terça-feira, 6 de janeiro de 2015

CARCARSSONNE – FRANÇA

 História e romance, eis o que a cidade representa

Existem cidades que não nos saem do pensamento. Ao visitá-las, elas aderem ao nosso eu e, delas, dificilmente conseguimos escapar. É o caso de Carcassonne. Ela está em mim desde quando a visitei. E isso, aconteceu há anos.  Não a acolhi pelo amor às suas mulheres. Tampouco, pelas suas histórias. Eu a acolhi, tão só, por sua singeleza, pelo seu modo de vida, por representar o espírito francês.
Não há castelo encantado que se preze que não tenha as suas lendasCarcassonne justifica o seu nome com a história da dama de Carcas: quando Carlos Magno cercou a cidadela desta dama sarracena, achando-se desprovida de soldados, Carcas distribuiu pelas torres e muralhas bonecos feitos de palha, armados para combate.

Carcassonne é uma das cidades mais turísticas de França


O estratagema resultou em vitória, e Carlos Magno levantou o cerco, desanimado com inimigo tão numeroso. Terá dito então a dama: “Sire, Carcas te sonne.” (“Senhor, Carcas vence-te”, em tradução livre). Daí o nome da cidade, que a lenda assegura que se tornou cristã, dando a dama origem à primeira linhagem de condes de Carcassonne.

A verdade, porém, é que os romanos já tinham uma fortificação na zona a que chamavam Carcasso, e os sarracenos, que se sucederam aos visigodos e não ficaram por muito tempo, chamavam-lhe Carchachouna. A cidade-fortaleza foi palco de combates, cercos, destruições maciças e, por fim, expulsão dos seus habitantes, que resultou na ruína do que ainda estava de pé. Lendária mesmo parece ser a sua reconstrução no século XIX, pelo arquiteto Viollet-le-Duc, o mesmo que restaurou os santuários de Notre-Dame de Paris e Sainte-Madeleine de Vézelay.
Hoje, Carcassonne é depois da Torre Eiffel e do Mont Saint-Michel, o local mais visitado de França. As suas calçadas de pedra são percorridas, não por cavaleiros medievais, mas por turistas de todas as nacionalidades, armados de vídeos e máquinas fotográficas.

O seu casario antigo abriga uma infinidade de restaurantes e hospedarias que revivem, através da decoração e da cozinha local, a época dourada da cidade, entre os séculos XI e XIII. A basílica de Saint-Nazaire, construída nessa altura, atrai visitantes de todos os credos para o seu recinto escuro, que convida ao recolhimento, iluminado por magníficos vitrais. O encontro do românico com o gótico dá-se aqui de uma forma harmoniosa, justificando o nome de “joia da fortaleza”, com que os folhetos turísticos a mimoseiam. O seu órgão é um dos mais importantes e antigos do sul de França, e de Junho a Setembro há concertos diários - “Les Estivales d'Orgue” - que enchem a cidadela de sonoridades quentes e arcaicas – hoje, quem sabe, modernas.
Pelas suas praças, onde ainda resistem alguns poços de pedra que abasteciam de água a população, distribuem-se agora esplanadas muito concorridas, com espetáculos diários de música ao vivo, bem distinta da dos trovadores Ramon de Miraval ou Peire Vidal, que aqui viveram durante algum tempo. Raymond-Roger Trencavel, visconde de Albi e último senhor da fortaleza, certamente não reconheceria a sua cidade. É certo que qualquer loja de souvenires vende conjuntos de capacete e espada, e mesmo armaduras completas.

Torres da cidade medieval de Carcassone

Também é fácil encontrar relógios de sol e saquinhos de pano com ervas cheirosas, das que perfumavam as roupas das damas da época. Mas a animação é sempre pacífica, e a magnífica iluminação nocturna não dá paz aos fantasmas, impedindo o seu turismo noturno e doloroso; durante os meses de Verão, Carcassonne é uma cidade profusamente habitada e muito viva.
Para reconstituir ainda melhor o ambiente medieval, em Agosto organizam-se torneios de cavalaria e falcoaria, com participantes vestidos a rigor, como no tempo dos cruzados. As velhas pedras da cidade não devem apreciar particularmente a lembrança, uma vez que foram estes que, em 1209, ditaram o seu fim: o visconde de Trencavel teve a ousadia de oferecer abrigo e proteção aos cátaros, dissidentes de um catolicismo que se afundava na decadência moral.
O seu pecado era defenderem a pureza dos costumes cristãos e não respeitarem a hierarquia eclesiástica.
Carcassonne foi das primeiras cidades a sofrer o embate da guerra santa declarada pelo Papa Inocêncio III. Cercada, perdeu o acesso crucial ao rio Aude e, numa manobra pouco “cavalheiresca”, o visconde de Trencavel foi feito prisioneiro ao sair do castelo para negociar.
A partir daí, começou o declínio. Simon de Monfort, o comandante da cruzada, administrou a cidade até à sua morte, mas o seu filho foi incapaz de manter o território conquistado, e entregou-o à autoridade direta do rei. Quando o filho do visconde de Trencavel tentou reaver as terras do pai, Luís VIII dá ordens para arrasar a fortaleza e exilar os seus habitantes; só sete anos mais tarde conseguem obter autorização real para se instalarem de novo na zona - mas do outro lado do rio.
O turismo anuncia Carcassonne como “la ville aux deux cités”, a cidade das duas cidadelas: a antiga fortaleza, no cimo da colina, e o novo burgo que nasceu no século XIII, aos pés da primeira, na margem esquerda do rio Aude. Desde sempre as duas zonas tiveram existências distintas, com toda a atividade comercial e social a desenrolar-se em baixo, enquanto a cidade-alta abrigava uma guarnição de mais de mil soldados.
A tendência manteve-se até hoje: só cerca de cento e vinte, dos seus quarenta e cinco mil habitantes permanentes, habitam a cidade antiga. Mas apesar da atividade evidente nas suas ruas e praças arborizadas, que substituíram as muralhas e estão agora semeadas de cafezinhos acolhedores, a atração será sempre a “cité”, marco milenar da história da região do Languedoc. Para além das comodidades e serviços turísticos de que dispõe, a Bastide Saint-Louis, como é conhecida a cidade-baixa, serve apenas para compor a magnífica vista que nos oferecem as torres altas da fortaleza - e do cimo desta sentinela de pedra, não se consegue evitar a sensação de fragilidade que vem do casario baixo e pálido da Bastide.

Passeio ao longo das muralhas de Carcassonne

Nada é regular ou simétrico nesta obra-prima da arquitectura militar, o que se explica pela longa história de reconstruções, modificações e acrescento, que já dura há séculos e ainda não acabou. Mesmo depois da expulsão dos seus habitantes, a fortaleza foi modificada e aperfeiçoada, de modo a tornar-se um eficaz posto militar avançado.
Ao mesmo tempo que se reforçou o sistema defensivo com a construção de uma segunda muralha exterior, também a austera Catedral de Saint-Nazaire foi aumentada e melhorada. O castelo do conde foi rodeado por um fosso, transformando-se numa fortaleza dentro da fortaleza. São cerca de três quilómetros de fortificação, por onde se distribuem cinquenta e duas torres para todos os gostos: há torres quadradas e redondas, de envergadura e tamanho diferentes; umas têm seteiras, outras janelas e algumas são, aparentemente, fechadas.
Toda a cidade parece estar cheia de armadilhas: cotovelos estreitos para que só passe um inimigo de cada vez, degraus gigantescos, fossos dissimulados, enfim, todo o mostruário do engenho militar que veio sendo aperfeiçoado desde os romanos, destinado a guerras de cerco, tão comuns nos tempos medievais. Só a mudança das técnicas de guerra, nomeadamente a utilização generalizada da artilharia a pólvora, nos séculos XV e XVI, a tornou definitivamente obsoleta.
Apesar de tudo, é impressionante o seu aspecto exterior de castelo, ao mesmo tempo irreal e inexpugnável. Contorná-la por entre as suas duas muralhas, espreitando pelas janelas e varandins para a paisagem verde de vinhas e campos cultivados, é um convite para uma viagem no tempo, que continua quando atravessamos a ponte levadiça.
As ruas estreitas de pedra cinzenta, sombrias no Verão e protegidas dos ventos frios no Inverno, transformam-se num labirinto, e nunca sabemos se terminam nas muralhas, na basílica ou na praça principal. Pouco importa. Os passos ecoam de longe, e a cada esquina esperamos ver aparecer alguém de cota de malha e elmo reluzente.
As carroças que conduzem os turistas em visitas guiadas reforçam a esperança, com o ruído dos cascos e o soprar dos cavalos a ressoarem nas paredes de pedra. Para continuar o recuo no tempo, é possível visitar o castelo do visconde, que dá acesso exclusivo a certas partes da muralha. E para terminar a viagem, nada melhor que uma visita ao Museu Medieval e ao da Inquisição, que nos proporcionam pormenores nem sempre agradáveis da história da cidade. Outro museu ao gosto da época é o da Tortura, que exibe sádicos e requintados instrumentos, concebidos em noites de insónia, destinados a punir sabe-se lá que crimes medievais...

Carcassonne - fosso interior

Dizem os seus apreciadores mais sinceros que a cidade não se visita de Verão: há demasiada agitação e pouca privacidade para percorrer a velha Carcassonne, e a viagem no tempo, que deve ser feita na solidão, é constantemente interrompida por grupos de turistas ruidosos. Das esplanadas sai música durante o dia inteiro e os restaurantes abarrotam de gente.
A fama da “donzela do Languedoc’ ultrapassou já a do destino turístico de eleição: já são cerca de setenta os filmes rodados neste cenário de contos de fadas; um dos últimos foi o Robin dos Bosques, de Kevin Kostner. Dificilmente se encontra uma obra arquitectónica desta envergadura tão bem preservada, das torres de telhados pontiagudo, em telha vermelha ou lousa negra, às pontes levadiças que permitem ultrapassar os fossos das muralhas. Os seus críticos dizem que - imagine-se! - é demasiado bela, demasiado perfeita. Mas nem sempre foi assim.
O século XVII trouxe-lhe um golpe fatal: a Paz dos Pirenéus, que consolida de vez a anexação pela França da zona do Roussillon, afastando para longe dali os problemas da fronteira espanhola. Quase desabitada, a cidade vai caindo na ruína, enquanto a parte de baixo prospera e cresce, às vezes à custa das pedras da Cité. No início do século XIX, a bela catedral de Saint-Nazaire perde o título a favor de Saint-Michel, na cidade-baixa.
A velha Carcassonne vai-se transformando na pedreira da região, e o ministério da guerra chega mesmo a autorizar a demolição e aproveitamento das muralhas. Merimée, escritor parisiense e inspetor dos monumentos históricos, conhece a cidade e interfere a seu favor.
Ao arquiteto Viollet-le-Duc, especialista na restauração de monumentos medievais, é entregue o trabalho da sua reconstrução que lhe vai levar cerca de trinta e cinco anos. Cerca de trinta por cento da cidade vai sofrer intervenção e restauro durante esta época, mas os seus habitantes continuam a decrescer em número, preferindo os confortos da Bastide. Em 1955, só cerca de oitocentas pessoas habitam intramuros e hoje, parte da centena de “resistentes” que aí se fixaram é estrangeira.
O destino de Carcassonne está traçado: será para sempre uma obra de arte inegável, e uma das maiores atrações turísticas do país. A reconstrução fixou-a para sempre na Idade Média, apesar da cidade ter atravessado muitas outras épocas. E é, talvez, esta operação de “congelamento” temporal o que lhe empresta toda a magia de cenário perfeito, que nos faz mergulhar profundamente num passado distante.

Vista do castelo sobre a povoação de Carcassone

Entrada na cidade medieval de Carcassone

Fonte: Alma de Viajante

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