Arilda Riani
As estratégias do nomear e do dizer, quando o que se diz não é
aquilo que se fala, mas aquilo em que se pensa, ensinam que o brasileiro não
fala apenas com a língua, mas com o que ele sabe sobre as coisas. A sua prática social discursiva não pode ser reduzida ao exame gramatical
e vocabular da expressão linguística fora de seu uso efetivo.
Os
implícitos culturais
Ao
contrário do português que é direto e cartesiano ao comunicar-se, o brasileiro
mostra enorme flexibilidade e imprecisão no uso que faz da língua. Muitas vezes
recorre à interdição linguística para explicar fatos e fenômenos que não aceita
ou não entende, dificultando sobremaneira a sua comunicação. Em outras ocasiões,
inventa construções, formula torneios linguísticos e busca nas entrelinhas um
modo de expressão dúbia, de difícil entendimento pelo seu interlocutor, mas
perfeitamente compreensível ao que interessa aos seus propósitos.Para tratar do uso efetivo da língua, a Análise Crítica do Discurso procedeu a uma nova diretriz no objeto da Lingüística deixando a de base saussuriana, voltada para o signo, e evoluiu para a textual, para examinar o uso efetivo da língua sob um prisma pragmático no texto e no discurso, com a contribuição de outras categorias analíticas como Cognição, Discurso e Sociedade. O linguista holandês van Dijk vê no discurso uma prática sócio interacional cujo sucesso decorre da relação dialética entre o individual e o social, entre um evento discursivo particular e as situações discursivas institucionais/ estruturais e sociais. Essa particularidade pode obstruir o que está por trás da mensagem, mas não impede que de uma ou de outra forma ela seja revelada. Assim o vemos na sutileza da pena de Machado de Assis (1965: 534) ao escrever “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos”. Esse dizer sutil antecipa um conteúdo sem que o emissor assuma a responsabilidade do dito e permite que a mesma expressão libere subentendidos diferentes que reforçam a possibilidade de novas leituras e novos sentidos. Esta prática cultural e ideológica compartilhada por grupos sociais atua como um auto esquema representativo dos seus interesses mais profundos e age coercitivamente, podendo definir o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, e controlar, inclusive, o que ele acredita sobre o mundo, retratando uma visão preconceituosa e que não aceita a diversidade (HENRIQUES, 2003).
A
Identidade Cultural do Brasileiro
Segundo BUARQUE (1975: 106), a marca da identidade cultural do brasileiro é a “cordialidade”, e é ledo engano supor que essa virtude possa conduzir boas maneiras e civilidade; ao contrário, é uma expressão legítima de fundo emotivo extremamente rico. Essa “cordialidade” revela uma identidade linguística que tanto pode ser encontrada na discutida questão pronominal; na tendência de omitir o nome da família, estratégia psicológica para possibilitar um convívio mais social e envolvimento emotivo com o interlocutor; na atenuação das formas imperativas, empregadas pelo brasileiro quase como um pedido de desculpas, muito diferente do categórico “schifazifavoire” do português; no horror ao ritualismo religioso, traduzido por uma linguagem irreverente, sem lhe parecer desrespeitosa, como o que se ouviu de uma devota: “Peguei o bicho (Santo Antonio), botei de cabeça pra baixo e só vou desvirar quando ele me arranjar um marido!”); na distinção semântica que faz das palavras “cão” e “cachorro”, conseqüência talvez de um tabu lingüístico surgido no ambiente familiar pelo emprego da forma “cão” para designar forças demoníacas, enquanto “cachorro” soa guiado por tonalidade emotiva. O mesmo se explica em relação aos termos “cachorra” e “cadela”, este depreciativo, insultuoso. Refugiam-se em expressões para não mostrar preconceitos ou grosseria, como “fofo” (gordo), “marrom bombom” (mulato), moreninho (negro), feliz idade! (velhice) e tantas outras que atenuam o seu falar deixando-o em paz com o interlocutor. Para traduzir essa “cordialidade” de fachada, o brasileiro inventa termos como “isto é f.!”, “que m.!”, “p.q.p!”, “nerda”, “lherda”; levados pela proximidade fônica migram nomes para interjeições (“cacilda!”, “caraca!”); escondem-se ardilosamente sob as formas de “não dizer não”, amplamente estudadas por Silveira (2004).
Epistemologia da linguística
Conclusão
Estes fatos revelam o conjunto de conhecimentos sociais e comportamentais de um povo, que os assume acolhendo uma tradição e modelos tomados à fala popular e familiar, com o objetivo de preservar a sua face. Não acontece diferente com os brasileiros, que desenvolveram habilidades discursivas sutilíssimas, talvez para “ajardinar” o estilo, como queria José de Alencar, talvez para marcar a identidade brasileira, sim senhor, como defendia Mário de Andrade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS,
Joaquim Maria Machado. Obra completa. Rio
de Janeiro: Aguilar, 1965.BANDEIRA, Manuel. (Org.) Mario de Andrade – cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: EDIOURO, 1998.
DIJK, Teum A.. van. Discurso, conhecimento e ideologia: reformulando velhas questões, In: HENRIQUES, Claudio Cezar. (Org.) Linguagem, conhecimento e aplicação. Estudos de Língua e Lingüística. Rio de Janeiro: Europa, 2003.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 15a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
LEITE, Yonne e Callou. Como falam os brasileiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
SANTOS, Leonor Werneck (Org.). Discurso, Coesão, Argumentação. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.
SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi. Implícitos culturais: ideologia e cultura em expressões linguísticas do Português brasileiro. In: BASTOS, Neusa Barbosa (ORG.). Língua Portuguesa em Calidoscópio. São Paulo: KDUC/FAPESP, 2004.
VIEIRA, Pe. Antonio. Sermões. São Paulo: Editora das Américas, 1957.
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