Mariana SchreiberDa BBC Brasil em
Brasília
Cercado
em polêmicas, o Marco da Biodiversidade foi sancionado na quarta-feira pela
presidente Dilma Rousseff sob a promessa de destravar a pesquisa científica e o
desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos a partir de recursos naturais
do país.
A nova lei – que
substituiu uma antiga legislação mais burocrática - foi festejada pela
indústria farmacêutica e criticada por ambientalistas e comunidades donas de
conhecimentos tradicionais, como indígenas, quilombolas e extrativistas.
Entenda as
principais polêmicas da lei
Contrato de repartição de benefícios: ocorre
se o produto é criado a partir de pesquisa genética da biodiversidade
brasileira ou de um conhecimento tradicional. No primeiro caso, o limite é de
1% sobre o faturamento com a venda do produto, e o dinheiro é gerido pela
União. No segundo, se for possível identificar a origem do conhecimento, os
termos e valores serão diretamente negociados com a comunidade. Os recursos
devem ser investidos, principalmente, na preservação ambiental e na valorização
dos grupos tradicionais;
Elemento principal de agregação de valor: apenas
produtos em que o conhecimento tradicional ou patrimônio genético for essencial
para seu funcionamento ou apelo mercadológico vão gerar compensações. O governo
diz que objetivo é não desestimular uso de elementos da biodiversidade em
pequena quantidade, que poderiam ser substituídos por itens sintéticos.
Críticos dizem que essa definição é subjetiva e ficará sob controle das
empresas;
Isenções: micro e
pequenas empresas não precisarão repartir benefícios caso gerem produtos
comerciais, e as compensações só serão pagas no caso de produtos finais
(insumos intermediários que usem elementos da biodiversidade ou conhecimento
tradicional ficarão isentos). Comunidades tradicionais dizem que as isenções
limitam muito suas compensações. O setor privado argumenta que pequenas
empresas não teriam condições de arcar com esse pagamento e teriam seus
negócios inviabilizados;
Consentimento prévio: empresas só
podem vender produtos desenvolvidos a partir de conhecimento de comunidades
tradicionais com a autorização delas, após firmarem acordo de compensação. Em
alguns casos, porém, mais de uma comunidade detém o mesmo conhecimento, o que,
segundo críticos do marco, pode gerar um "leilão" entre elas. A
regulamentação deve esclarecer como se resolverá a questão em caso de impasse
entre grupos;
Lista: a repartição de
benefícios incidirá só sobre produtos que constem numa lista formulada por sete
ministérios. Comunidades tradicionais dizem que empresas terão mais condições
de influenciar na formulação da lista e são contra a restrição;
Regularização: a nova lei
permite que a União faça acordo com instituições multadas ou processadas,
reduzindo em 90% o valor das penalidades. Empresas argumentam que isso trará
segurança jurídica. Críticos consideram injusto com empresas que agiram
corretamente dentro das regras atuais.
De um lado, o Grupo FarmaBrasil, que reúne laboratórios farmacêuticos
brasileiros, estima que o novo marco vai gerar a "aplicação de R$ 332
milhões em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas baseadas na flora
brasileira até o final de 2016". De outro, comunidades tradicionais dizem que
essa legislação ameaça seus direitos garantidos internacionalmente.
Regras internacionais preveem que esses grupos devem ser compensados no
caso de seus conhecimentos sobre o uso de recursos naturais, como ervas ou
secreções de animais, servirem para o desenvolvimento de produtos – é o caso,
por exemplo, de uma combinação de ervas criada por um povo indígena que gere um
medicamento ou cosmético.
Embora a nova lei estabeleça compensações, elas estão sendo consideradas
insuficientes, já que o marco isenta pequenas companhias e produtores de
insumos do pagamento. Apenas grandes empresas que venderem produtos finais, em
que o elemento da biodiversidade brasileira tiver peso importante no valor do
produto, deverão pagar as compensações.
"A legislação anterior era muito ruim, tão burocrática que não
gerava negócios. Mas há tantas isenções agora, que o fato de haver mais
negócios não significa que as compensações crescerão da forma como deveriam”,
argumenta Nurit Bensusan, assessora do Instituto Socioambiental, umas das
organizações que crítica o novo marco.
O governo e a indústria farmacêutica, por sua vez, argumentam que as
isenções são necessárias para viabilizar economicamente o setor. Segundo a
diretora-executiva adjunta do Grupo FarmaBrasil, Adriana Diaféria, o pagamento
de compensações sobre produtos intermediários da cadeia encareceria esses
insumos baseados em recursos naturais do país, estimulando sua substituição por
itens equivalentes, gerados de outros materiais.
A administração de Dilma Rousseff sustenta que a nova legislação
significará sim mais compensações, na medida em que facilitará a pesquisa e o
desenvolvimento de novos produtos. Na cerimônia de sanção, a ministra do Meio
Ambiente, Izabella Teixeira, destacou que nos últimos 12 anos foram firmados
apenas 136 contratos de repartição de benefícios - 80% deles nos últimos três
anos - devido à antiga legislação. "Será reduzida a burocracia para o
desenvolvimento de novos produtos. A biodiversidade começará a ser vista como
ativo estratégico do desenvolvimento econômico", observou.
Ao sancionar o extenso marco, a presidente fez apenas seis vetos
pontuais, divulgados nesta quinta-feira, que não afetam a essência do projeto.
Entre eles, eliminou uma das isenções ao vetar o dispositivo que determinava que
produtos gerados agora a partir de pesquisas iniciadas antes de 2000 não
gerariam compensações.
'Ruindade'
Uma das lideranças das comunidades tradicionais, Manoel Cunha, do
Conselho Nacional das Populações Extrativistas, diz que apesar de toda "ruindade",
a nova legislação é melhor que a anterior.
Ainda assim, frisa que o novo marco não atende aos povos tradicionais em
sua totalidade e se queixa do peso maior que as empresas tiveram ao longo do
processo de negociação com o governo e o Congresso.
"Comemos mosca, fomos mais lentos do que as empresas. As empresa
foram para dentro, colocaram todas a suas ideias e sua força política, e o
governo conduziu (o processo) à luz delas", disse.
Cunha esteve na cerimônia de sanção da nova lei junto com mais 17
lideranças dessas comunidades que vieram à Brasília nesta semana para um
seminário sobre biodiversidade. "Estávamos muito revoltados inicialmente,
mas tomamos a decisão política de ir à cerimônia para negociarmos. Esperamos
poder fazer uma regulamentação que possa dar uma cara mais de povos e
comunidade tradicionais para essa lei que está muito empresarial",
explicou.
Em seu discurso, Dilma disse que "as empresas, os representantes da
academia e povos e comunidades tradicionais têm que participar em um processo
em que o objetivo é tornar a regulamentação prática, ágil, eficiente e que
garanta que todos ganhem".
Na abertura de sua fala, porém, deu especial destaque ao papel da
indústria no processo de formulação da nova lei. Após citar inúmeras
autoridades presentes, Dilma dirigiu "um cumprimento especial a uma pessoa
que lutou bastante pela aprovação dessa lei, pelo envio dessa lei. Eu me refiro
ao presidente da Febrafarma (Grupo Farmabrasil, na verdade), o (Reginaldo)
Arcuri".
A proposta do marco foi construída dentro do Ministério do Meio
Ambiente, com participação ativa da indústria farmacêutica, e depois
encaminhada para apreciação no Congresso, onde as comunidades tiveram mais
envolvimento nas discussões. Mas, embora os senadores tenham acatado sugestões
desses grupos, elas foram derrubadas na votação da Câmara dos Deputados.
O secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, Franciso Gaetani,
reconheceu à BBC Brasil que os povos tradicionais não tiveram tanta
participação no debate de formulação do marco, mas disse que as críticas ao
conteúdo da lei eram improcedentes e que a nova legislação beneficiava os
grupos tradicionais.
Capacitação
Presidente Dilma
Rousseff discursa durante cerimônia de sanção do marco
Além de maior participação na regulamentação da lei, as comunidades
cobram também a criação de um conselho de assistência com objetivo de
qualificar esses povos no entendimento do marco, para que possam negociar os
acordos com as empresas. Essa foi uma das propostas aprovadas no Senado, mas
depois excluída na Câmara dos Deputados.
As novas regras modificaram a forma como empresas e cientistas dão
início às pesquisas e firmam acordos com as comunidades. Agora, não é preciso
mais autorização prévia para pesquisar, mas apenas para comercializar produtos
desenvolvidos ao fim desses estudos. Para iniciar pesquisas, bastará um
registro eletrônico.
Já a autorização para comercialização do produto e o contrato de
repartição de benefícios entre empresas e grupos tradicionais poderão ser
firmados até um ano depois do seu lançado no mercado - esse prazo visa dar
tempo para que as companhias avaliem o potencial mercadológico do produto antes
de fixar as compensações a serem pagas.
Ministra do Meio
Ambiente, Izabella Teixeira disse que burocracia dificulta criação de produtos
Os recursos vão diretamente para as comunidades ou para um fundo gerido
pela União, dependendo do caso. Por exemplo, se o produto usar recurso genético
da biodiversidade brasileira que não estava associado a um conhecimento tradicional,
a compensação vai para esse fundo ou pode ser implementada diretamente pela
empresa em forma de ações de preservação ambiental.
A regulamentação detalhará como se dará esse registro eletrônico. Nurit
Bensusan, do ISA, defende que ele seja “bem completo” para garantir a
rastreabilidade da pesquisa e dos produtos que sejam gerados.
O processo de regulamentação também deve abordar outro tema polêmico,
que é a forma como serão negociados os acordos em caso de mais de uma
comunidade possuir o conhecimento tradicional usado no desenvolvimento do
produto.
Segurança jurídica
O modelo anterior de autorização de pesquisa, considerado mais confuso e
burocrático, levou à aplicação de muitas penalidades sobre empresas e
instituições acadêmicas.
Desde 2005, quando entrou em vigor um decreto regulando as sanções no
caso de desrespeito dessas regras, o Ibama já aplicou mais de R$ 230 milhões em
multas, resultado de quase 600 autos de infrações contra instituições
brasileiras e multinacionais.
Entre elas estão grandes empresas (Avon, Natura, Ambev, Boticário,
Johnson & Johnson, L'Oréal, Unilever, etc), laboratórios e farmacêuticas
(Pfizer, Abbott, Medley, Merck, etc); e até mesmo a Embrapa (estatal que faz
pesquisas para o setor agropecuário) e universidades públicas (USP, UERJ, UFMG,
UFRGS, UFPB, etc), que costumam recorrer das multas.
Floresta
Amazônia abriga um dos ecossistemas mais ricos do mundo
Adriana Diaféria, do Grupo FarmaBrasil, disse que o setor ficou
"bastante satisfeito" com o novo marco, que trará "mais
segurança jurídica para os investimentos".
Já a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) -
instituição que representa mais de 120 sociedades científicas – comemorou
parcialmente a nova legislação. Se por um lado a comunidade acadêmica
considerou positiva a desburocratização da pesquisa, de outro lamentou “o
retrocesso aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais”.
"Em nosso entendimento, a ética e o respeito
aos direitos adquiridos é condição sine qua non para
o desenvolvimento de uma ciência séria", disse a presidente da SBPC,
Helena Nader, em artigo no portal da instituição.
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