Publicado em literatura por Ilma Pessoa,
em obviusmagazine
“Navego em ideias e tormentas, que atravessam uma mulher e
seu tempo.”
Se o dilema for escolher entre o bem e o mal, esqueça as parábolas. Vá
direto a quem conhece do riscado, lendo o conto "A Igreja do Diabo",
de Machado de Assis, porque aí o papo sobre a verdadeira natureza humana é com
Deus e Satanás, intermediado por quem realmente sabe escrever pra gente grande.
Detesto
fábulas. A ideia de vestir as idiossincrasias do comportamento humano em pele
animal, com final moralista, sempre me soou deveras esdrúxula e falsa, com todo
respeito ao grego Esopo, criador do gênero. Esse meio de induzir as pessoas a
praticar o bom senso, por meio de uma “moral da história”, pode originalmente
ser bem intencionado, mas resume e simplifica a tal ponto alguns dilemas
recorrentes nas nossas vidas, que o considero risível.
E como tudo
que nos opõe frequentemente nos persegue, as fábulas estão sempre a nos cercar,
impelindo-me a escrever este texto, em busca da derradeira libertação. Pense
aí... Volta e meia você está num papo em grupo, sobre circunstâncias adversas
do seu cotidiano, tentando entender o que está acontecendo, por exemplo, com o
seu orçamento doméstico. Daí vem um indivíduo e começa a lembrar do diálogo da Cigarra
e a Formiga, de La Fontaine:
- Ei,
formiguinha, para que todo esse trabalho? O verão é para gente aproveitar! O
verão é para gente se divertir!
- Não, não,
não! Nós, formigas, não temos tempo para diversão. É preciso trabalhar agora
para guardar comida para o inverno.
Então você
se questiona: o cara tá se regozijando por ter abandonado aquele chopinho
semanal com os amigos, durante meses, e assim economizado para pagar as 52
parcelas da tevê de última geração; ou ele acha que você é “coxinha” e tá a fim
de te sacanear?
Bem além da
Grécia antiga, as fábulas são usadas nos dias de hoje quase sempre para
alimentar a soberba dos ignorantes, dando-lhes a falsa impressão de uma
sabedoria fajuta, cabível somente em diálogos de mesa de boteco. Em momentos
como este, a única escapatória é olhar para o lado, tomar mais um gole e mudar
de assunto.
As fábulas
são nada mais que alegorias da realidade, que servem apenas para introduzir de
forma lúdica, no imaginário infantil, as futuras situações peculiares da vida,
das quais não poderá fugir. Quando viramos adultos, a moral da história já não
convence mais.
“O Sapo e o
Escorpião” é um clássico da ausência do plausível e da verossimilhança da
fábula, capaz de ofender a mais reles das inteligências. A parábola, que
fundamentalmente divide a natureza do homem entre o bem e o mal, é em geral
usada pelas pessoas que se sentem vitimizadas pela traição do outro, ou
fantasiam um final com aspectos que não condizem com suas expectativas.
Vamos
combinar que colocar o “bem” na boca do sapo, acostumado naturalmente a
surpreender a presa a curta distância, com a língua precisa e impiedosa, é no
mínimo ingenuidade. Não há qualquer lógica em imaginar que este mesmo sapo
predador se propõe a levar um escorpião nas costas, até a outra margem do rio,
por puro altruísmo. Sim, porque é isso mesmo, sapos são comedores de escorpiões
e não o contrário!
O Sapo e o
Escorpião
Na margem
de um grande rio estava, um dia, um sapo. Ele precisava chegar à margem oposta.
Enquanto se preparava para entrar na água, chegou um escorpião.
Também este
precisava chegar à outra margem, mas não podia fazê-lo: os escorpiões não sabem
nadar. A contragosto viu que o sapo era a única possibilidade de chegar ao
outro lado.
O escorpião
pediu ao sapo para ajudá-lo:
- Deixa-me
subir nas tuas costas e transporta-me até a outra margem. És grande o
suficiente e não te cansarás. Mas o sapo, que conhecia o veneno do ferrão do
escorpião, respondeu:
- Nas
minhas costas? Estás louco! Tenho medo de teu veneno mortal!
E o
escorpião:
- Estás
equivocado em temer-me. Eu desejo atravessar o rio. É meu interesse que tu
vivas.
Com tal
raciocínio, o escorpião induziu o sapo a aceitar. Subiu, então, em suas costas.
O sapo
entrou na água carregando o escorpião e começou a nadar perfeita mente à
vontade no seu meio natural.
Assim que
chegou ao meio do rio, no ponto que era mais forte a corrente e maior o esforço
do sapo, o escorpião levantou o rabo e enterrou o ferrão com toda força nas
costas do sapo.
Enquanto o
veneno mortal se difundia em seu corpo, sentindo que a vida se esvaía, o sapo
exclamou:
- Maldito,
o que estás fazendo?
Não vês que
ambos morreremos: eu envenenado e tu afogado! Por que fizeste isso? E
o escorpião, já se afogando, diz:
- Porque eu
sou um escorpião e esta é minha natureza.
Esta é sem
dúvida uma das histórias mais mal contados do mundo. Quem me garante que, sendo
de autor desconhecido, na verdade ela não escamoteia uma perversão do próprio
sapo, que se sentindo culpado por ter comido o confiante escorpião, antes que
esse pudesse lhe subir às costas, resolveu distorcer a trama e contou-a de
forma mais conveniente, sem dar ao mal afamado inseto peçonhento o direito a
sua versão?
Vamos
combinar: não existe almoço grátis. Este sapo deve estar solto por aí, vivinho
da Silva e à beira dos rios, utilizando-se da lábia para aproximar-se de novas
presas, mantendo ainda assim a fama de bom moço, para quem acredita nela.
Se o dilema
for escolher entre o bem e o mal, esqueça as parábolas. Vá direto a quem
conhece do riscado, lendo o conto A Igreja do Diabo, de Machado de
Assis, porque aí o papo sobre a verdadeira natureza humana é com Deus e
Satanás, intermediado por quem realmente sabe escrever pra gente grande.
© obvious: http://obviousmag.org/palavras_plugadas/2015/04/fabulas-sao-historias-mal-contadas.html#ixzz3Yz6ZwQRO
Follow us: @obvious on Twitter | obviousmagazine on Facebook
Nenhum comentário:
Postar um comentário