Publicado em literatura por Gilmar Luís Silva Júnior,
em obviusmagazine
A poetisa Cecília Meireles é um caso singular no Modernismo brasileiro.
Não esteve na ponta de lança destrutiva da estética modernista; cultivou formas
arcaicas de poesia e as dotou de seu lirismo passadiço com maestria. Um tema
inusitado - a morte de uma borboleta - traz à tona reflexões bem mais
profundas. Venha conhecer!
O crítico norte-americano Ezra Pound possuía um lema, o qual
dizia: "repetir para aprender e criar para renovar". Dizendo respeito
ao primeiro axioma de sua citação, Pound criara o termo "make it
new", isto é, "fazê-lo novo". O poeta piauiense Mário Faustino
explica que tal termo nada mais seria que "a apropriação seletiva de
modelos, (...) capaz de reatualizar as formas do passado em função das
exigências do presente". Para exemplificar essa rede conceitual, peguemos
um poema da poetisa Cecília Meireles, denominado Elegia a uma pequena
borboleta:
Como chegavas do
casulo,/ — inacabada seda viva —/ tuas antenas — fios soltos/ da trama de que
eras tecida,/ e teus olhos, dois grãos da noite/ de onde o teu mistério surgia,
/ /// como caíste sobre o mundo/ inábil, na manhã tão clara,/ sem mãe, sem
guia, sem conselho,/ e rolavas por uma escada/ como papel, penugem, poeira,/
com mais sonho e silêncio que asas,/ /// minha mão tosca te agarrou/ com uma
dura, inocente culpa,/ e é cinza de lua teu corpo,/ meus dedos, sua sepultura./
Já desfeita e ainda palpitante,/ expiras sem noção nenhuma./ /// Ó bordado do
véu do dia,/ transparente anêmona aérea!/ não leves meu rosto contigo:/ leva o
pranto que te celebra,/ no olho precário em que te acabas,/ meu remorso
ajoelhado leva!/ /// Choro a tua forma violada,/ miraculosa, alva, divina,/
criatura de pólen, de aragem,/ diáfana pétala da vida!/ Choro ter pesado em teu
corpo/ que no estame não pesaria./ /// Choro esta humana insuficiência:/ — a
confusão dos nossos olhos/ — o selvagem peso do gesto,/ — cegueira — ignorância
— remotos/ instintos súbitos — violências/ que o sonho e a graça prostram
mortos/ /// Pudesse a etéreos paraísos/ ascender teu leve fantasma,/ e meu
coração penitente/ ser a rosa desabrochada/ para servir-te mel e aroma,/ por
toda a eternidade escrava!/ /// E as lágrimas que por ti choro/ fossem o
orvalho desses campos,/ — os espelhos que refletissem/ — voo e silêncio — os
teus encantos,/ com a ternura humilde e o remorso/ dos meus desacertos humanos!/
O título traz em si a
fortuna clássica das formas fixas. Cecília batiza seus versos como uma elegia,
do grego ἐλεγεία, que era, na Grécia antiga, um poema composto de um dístico
(estrofe de 2 versos), dedicado sobremaneira a temas fúnebres. A forma se
tornou erótica e mitológica na Roma antiga. No século XVI, a elegia passou a
ser cultivada nas línguas modernas. No nosso idioma, Camões foi o melhor
versejador elegíaco. Em alemão, Goethe, no século XVIII, dotou-a de caráter
pagão e erótico.
A primeira estrofe de
Cecília menciona a borboleta recém-formada, exibindo uma beleza inédita,
comparada a elementos da natureza. Essa é uma virtude evidenciada na tradição
romântica, que evoca imagens de uma natureza pujante em consonância com o
eu-lírico do poeta. O crítico inglês T. S. Eliot afirma que a busca nesse
conjunto de valores do passado faz o trabalho de um bom poeta.
As segunda e terceira
estrofe passam a um foco narrativo. A borboleta, ainda que bela, não possui a
malícia e cai, por inépcia de voos cuidadosos, na mão do poeta, o qual, sem
querer, mata-a.
A quarta estrofe
caracteriza a escolha da forma elegíaca. O poeta pede à borboleta moribunda que
leve o pranto de remorso e não a brutalidade ou o rosto do algoz. Há na quinta
estrofe uma nova enumeração de predicados imiscuídos da pujança natural, a qual
tenciona imortalizar uma beleza de tão célere duração. O poeta almeja sugerir
um ideal de beleza. Esse movimento de Cecília a avizinha do ideal da estética
simbolista, que não define concretamente, mas antes cogita a liberdade de
sugestão ao leitor.
As três últimas
estrofes soam como um canto plangente de reparo ao animal indefeso aniquilado.
Cecília detinha um respeito às criaturas da Terra, pois matizou seus poemas com
uma forte influência da filosofia oriental, em especial o xintoísmo, religião
oficial do Japão. Para os xintoístas, há o culto perene aos ancestrais e às
forças da natureza. Não existe, como no Ocidente, a supremacia do homem sobre
os outros seres. Eles supõem a existência de um "kami", o qual seria
uma espécie de espírito, algo anímico, que preenche tudo no mundo. Por
conseguinte, essa "alma", entendida como algo divino, proveria tudo
de divindade e, logo, digno de respeito.
Cecília retoma a
elegia nos ditames clássicos, como um artefato poético vinculado ao fúnebre.
Apropria-se com maestria de mais estéticas - Romantismo e Simbolismo - e as une
ao pensamento oriental. Tudo se enforma com a delicadeza que o tema requer.
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