E Elohim criou Adão, 1795. William Blake.
Publicado em artes e ideias por Piero de Sá
Fonte: http://obviousmag.org/
Se o homem é criado perfeitamente, então, como ele pode ser mau e causar
danos aos outros? E, quando ele age de
maneira errada, ele só está agindo de acordo com a sua natureza, ou, ao
contrário, a está corrompendo?
Estranhamente, o Conde de Lemongrab, da Hora da Aventura, e o personagem Iago
da ópera Otello de Giuseppe Verdi têm a mesma resposta para essa pergunta.
E qual é a sua?
E qual é a sua?
Hora da
Aventura, (ou Hora de Aventuras, se você almoçou bacalhau ou
funge ao invés de feijoada) é um desenho animado exibido pelo canal Cartoon
Network. Por ter uma trama surrealista e geralmente nonsense, mais ou
menos como Bob Esponja Calça Quadrada, é difícil explicar do que
ele trata exatamente, mas pode-se dizer que Hora da Aventura narra a história
de um garoto humano chamado Finn e seu irmão/cachorro mágico Jake e que,
juntos, eles participam de uma série de aventuras, protegendo o Reino Doce,
onde tudo e todos são feitos de açúcar, de bruxos malvados.
Pois é. Não
é nada de excepcional. Por conta disso, nerds com barba no pescoço e blogueiros
de final de semana que assistem esse desenho tomam bastante cuidado em realizar
análises prolixas e supostamente profundas de seus episódios para que, quando
eles sejam surpreendidos assistindo desenhos animados, tenham algo com o que se
defender. Portanto, vamos lá. É hora da aventura do malabarismo filosófico!
Além de
Finn e Jake, Hora da Aventura tem outros personagens importantes. O Reino Doce
é governado pela Princesa Jujuba. Nos primeiros episódios, ela parece ser uma
princesa justa e bondosa, mas, conforme a série vai progredindo, percebe-se que
ela é uma déspota louca por controle, que espiona todos os habitantes do seu
reino (que, aliás, ela sintetizou em laboratórios), realiza prisões sumárias e
sem julgamentos e tem um senso de moral utilitarista que atropela qualquer
apelo ao sentimentalismo. Além disso, ela é uma cientista cujas ambições de
descobertas não são freadas por questionamentos éticos. E, de fato, num de seus
experimentos fracassados, ao tentar criar pessoas doces como os habitantes do
Reino Doce, ela, sem querer querendo, criou o Conde de Lemongrab. Mary Shelley
mandou um beijo.
O Conde é,
literalmente, um limão siciliano (ou um limão, se você tomou vinho verde ou
cachipembe ao invés de caipirinha) e, como tal, tem uma personalidade azeda,
irritante e cruel com os demais. Ele não entende e não respeita o jeito doce de
ser e é incapaz de conceber o mundo como um local agradável e açucarado. Em
função disso, ele é banido do Reino Doce e tem de governar seu próprio reino, o
Condado de Lemongrab. Em pouco tempo, a maneira atroz dele governar deixa
condado parecido com Leningrado sob o cerco nazista e todos seus habitantes
morrem.
Após esse
desastre, o Conde retorna ao Reino Doce e pede à Princesa Jujuba que lhe
forneça mais colonos. Irritada, ela diz que não consegue entender porque ele
arruína tudo e não se dá bem com ninguém. Nesse momento, Lemongrab surta, se
joga de uma torre, arranca suas roupas e começa gritar que: “Ninguém me
entende… eu sou sozinho e você me fez desse maneira. Você me fez! Você me fez!
Você… é… meu Deus. Você é meu Deus!” Aqui, é importante parar e mencionar
que, na versão original em inglês, ele diz “You’re my glob!”. “Glob” –
assim como “bleu”, ao invés de “Dieu”, em francês – é uma maneira de se evitar
dizer “God”, para que a linguagem do desenho fique mais infantil. Isso fornece
uma ambiguidade poética ao discurso de Lemongrab e uma negação plausível para
que se possa dizer que não se estava tentando discutir o papel do Deus criador
num desenho animado feito para crianças.
Ao longo
desse episódio, a questão fica ainda ainda mais complicada. O Conde de
Lemongrab diz que, olhando no coração-limão que ele recebeu de sua criadora,
ele sente que as coisas que ele faz não podem ser erradas. Ele também passa a
questionar se o modo limão de ser não poderia, quem sabe, ser melhor que o modo
doce de ser. A Princesa Jujuba diz que pode ajudar Lemongrab a parar com esse
comportamento e, já sem paciência, o Conde retruca que: “Foi você quem me
fez assim! Como você poderia me ajudar?“.
E, se de
fato, o ser humano é criado perfeito, como é possível, então, que os instintos
humanos que sentimos, como impulsos de reprodução e de violência, que têm
origem em nossa condição humana, possam nos enganar ou possam estar errados? Se
o ser humano é criado de maneira perfeita, então seus desejos sombrios e
malvados não são, por ende, perfeitos? Pois seria um atentado à lógica assumir
que, do perfeito, se criaria o imperfeito e vice-versa. E a questão do papel de
Deus no aperfeiçoamento do homem também é problematizada no episódio. Se Deus
criou o homem de maneira imperfeita, como Ele mesmo seria capaz de consertá-lo?
Ou Ele é impotente e não consegue criar um homem perfeito, ou não é
benevolente, pois cria um homem, mesmo sabendo que ele sofrerá com a sua
capacidade de ser mal. Diante disso, como Lemongrab diz, o homem ficaria melhor
sem Deus, pois ele não pode ou não quer consertar a humanidade e, agora, o ser
humano deve entender que ele estará sozinho e sem respostas no mundo.
Esse
episódio de Hora da Aventura não acaba em tons tão sombrios, porém. A Princesa
Jujuba decide clonar o Conde e, dando-lhe um igual, ele fica satisfeito em
morar em Lemongrab. Bem, alguns episódios depois, as coisas dão errado de novo
e, depois que o próprio Conde tenta criar pessoas-limão para o seu reino, a
princesa realiza uma lobotomia nele. Mas isso ficará para outro post.
Depois de
ver esse episódio umas três vezes, e temendo que meus colegas intelectuais me
retirassem o direito de usar boina e cachimbo, achei que compensaria essa gafe
de assistir um desenho animado indo à ópera. Para minha redenção, dá-se o fato
que, sob John Neschling, o Theatro Municipal de São Paulo está exibindo Otello de
Giuseppe Verdi. Todo mundo sabe que Otello vale o dobro de
pontos intelectuais, porque, tipo, é Giuseppe Verdi e Shakespeare juntos.
Bem, logo
no começo do segundo ato, quando o tenor Gregory Kunde começou a cantar a aria
“Credo in un Dio crudel” (Creio em um Deus cruel), não consegui tirar os
gritos de Lemongrab da cabeça:
Creio em um
Deus cruel
"Vá
embora! A tua meta eu já vejo
Te
impulsiona o teu demônio
E o teu
demônio sou eu,
E me
arrasta o meu,
No qual eu
creio
Inexorável
Deus:
Creio em um
Deus cruel
Que me
criou semelhante a si
E que, na
ira, eu nomeio.
Da vileza
de um gérmen
Ou de um
átomo vil eu nasci.
Sou
perverso porque sou homem
E sinto a
lama originária em mim.
Sim! Esta é
a minha fé!
Creio com
firme coração,
Assim com a
crê a viuvazinha na igreja,
Que o mal
que eu penso
Que de mim
procede
Pelo meu
destino eu cumpro.
Creio que o
justo é um ator que tira sarro
Com seu rosto
e seu coração;
Que tudo
nele é mentiroso,
Lágrima,
beijo, olhar,
Sacrifício
e honra.
E creio
[que] o homem [seja um] jogo de iníqua sorte
Do gérmen
ao berço,
Ao verme e
à sepultura.
Vem, depois
de toda essa zombaria, a Morte.
E depois?…
E depois?
A Morte é o
Nada.
Histórias
de velhinhas é o Céu."
Aparentemente,
somos isso mesmo. Por inclinação natural ou vocação adquirida, que seja, somos
maus…
E, bem, de
volta em casa, trancado no quarto e com fones de ouvido, coloquei mais alguns
episódios de Hora da Aventura. Nele, Marceline a Rainha-Vampira – uma
personagem que afirma que, após ter vivido mais de mil anos, qualquer código de
moralidade perdeu sentido para ela – conversa sobre o que é certo e errado com
a Princesa Caroço. A Princesa lhe pergunta se ter feito uma série de ações
ruins a torna numa pessoa má. Marceline responde? “Hm… provavelmente não. Eu
não acho que existam pessoas ruins. Eu acho que pessoas boas fazem coisas ruins
às vezes e que, ah, isso é ruim.” Bem, então não precisamos ficar desconsolados.
© obvious: http://obviousmag.org/et_in_arcadia/2015/03/mau-por-natureza-e-voce-me-fez-assim.html#ixzz3VaejVW5o
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