terça-feira, 23 de junho de 2015

CAPITALISMO, CIÊNCIA, TECNOLOGIA E BARBÁRIE

 

Colaboração de Fernando Alcoforado*

Calvário significa martírio, sofrimento. Um observador atento ao que acontece no mundo percebe o calvário sofrido pela humanidade ao longo de sua história. Apesar do extraordinário avanço científico e tecnológico que a humanidade já alcançou, este calvário vem se traduzindo na crescente exclusão social de grande parcela da população mundial de participação nos frutos do progresso econômico, no aumento da criminalidade e da violência entre os seres humanos, no cerceamento das liberdades políticas em inúmeros países e na escalada dos conflitos internacionais e do terrorismo.

É lamentável a situação a que chegou a humanidade com sua forma de civilização, onde a fome mata todos os dias milhões de pessoas em todo o mundo, a maior parte crianças que não chegam à idade adulta por falta de alimento, enquanto outras comem demais e ficam obesas pelos erros e excessos alimentares como o fazem seus próprios pais. Vivemos em um mundo de contrastes entre luxo e lixo, riqueza material e miséria. É inaceitável viver em um mundo em que, nos últimos 6.000 anos da história da humanidade, houve apenas 292 anos de relativa paz entre os povos. Associe-se a tudo isto, a desmesurada agressão que vem se processando contra o meio ambiente natural que pode ameaçar a sobrevivência da humanidade diante da perspectiva de uma mudança climática global catastrófica.
Houve dois grandes acontecimentos da história da humanidade que trouxeram muita esperança de que o homem daria início à construção de um mundo e de um homem novo com a eliminação dos grilhões da opressão no pensamento e das restrições ao processo de desenvolvimento. O primeiro grande acontecimento diz respeito ao Iluminismo e, o segundo, ao nascimento da Modernidade. Com o Iluminismo, esperava-se que prevalecesse a tolerância, o humanismo e o respeito à natureza e se afirmaria o direito à liberdade e à igualdade entre os homens. Com a Modernidade, a sociedade alcançaria, por sua vez, progresso ininterrupto em benefício da humanidade graças à ciência e à tecnologia.


É preciso observar que o Iluminismo é o nome que se dá à ideologia que foi sendo desenvolvida e incorporada pela burguesia na Europa a partir das lutas revolucionárias do final do século XVIII cujos temas giravam em torno da Liberdade, do Progresso e do Homem. O Iluminismo tinha como propósito corrigir as desigualdades da sociedade e garantir os direitos naturais do indivíduo, como a liberdade e a livre posse de bens. O humanismo iluminista do século dezoito já propunha que o ser humano e sua dignidade fosse o centro e o valor fundamental de todas as ciências, impondo assim também que fosse a preocupação máxima de todo ordenamento jurídico, de todo sistema jurídico.
O Iluminismo forneceu o lema da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) e fecundou-a na medida em que seus seguidores se opunham às injustiças, à intolerância religiosa e aos privilégios do absolutismo. No entanto, desde a Revolução Francesa até o presente momento, as promessas políticas do Iluminismo foram abandonadas em todo o mundo com a adoção de práticas imperialistas pelas burguesias e pelos governos das grandes potências capitalistas a elas associados, o desencadeamento de 3 guerras mundiais (1ª Guerra Mundial, 2ª Guerra Mundial e a Guerra Fria), o advento do fascismo e do nazismo, a realização de intervenções militares e o apoio a golpes de estado em vários países da periferia capitalista.

As teses políticas do Iluminismo fracassaram desde a Revolução Francesa, a Revolução Inglesa e a Revolução Americana. Este fracasso abriu caminho para o advento da ideologia marxista em todo o mundo que se propunha a dar um passo à frente em relação ao Iluminismo buscando o fim da exploração do homem pelo homem com a redução das desigualdades econômicas entre as classes sociais e, no futuro, sua completa abolição. O fatos da história demonstram que as teses iluministas que nortearam as revoluções burguesas no século XVIII e as teses marxistas com base nas quais foram realizadas as revoluções socialistas no século XX fracassaram porque não cumpriram suas promessas históricas de conquista da felicidade humana.

A Modernidade nasceu no século XVIII com a Revolução Industrial significando um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a ciência e a razão e descobrir as leis universais. A ciência adquiriu uma importância fundamental para o progresso humano, mediante as contínuas inovações tecnológicas. A ideia era usar o acúmulo de conhecimento gerado em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. A Modernidade é definida também como um período identificado com a crença no progresso e nos ideais do Iluminismo. Entretanto o que se observou foi que a expectativa quanto aos frutos da ciência foi dolorosamente interrompida por eventos que marcaram a sociedade atual. O principal deles foi sem dúvida às catástrofes da I e da II Guerra Mundial. Na verdade a ciência contribuiu para a barbárie de duas guerras mundiais com a invenção de armamentos bélicos poderosos e destrutivos. A ciência e a tecnologia passaram a ser utilizadas para o bem e para o mal.

Adicione-se o fato de que a ciência perdeu o seu valor, como resultado da desilusão com os benefícios que associados à tecnologia trouxe à humanidade. Todo esse desenvolvimento científico culminou na era atual com uma crise ecológica mundial que pode resultar em uma mudança climática global catastrófica. Nesse sentido pode-se duvidar dos reais benefícios trazidos pelo progresso científico e tecnológico. Em sua obra A Dialética do Esclarecimento (Zahar Editora, 1985), Theodor Adorno e Max Horkheimer, filósofos vinculados à Escola de Frankfurt, afirmam que a supremacia da técnica na Modernidade preparou também o caminho para o desvario político. O avanço científico, na medida em que se capacitou tecnicamente à eliminação da miséria, trouxe, no entanto, seu crescimento, o que, para ambos os autores, denunciaria como obsoleta a razão de ser da sociedade racional pregada pelos iluministas.

 Adorno e Horkheimer desconstroem o mito de que o iluminismo traria a liberdade por investir os homens na posição de senhores, pela superação da própria dominação, que foi substituída pela razão do capitalismo de mercado. Por sua vez, o controle sobre a natureza fora mantido, mas agravado na forma de dominação sobre os homens. E o capitalismo de mercado tornou-se a instância privilegiada dessa modalidade de controle. Sendo global e onipresente, o capitalismo de mercado dispõe da técnica necessária, fornecida pela ciência, para fazer dos homens engrenagens de seu motor, anulando-os, através do princípio econômico da concorrência total. O totalitarismo do capitalismo de mercado extingue o pensamento autônomo e reforça a uniformidade e a unanimidade em uma sociedade de massa, amorfa como a que vivenciamos na era contemporânea no mundo.

Coligadas, distantes dos indivíduos, capitalismo, ciência e tecnologia, fundidas agora como se fossem uma instância única, consolidam sua supremacia sobre a sociedade contemporânea, determinando seus rumos com a mesma desfaçatez e impessoalidade de uma mão invisível, segundo Adorno e Horkheimer. Michael Lowy, sociólogo e filósofo 3 franco-brasileiro e diretor de pesquisa em ciências sociais do CNRS- Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, afirma que a barbárie moderna ou “barbárie gerada no seio das sociedades ditas civilizadas” se caracteriza pelo uso de meios técnicos modernos (industrialização do homicídio, extermínio em massa graças às tecnologias científicas de ponta), pela impessoalidade do massacre (populações inteiras - homens e mulheres, crianças e idosos - são "eliminados", com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas), pela gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, "racional" (em termos instrumentais) dos atos bárbaros e pelo uso de ideologia legitimadora do tipo moderno: biológica, higiênica, científica (Ver Barbárie e modernidade no século 20 de Michael Lowy, publicado no Brasil pelo jornal "Em Tempo"- emtempo@ax.apc.org e, originalmente em francês, na revista "Critique Communiste" nº 157, hiver 2000).


* Fernando Alcoforado, 75, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona, http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e Editora, Salvador, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012) e Energia no Mundo e no Brasil Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015)

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