No Rio de Janeiro, revela a história de sua família e sua oposição à
ditadura
ANTONIO JIMÉNEZ BARCA Rio de Janeiro, também no Facebook
.871 Chico Buarque, "um sujeito magro e tímido, simples e
sorridente". / LUIZ MAXIMIANO
Há apenas
uma coisa mais difícil de encontrar do que alguém que fale mal de Chico
Buarque no Brasil: uma mulher que não seja apaixonada por ele. Olhos
fascinantes de uma cor estranha entre verde, azul e cinza são uma lenda
nacional. Suas canções, por si só, já fazem parte da história, da herança
e da identidade diária de um povo. Por isso, é um pouco intimidante se
aproximar do edifício de um bairro nobre do Rio de Janeiro, onde o cantor
mora, e subir no elevador imaginando o que te espera atrás da porta. O que se
encontra é um sujeito magro e tímido, simples e sorridente, que esperava
sentado sozinho em uma cadeira e assim que vê o recém-chegado o convida para um
café que acabou de fazer. A sala de estar de Chico, aberta em três paredes de
vidro com vista para várias praias do Rio, goza de uma paisagem deslumbrante
nesta bela tarde ensolarada e iluminada de fim de verão. Ao fundo, em um canto,
há um violão e um piano, ao lado de uma enorme foto na qual Chico aparece ao
lado de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, dois dos lendários criadores da
bossa nova.
Sobre uma
mesa repousa o novo romance do artista, O Irmão Alemão (Companhia
das Letras). Nele, Chico (1944) narra seu choque ao saber, já adulto e de forma
inesperada, que seu pai, o famoso historiador Sérgio Buarque de Hollanda, teve
um filho na Alemanha, em 1930, quando era correspondente em Berlim para um
jornal brasileiro. Nem Chico sabia até então que tinha um irmão na Alemanha,
nem esse irmão alemão jamais soube que era parente de um dos cantores mais
famosos do Brasil já que morreu, em 1981, ignorando quase tudo sobre seu pai
biológico. O escritor disfarça um pouco os fatos, mas nas páginas do romance
desfila a São Paulo dos anos sessenta e setenta, menos gigante e desumana do
que a atual, e sua própria juventude um pouco desregrada. Também emerge a
ditadura sinistra, à qual Chico se opôs desde o início e que o levou a buscar o
exílio, em 1969. Mas, acima de tudo, revela a casa da família, repleta de cima
a baixo com livros de seu progenitor. Era um pai amável, mas distante, carinhoso,
mas distraído, e um pouco ausente, sempre imerso em leituras intermináveis e
envolto em uma nuvem de fumaça de um cigarro continuamente aceso. No romance, o
protagonista, um sósia do próprio Chico, enquanto folheia um dos livros da
imensa biblioteca do pai, nota um envelope perdido entre as páginas que guarda
uma velha carta em alemão, que lhe dá pistas sobre aquele irmão que nunca
conheceu. Na verdade, a descoberta não foi tão literária.
Pergunta. Quando
soube que tinha um irmão?
Resposta. Soube
exatamente em 1967, quando tinha 23 anos. Lembro-me muito bem, inclusive há uma
foto desse dia. Vinicius de Moraes, Tom Jobim e eu fomos visitar o poeta Manuel
Bandeira, que já estava muito velhinho, em sua casa no Rio. E, então, falando
disso e daquilo, Bandeira perguntou por meu pai, de quem era muito amigo:
"Como o Sérgio está? Ah, quanto tempo não o vejo, vivemos tantas coisas
juntos... Foi para a Alemanha, teve aquele filho...”. E aí soltou isso.
P. O que
você fez?
R. Então
lhe disse: "Mas que filho?". E aí o Vinicius respondeu: "Mas
você não sabia disso, do filho?". E eu: "Não". Eu não sabia
nada. Era um segredo de família. Depois daquele dia, falei com meus irmãos e
com meu pai. Falei com o meu pai, sim, mas sempre havia uma barreira na hora de
perguntar a ele. Escrevendo este novo livro me questionei por que não perguntei
mais. Mas havia um receio, um impedimento. Não é que meu pai tenha me proibido
de perguntar sobre a questão do filho, mas me sentia um pouco desconfortável
sobre o assunto. Em relação à minha mãe e ao meu pai.
O cantor e
escritor Chico Buarque. / LUIZ
MAXIMIANO
P. E
isso se tornou uma obsessão ao longo dos anos? Porque você continuou
investigando, principalmente após a morte de seu pai, em 1982. Até mesmo a
editora que iria publicar o livro, a Companhia das Letras, contratou dois
detetives para ajudá-lo na investigação.
R. Não,
não, não eram detetives [risos]. Eram historiadores. Um deles era um brasileiro
que, por acaso, estava na Alemanha quando comecei a escrever o livro, há três
anos. É verdade que foi contratado pela editora. Ele conhecia um documentalista
alemão especializado em imigração alemã no estado de Santa Catarina. Eles
descobriram que meu irmão, na verdade, se chamava Sérgio Günther e havia sido
adotado por uma família quando pequeno. A verdade é que, quando comecei a
escrever o livro, tinha muito pouca informação. Mas nem precisava. Nem sequer
pretendia encontrá-lo. A história não ia por aí. Mas aconteceu que, enquanto
escrevia, um dos meus irmãos, que vive no apartamento da minha mãe, que morreu
há cinco anos, encontrou em uma gaveta alguns documentos que tinham dados para
puxar o fio. Eu tinha 50 páginas do livro, que deixei como estavam. Mas a
realidade se intrometeu na redação para sempre.
P. A
história que o senhor narra na novela é boa, mas a realidade na qual se apoia
também.
R. Sim,
deveria escrever outro livro, porque, no final, o romance acaba competindo com
a história real, que é muito impressionante.
É verdade.
Através desses documentos, Chico tomou conhecimento de duas coisas: que seu pai
havia solicitado às autoridades alemãs que enviassem seu filho fornecendo a
documentação necessária ou, pelo menos, conseguir que ele recebesse uma pensão
que prometia enviar. A segunda é que a mãe biológica tinha decidido, em meio à convulsão
enfrentada pela Alemanha da época, entregar o menino ao Estado para que fosse
adotado. Uma carta enviada a seu pai, em 1934, pela Secretaria da Infância e
Juventude de Berlim (e que terminava com um rigoroso "Heil Hitler!")
pedia a Sérgio Buarque de Hollanda que, para que seu filho fosse adotado pela
família alemã Günther, que estava interessada na criança, deveria encaminhar o
mais rapidamente possível certificados que comprovassem a religião católica do
pai. Chico, ao ler a carta, imaginou, com assombro e espanto, que as
autoridades alemãs exigiam isso para que ficasse evidente que o pequeno Sérgio
não tinha sangue judeu nas veias. Caso contrário, em vez de uma família
qualquer, ele poderia ter sido transferido para um campo de concentração. Os
historiadores finalmente conseguiram, em 2013, identificar o irmão, Sérgio
Günther, que morreu em 1981, e localizar sua ex-esposa, filha e neta. Poucos
meses depois, Chico viajava a Berlim para conhecer a outra parte de sua família
e saber mais sobre seu meio-irmão.
P. E
soube que seu irmão tinha sido um cantor...
R. Sim, ficou bem
conhecido na Alemanha Oriental como cantor e apresentador de televisão. Quando
soube que tinha sido cantor, senti uma emoção forte. E sabe, quando ouvi um de
seus álbuns percebi que tinha a voz grave do meu pai. Porque meu pai gostava
muito de cantar. E soava igual.
P. Tinham
mais coisas em comum?
R. Ambos
morreram de câncer de pulmão. Meu pai fumava muito. Quando conheci a família do
meu irmão, sua viúva (uma de suas viúvas, porque ele se casou mais de uma vez)
me disse que Sérgio Günther arrancava o filtro dos cigarros que fumava.
Exatamente como meu pai. Coisas assim que arrepiam. Todo mundo lá me disse que
minha música A Banda havia sido traduzida ao alemão e era bem
conhecida na Alemanha Oriental, com uma letra muito diferente e um pouco
absurda, na verdade. Portanto, não é estranho que meu irmão tenha realmente me
ouvido cantar. É uma maneira de ter me conhecido um pouco, certo?
P. Alguma
vez teve curiosidade de saber quem era seu pai biológico?
R. Sua
viúva me disse que, em um determinado momento, sim, que perguntou na Embaixada
brasileira, mas na época a Alemanha Oriental era um país muito fechado, com
poucas possibilidades de conseguir informação.
P. No
livro, o protagonista, parecido com o senhor, rouba carros para se divertir. O
senhor fazia a mesma coisa?
R. Sim.
Ia com um grupo de adolescentes do bairro, eram os tempos de James Dean, rock
and roll, de uma juventude um pouco rebelde. Por isso que nosso esporte era
roubar carros, circular com eles pela cidade e depois deixá-los no fim do
mundo. Fui para a cadeia por isso uma vez. A polícia me deu uma surra. Bom, mas
isso já havia contado. Eu mesmo disse antes que descobrissem. Tive sorte porque
no dia que me prenderam meus pais não estavam em casa, estavam viajando, e foi
minha irmã que me buscou. Eu então era bastante..., enfim, dei muito trabalho
para minha família.
P. Ao mesmo
tempo, era muito bom leitor, certo?
R. Sim,
é verdade. Foi também uma maneira de me aproximar de meu pai, que passou a vida
entre livros. Eu diria que, antes de ser músico, queria ser escritor. Até que a
música apareceu na minha vida e embarquei nela. Mas não abandonei a ideia de me
dedicar à literatura. Nos anos setenta, publiquei meu primeiro romance, nos
oitenta, o segundo. Desde então alterno as duas coisas. Quando faço uma, não
faço a outra, porque me consomem muito. Quando estou escrevendo nem sequer ouço
música.
P. Mas
são atividades assim tão diferentes?
R. Para
mim, sim. Muito. E ainda assim minha escrita é muito influenciada por minha
música. Talvez algo se perca nas traduções, mas meus textos tentam carregar
algum ritmo musical. Além disso, tenho que alternar as duas coisas porque, pelo
menos no Brasil, é muito difícil para um escritor viver apenas de literatura.
Os escritores trabalham como funcionários públicos, professores, jornalistas...
E tudo isso está tão longe da literatura quanto da música. O fato de ser
jornalista, por exemplo, não lhe dá a habilidade de escrever literatura,
acredito.
P. Comenta-se
que cada vez escreve mais e compõe menos.
R. Componho
menos do que aos 20. É normal. A música popular é mais uma arte da juventude,
com o tempo você vai perdendo, não sei, não o interesse, mas ela já não flui
com a abundância daqueles primeiros anos. Tenho que me esforçar mais, procurar
mais, é mais difícil. No começo você tem um milhão de ideias, tudo em torno
serve para fazer uma canção. Depois vai ficando mais insípido, menos
inspirador.
P. Ainda
acredita que o melhor de um show é quando acaba?
R. [Risos]
Eu realmente não gosto muito de fazer shows não, mas tenho de fazer. Quando
lanço um novo disco, me dá vontade de sair por aí e cantar em público. Além
disso, com isso depois posso passar dois anos escrevendo. Caso contrário, iria
à falência.
P. Por
que a música popular brasileira é tão conhecida e a literatura não?
R. Pode
ser porque seja pior, mas acho que não. É verdade, por exemplo, que a Argentina
é um povo mais literário do que o brasileiro. E os escritores brasileiros
também jogam com uma desvantagem, porque o português é mais desconhecido. E a
riqueza musical brasileira é facilmente exportável, não precisa de tradução.
P. Por
outro lado, por que a música brasileira é tão aceita, tão apreciada?
R. Porque,
principalmente depois da bossa nova, tem a influência negra, é filha do samba,
mas com um toque de jazz, um toque harmônico. E também tem influência dos
grandes compositores da música clássica. Veja: Tom Jobim, nosso grande mestre,
era um conhecedor profundo de Chopin e Debussy, dos impressionistas, entre
muitos outros. E tudo isso está em nossa música, misturado, junto com os
boleros cubanos e os ritmos mexicanos. O Brasil não exclui, assimila. O
resultado foi complexo, rico e único.
P. Como
era esse mundo? Como era conviver com Jobim, Vinicius?
R. Ah!
Eles... eram acima de tudo grandes amigos. Olhe aquela foto, estou com os dois.
Eu realmente comecei a me emocionar de verdade com a música, a decidir fazer
canções a sério depois da canção Chega de Saudade, composta por Tom
Jobim e Vinicius e interpretada por João Gilberto. Eu os tinha em um altar.
Já conhecia Vinicius porque era amigo do meu pai, mas, para mim, era como falar
com um monumento. Por isso, a primeira vez que vim ao Rio para conversar com
Tom Jobim, imagine, era um sonho. Com o tempo se tornaram meus amigos, meus
parceiros, fiz muitas canções com eles, fui aceito nesse seleto grupo da música
popular brasileira.
P. Foi
Tom Jobim que disse que o Brasil não era um país para amadores, correto?
R. Sim,
e assino embaixo. É um país único, fruto da colonização portuguesa, com
emigrantes de todo o mundo, italianos, alemães, árabes, japoneses, com a marca
dos escravos trazidos à força... E com origens indígenas antes disso tudo. Tudo
isso está presente agora. Em São Paulo, sem ir muito longe, você pode procurar
nomes indígenas em muitas ruas. Essas circunstâncias criam um país único.
P. O
senhor sempre teve uma posição política clara e explícita. Se opôs à ditadura e
apoiou Lula e Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores.
R. Sempre
me perguntam quando há eleições. Eu tomo partido e não tenho qualquer problema
em declarar isso. Sempre apoiei o PT, agora a Dilma Rousseff e antes o Lula.
Apesar de não ser membro do partido, de ter minhas desavenças e de votar em
outros candidatos e outros partidos em eleições locais. Mas sempre soube que o
problema deste país é a miséria, a desigualdade. O PT não resolveu tudo, mas
conseguiu atenuar. Isso é inegável. O PT tem melhorado as condições de vida da
população mais pobre.
P. E como
o senhor vê a situação atual?
R. Muito
confusa, não há nenhuma maneira de saber o que vai acontecer nos próximos anos.
A crise econômica é forte. É preciso tomar certas medidas impopulares. Ao mesmo
tempo, a oposição é muito dura. E depois há uma onda de manifestações nas
ruas que, na minha opinião, não têm um objetivo concreto ou claro. Entre
aqueles que saem às ruas há de tudo, incluindo loucos pedindo um golpe militar.
Outros querem acabar com o Partido dos Trabalhadores, querem enfraquecer o
Governo para que, em 2018, o PT chegue desgastado nas eleições. O alvo não é a
Dilma, mas o Lula; têm medo que Lula volte a se candidatar.
P. E,
para terminar: como se vive sabendo que é o homem mais desejado do país?
R. Isso já
faz muito tempo.
P. E
continuam dizendo.
R. Não sei
nada sobre isso. Sou tímido, um cidadão sério, um homem de família. Inventam
histórias, criam lendas que não têm muito a ver com a realidade. Não sou o
sedutor que comentam.
A
entrevista termina e o cantor tenta chamar um táxi para o jornalista através de
um aplicativo do celular. Mas não consegue. "Minha neta sabe, mas eu não
aprendo", explica. Observa o bonito entardecer e diz: "Eu o
acompanho." Coloca shorts, um boné que esconde o rosto e caminha, junto ao
jornalista, rua abaixo pelo Rio de Janeiro, falando dos pais, dos livros, das
famílias e da música.
Rio de Janeiro,
1944. Ele é filho do conhecido historiador Sérgio Buarque de Hollanda e da
pintora e pianista Maria Amélia Cesário Alvim. Começou a estudar arquitetura,
mas abandonou o curso depois de dois anos, quando sua carreira como compositor
e intérprete começou a deslanchar. Em 1966, conseguiu seu primeiro grande
sucesso com a canção A Banda. Desde então, não parou de compor
obras-primas como Apesar de Você, Construção, O Que Será (À
Flor da Pele) e Cálice. É considerado um dos grandes nomes da música popular
brasileira, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto, entre outros. Em paralelo,
desenvolveu sua carreira como escritor e dramaturgo. O Irmão Alemão,
publicado pela Companhia das Letras, é seu quinto romance.
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