Colaboração de Fernando Alcoforado*
Calvário
significa martírio, sofrimento. Um observador atento ao que acontece no mundo
percebe o calvário sofrido pela humanidade ao longo de sua história. Apesar do
extraordinário avanço científico e tecnológico que a humanidade já alcançou,
este calvário vem se traduzindo na crescente exclusão social de grande parcela
da população mundial de participação nos frutos do progresso econômico, no
aumento da criminalidade e da violência entre os seres humanos, no cerceamento
das liberdades políticas em inúmeros países e na escalada dos conflitos
internacionais e do terrorismo.
É lamentável
a situação a que chegou a humanidade com sua forma de civilização, onde a fome
mata todos os dias milhões de pessoas em todo o mundo, a maior parte crianças
que não chegam à idade adulta por falta de alimento, enquanto outras comem
demais e ficam obesas pelos erros e excessos alimentares como o fazem seus
próprios pais. Vivemos em um mundo de contrastes entre luxo e lixo, riqueza
material e miséria. É inaceitável viver em um mundo em que, nos últimos 6.000
anos da história da humanidade, houve apenas 292 anos de relativa paz entre os
povos. Associe-se a tudo isto, a desmesurada agressão que vem se processando
contra o meio ambiente natural que pode ameaçar a sobrevivência da humanidade
diante da perspectiva de uma mudança climática global catastrófica.
Houve dois
grandes acontecimentos da história da humanidade que trouxeram muita esperança
de que o homem daria início à construção de um mundo e de um homem novo com a
eliminação dos grilhões da opressão no pensamento e das restrições ao processo
de desenvolvimento. O primeiro grande acontecimento diz respeito ao Iluminismo
e, o segundo, ao nascimento da Modernidade. Com o Iluminismo, esperava-se que
prevalecesse a tolerância, o humanismo e o respeito à natureza e se afirmaria o
direito à liberdade e à igualdade entre os homens. Com a Modernidade, a
sociedade alcançaria, por sua vez, progresso ininterrupto em benefício da
humanidade graças à ciência e à tecnologia.
É preciso
observar que o Iluminismo é o nome que se dá à ideologia que foi sendo
desenvolvida e incorporada pela burguesia na Europa a partir das lutas
revolucionárias do final do século XVIII cujos temas giravam em torno da
Liberdade, do Progresso e do Homem. O Iluminismo tinha como propósito corrigir
as desigualdades da sociedade e garantir os direitos naturais do indivíduo,
como a liberdade e a livre posse de bens. O humanismo iluminista do século
dezoito já propunha que o ser humano e sua dignidade fosse o centro e o valor
fundamental de todas as ciências, impondo assim também que fosse a preocupação
máxima de todo ordenamento jurídico, de todo sistema jurídico.
O Iluminismo
forneceu o lema da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) e
fecundou-a na medida em que seus seguidores se opunham às injustiças, à
intolerância religiosa e aos privilégios do absolutismo. No entanto, desde a
Revolução Francesa até o presente momento, as promessas políticas do Iluminismo
foram abandonadas em todo o mundo com a adoção de práticas imperialistas pelas
burguesias e pelos governos das grandes potências capitalistas a elas
associados, o desencadeamento de 3 guerras mundiais (1ª Guerra Mundial, 2ª
Guerra Mundial e a Guerra Fria), o advento do fascismo e do nazismo, a realização
de intervenções militares e o apoio a golpes de estado em vários países da
periferia capitalista.
As teses
políticas do Iluminismo fracassaram desde a Revolução Francesa, a Revolução
Inglesa e a Revolução Americana. Este fracasso abriu caminho para o advento da
ideologia marxista em todo o mundo que se propunha a dar um passo à frente em
relação ao Iluminismo buscando o fim da exploração do homem pelo homem com a
redução das desigualdades econômicas entre as classes sociais e, no futuro, sua
completa abolição. O fatos da história demonstram que as teses iluministas que
nortearam as revoluções burguesas no século XVIII e as teses marxistas com base
nas quais foram realizadas as revoluções socialistas no século XX fracassaram
porque não cumpriram suas promessas históricas de conquista da felicidade
humana.
A
Modernidade nasceu no século XVIII com a Revolução Industrial significando um
extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver
a ciência e a razão e descobrir as leis universais. A ciência adquiriu uma
importância fundamental para o progresso humano, mediante as contínuas
inovações tecnológicas. A ideia era usar o acúmulo de conhecimento gerado em
busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. A Modernidade é
definida também como um período identificado com a crença no progresso e nos
ideais do Iluminismo. Entretanto o que se observou foi que a expectativa quanto
aos frutos da ciência foi dolorosamente interrompida por eventos que marcaram a
sociedade atual. O principal deles foi sem dúvida às catástrofes da I e da II
Guerra Mundial. Na verdade a ciência contribuiu para a barbárie de duas guerras
mundiais com a invenção de armamentos bélicos poderosos e destrutivos. A
ciência e a tecnologia passaram a ser utilizadas para o bem e para o mal.
Adicione-se
o fato de que a ciência perdeu o seu valor, como resultado da desilusão com os
benefícios que associados à tecnologia trouxe à humanidade. Todo esse
desenvolvimento científico culminou na era atual com uma crise ecológica
mundial que pode resultar em uma mudança climática global catastrófica. Nesse
sentido pode-se duvidar dos reais benefícios trazidos pelo progresso científico
e tecnológico. Em sua obra A Dialética do Esclarecimento (Zahar Editora, 1985),
Theodor Adorno e Max Horkheimer, filósofos vinculados à Escola de Frankfurt,
afirmam que a supremacia da técnica na Modernidade preparou também o caminho
para o desvario político. O avanço científico, na medida em que se capacitou
tecnicamente à eliminação da miséria, trouxe, no entanto, seu crescimento, o
que, para ambos os autores, denunciaria como obsoleta a razão de ser da
sociedade racional pregada pelos iluministas.
Adorno e Horkheimer desconstroem o mito de que
o iluminismo traria a liberdade por investir os homens na posição de senhores,
pela superação da própria dominação, que foi substituída pela razão do
capitalismo de mercado. Por sua vez, o controle sobre a natureza fora mantido,
mas agravado na forma de dominação sobre os homens. E o capitalismo de mercado
tornou-se a instância privilegiada dessa modalidade de controle. Sendo global e
onipresente, o capitalismo de mercado dispõe da técnica necessária, fornecida
pela ciência, para fazer dos homens engrenagens de seu motor, anulando-os,
através do princípio econômico da concorrência total. O totalitarismo do
capitalismo de mercado extingue o pensamento autônomo e reforça a uniformidade
e a unanimidade em uma sociedade de massa, amorfa como a que vivenciamos na era
contemporânea no mundo.
Coligadas,
distantes dos indivíduos, capitalismo, ciência e tecnologia, fundidas agora
como se fossem uma instância única, consolidam sua supremacia sobre a sociedade
contemporânea, determinando seus rumos com a mesma desfaçatez e impessoalidade
de uma mão invisível, segundo Adorno e Horkheimer. Michael Lowy, sociólogo e
filósofo 3 franco-brasileiro e diretor de pesquisa em ciências sociais do CNRS-
Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, afirma que a barbárie moderna
ou “barbárie gerada no seio das sociedades ditas civilizadas” se caracteriza
pelo uso de meios técnicos modernos (industrialização do homicídio, extermínio
em massa graças às tecnologias científicas de ponta), pela impessoalidade do
massacre (populações inteiras - homens e mulheres, crianças e idosos - são
"eliminados", com o menor contato pessoal possível entre quem toma a
decisão e as vítimas), pela gestão burocrática, administrativa, eficaz,
planificada, "racional" (em termos instrumentais) dos atos bárbaros e
pelo uso de ideologia legitimadora do tipo moderno: biológica, higiênica,
científica (Ver Barbárie e modernidade no século 20 de Michael Lowy, publicado
no Brasil pelo jornal "Em Tempo"- emtempo@ax.apc.org e, originalmente
em francês, na revista "Critique Communiste" nº 157, hiver 2000).
* Fernando
Alcoforado, 75, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em
Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de
Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento
estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de
sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São
Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora
Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo,
2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de
doutorado. Universidade de Barcelona,
http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e
Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do
Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA,
Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social
Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft
& Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe
Planetária (P&A Gráfica e Editora, Salvador, 2010), Amazônia Sustentável-
Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e
Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes
do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012) e Energia
no Mundo e no Brasil Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI
(Editora CRV, Curitiba, 2015)
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