quarta-feira, 27 de maio de 2015

A RETOMADA DO CLÁSSICO POR CECÍLIA MEIRELES

 Publicado em literatura por Gilmar Luís Silva Júnior,
em obviusmagazine

 A poetisa Cecília Meireles é um caso singular no Modernismo brasileiro. Não esteve na ponta de lança destrutiva da estética modernista; cultivou formas arcaicas de poesia e as dotou de seu lirismo passadiço com maestria. Um tema inusitado - a morte de uma borboleta - traz à tona reflexões bem mais profundas. Venha conhecer!


 O crítico norte-americano Ezra Pound possuía um lema, o qual dizia: "repetir para aprender e criar para renovar". Dizendo respeito ao primeiro axioma de sua citação, Pound criara o termo "make it new", isto é, "fazê-lo novo". O poeta piauiense Mário Faustino explica que tal termo nada mais seria que "a apropriação seletiva de modelos, (...) capaz de reatualizar as formas do passado em função das exigências do presente". Para exemplificar essa rede conceitual, peguemos um poema da poetisa Cecília Meireles, denominado Elegia a uma pequena borboleta:
Como chegavas do casulo,/ — inacabada seda viva —/ tuas antenas — fios soltos/ da trama de que eras tecida,/ e teus olhos, dois grãos da noite/ de onde o teu mistério surgia, / /// como caíste sobre o mundo/ inábil, na manhã tão clara,/ sem mãe, sem guia, sem conselho,/ e rolavas por uma escada/ como papel, penugem, poeira,/ com mais sonho e silêncio que asas,/ /// minha mão tosca te agarrou/ com uma dura, inocente culpa,/ e é cinza de lua teu corpo,/ meus dedos, sua sepultura./ Já desfeita e ainda palpitante,/ expiras sem noção nenhuma./ /// Ó bordado do véu do dia,/ transparente anêmona aérea!/ não leves meu rosto contigo:/ leva o pranto que te celebra,/ no olho precário em que te acabas,/ meu remorso ajoelhado leva!/ /// Choro a tua forma violada,/ miraculosa, alva, divina,/ criatura de pólen, de aragem,/ diáfana pétala da vida!/ Choro ter pesado em teu corpo/ que no estame não pesaria./ /// Choro esta humana insuficiência:/ — a confusão dos nossos olhos/ — o selvagem peso do gesto,/ — cegueira — ignorância — remotos/ instintos súbitos — violências/ que o sonho e a graça prostram mortos/ /// Pudesse a etéreos paraísos/ ascender teu leve fantasma,/ e meu coração penitente/ ser a rosa desabrochada/ para servir-te mel e aroma,/ por toda a eternidade escrava!/ /// E as lágrimas que por ti choro/ fossem o orvalho desses campos,/ — os espelhos que refletissem/ — voo e silêncio — os teus encantos,/ com a ternura humilde e o remorso/ dos meus desacertos humanos!/ 



O título traz em si a fortuna clássica das formas fixas. Cecília batiza seus versos como uma elegia, do grego ἐλεγεία, que era, na Grécia antiga, um poema composto de um dístico (estrofe de 2 versos), dedicado sobremaneira a temas fúnebres. A forma se tornou erótica e mitológica na Roma antiga. No século XVI, a elegia passou a ser cultivada nas línguas modernas. No nosso idioma, Camões foi o melhor versejador elegíaco. Em alemão, Goethe, no século XVIII, dotou-a de caráter pagão e erótico.
A primeira estrofe de Cecília menciona a borboleta recém-formada, exibindo uma beleza inédita, comparada a elementos da natureza. Essa é uma virtude evidenciada na tradição romântica, que evoca imagens de uma natureza pujante em consonância com o eu-lírico do poeta. O crítico inglês T. S. Eliot afirma que a busca nesse conjunto de valores do passado faz o trabalho de um bom poeta.
As segunda e terceira estrofe passam a um foco narrativo. A borboleta, ainda que bela, não possui a malícia e cai, por inépcia de voos cuidadosos, na mão do poeta, o qual, sem querer, mata-a.
A quarta estrofe caracteriza a escolha da forma elegíaca. O poeta pede à borboleta moribunda que leve o pranto de remorso e não a brutalidade ou o rosto do algoz. Há na quinta estrofe uma nova enumeração de predicados imiscuídos da pujança natural, a qual tenciona imortalizar uma beleza de tão célere duração. O poeta almeja sugerir um ideal de beleza. Esse movimento de Cecília a avizinha do ideal da estética simbolista, que não define concretamente, mas antes cogita a liberdade de sugestão ao leitor.
As três últimas estrofes soam como um canto plangente de reparo ao animal indefeso aniquilado. Cecília detinha um respeito às criaturas da Terra, pois matizou seus poemas com uma forte influência da filosofia oriental, em especial o xintoísmo, religião oficial do Japão. Para os xintoístas, há o culto perene aos ancestrais e às forças da natureza. Não existe, como no Ocidente, a supremacia do homem sobre os outros seres. Eles supõem a existência de um "kami", o qual seria uma espécie de espírito, algo anímico, que preenche tudo no mundo. Por conseguinte, essa "alma", entendida como algo divino, proveria tudo de divindade e, logo, digno de respeito.
Cecília retoma a elegia nos ditames clássicos, como um artefato poético vinculado ao fúnebre. Apropria-se com maestria de mais estéticas - Romantismo e Simbolismo - e as une ao pensamento oriental. Tudo se enforma com a delicadeza que o tema requer.


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