Crônica
de Luiz Carlos Facó
em agradecimento
ao compadre Hélbio Palmeira
Nesse lapso de tempo de luta com as ideias e palavras, quase
ensarrilhei as armas. Depus a caneta. Rasguei os papéis. Deliguei o computador,
novinho em folha, cheio de efes e erres.
Acho que era desse choque de que eu necessitava. Porque, a
partir daí, as ideias me vieram maciças, brilhantes como relâmpagos em noites
de tempestade, fortes como maçaranduba, madeira de dar em doido, ternas e
envolventes como canções de ninar.
Quando criança, o meu maior desejo era ter um trenzinho
elétrico. Igual àqueles que apareciam nos filmes americanos, manipulados por
crianças saudáveis, louríssimas, filhas, talvez, de um rico industrial, um
importante comerciante ou de um milionário excêntrico. Semelhantes aos expostos
nas vitrines do magazine Duas Américas. Lembram-se? Constituído de uma
locomotiva puxando vagões de passageiros e cargas, percorrendo metros e metros
de trilhos, soltado fumaça, apitando com estridência, atravessando cidades,
pontes, túneis, vales, montanhas, margeando plantações e pastos onde o gado
ruminava bocados de capim, dando-me a impressão de possuir a paciência de Jó.
Essa quimera jamais pude ver realizada. Meu pai, servidor público, ganhando o
mínimo indispensável para sobreviver – o tempo passa, os problemas continuam os
mesmos – não se podia dar ao luxo de presentear-me com um brinquedo tão
custoso. Contudo, num Natal que jamais esquecerei, recebi dele, vestido de
Papai Noel, com barba branca, capuz vermelho, um trenzinho de corda –
locomotiva e quatro composições – capaz de percorrer um metro e meio de
trilhos.
Para quem sonhara receber tanto e ganhara tão pouco, poderia
a muitos parecer frustrante. No entanto, para mim, aquele foi o mais belo e
instigante presente recebido em toda a minha vida. Tanto que meu coração
estremecia, rateava – parecia carro enguiçado pegando no tranco. As lágrimas
teimavam em cair dos olhos, como as águas caem de uma cachoeira volumosa, sem
que pudesse detê-las. A voz me negava tartamudear um obrigado, desaparecida
como estava naquele emaranhado de aprazíveis sentimentos. Felizmente, em
agradecimento – os gestos e atitudes não me faltaram – consegui dar um abraço
no velho Noel e um beijo em minha mãe.
Durante uns dois anos ou três, senti-me o mais próspero e
venturoso dono de ferrovia na face da terra. Sem ser um Phileas Fogg ou um
Passapartout, personagens de Júlio Verne, em a Volta do Mundo em Oitenta Dias,
naquele metro e meio de trilhos dei milhares de voltas em torno da Terra. Fui
ao Oeste americano e vi a odisseia dos índios, lutando contra os invasores de
suas terras. Estive perto dos irmãos Jassie e Frank James, facínoras que
assaltavam diligências e trens. Cheguei a Pequim e pude ver a Cidade Proibida.
No Japão, conheci os samurais. Hiroshima e Nagasáqui prostradas pela insensatez
humana. Na Índia, participei da proclamação da república. Acompanhei a
caminhada, sem violência, ideada e liderada por Gandhi. Vi Paul Gauguin
pintando seus quadros no Taiti. Nas estepes da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, conheci os gulacs. Na Europa, castigada pelos bombardeios da II
Grande Guerra, vi cidades arrasadas, enfrentando novas lutas para
reerguerem-se. No Egito, muito mais que as Pirâmides e as Esfinges, vi o
carisma do líder nacionalista, Abdel Gamal Nasser, lutando pela independência do mundo árabe. Foram
tantas aventuras quantas pude naqueles momentos imaginar.
Périplos maravilhosos, que me deixam saudades.
Agora, vivendo os juros que a vida graciosamente me concede,
sem muita fé no futuro, experimento, novamente, aquela mesma sensação do dia em
que recebi aquele trenzinho. E a
possibilidade de poder continuar a viajem interrompida. Não naquele trenzinho,
que aposentei antes do início da minha adolescência. Mas pelas ondas da
internet a partir do computador incrementadíssimo, cheio de programas
sofisticados, que ainda não sei utilizar, que vocês me deram, você, meu
compadre Hélbio Palmeira e Meivinha. Capazes de levar-me a lugares
inimagináveis. Fazendo-me ultrapassar fronteiras terrestres, lançando-me às
portas das galáxias, dos buracos negros, dos astros, estrelas e satélites. Dos
sóis de primeira à última grandeza.
Essas ondas restituem-me a curiosidade e a imaginação do desbravador
aventureiro que fui, julgadas perdidas.
Debito a vocês, queridos amigos, que vivem em meu coração
como meu pai e minha mãe, que me presentearam com aquele trenzinho encantado,
transformado pela misteriosa e pródiga varinha de condão que vocês empunham,
neste computador – de não sei quantos megas – em que registro este
agradecimento.

Nenhum comentário:
Postar um comentário