrangeira.
O destino de Carcassonne está traçado: será para
sempre uma obra de arte inegável, e uma das maiores atrações turísticas do
país. A reconstrução fixou-a para sempre na Idade Média, apesar da cidade ter
atravessado muitas outras épocas. E é, talvez, esta operação de “congelamento”
temporal o que lhe empresta toda a magia de cenário perfeito, que nos faz
mergulhar profundamente num passado distante.
Fonte: Alma de Viajante
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