Cinema
Documentário de Jorge Denti repassa a viagem que mudou a vida do ícone
TOMMASO KOCH Madri 18 JUN 2015
El País – O Jornal Global
Ernesto Guevara, em um fotograma de ‘La Huella’.
Quem não
conhece Che Guevara? Seu espírito rebelde ainda encanta muitos sonhadores.
Seu olhar seduz nas camisetas de meio mundo. E suas lutas ocupam, com luzes e
sombras, os manuais de história. Entretanto, poucos sabem quem foi Ernesto. Em
outras palavras, como aquele médico argentino sedento de conhecimento acabou se
tornando o ícone imortal que liderou a revolução cubana nos anos
cinquenta. Convencido disso, o cineasta Jorge Denti (Buenos Aires, 1943) tentou
preencher a lacuna com o documentário La Huella del Doctor Ernesto
Guevara [O Rastro do Doutor Ernesto Guevara], que estreou
sexta-feira na Espanha.
Afinal, Denti devia isso ao próprio pai do mito.
“Em um jantar, no Festival de Havana, disse-me que gostaria que se fizesse um
filme que pertencesse a Ernesto. Não algo do Che, que já pertence ao mundo”,
relata o diretor. Denti assumiu a missão com muita seriedade, a ponto de
dedicar-se a ela por décadas. Ele mesmo, no fundo, sofria do feitiço do Che:
“Lembro-me que li um dia num jornal ‘Ernesto Guevara tomou Havana’ e fiquei
impressionado. A cada 10 anos me ocorre algum projeto sobre ele”.
O
documentário narra sua segunda grande viagem pela América Latina, entre 1953 e
1954, a mesma filmada pelo brasileiro Walter Salles em Diários
de motocicleta. Denti, entretanto, substitui a ficção pela
realidade: a aventura avança graças ao relato dos amigos e familiares de
Guevara, enquanto uma voz em off lê, de vez em quando, alguma
das cartas que o jovem trocava com a mãe, a irmã ou a grande amiga Tita
Infante.
“É uma
história para jovens narrada por octogenários”, diz Denti. Assim, o retrato do
Che é pintado por Carlos Calica Ferrer, grande amigo de infância, Alberto
Granado, que compartilhou com ele viaje e ideais, e Juan Martín Guevara, irmão
do ícone. “É um investigador que sai para ver os males do continente. A chave é
sua paixão por conhecer o mundo”, acrescenta Denti. Em La Huella,
apenas se entreveem Fidel Castro e a futura revolução cubana. Não se
fala do Guevara que viajou para acordar a África ou de sua captura e execução
na Bolívia. O que se descobre é o prólogo do ícone.
Ernesto
Guevara tinha 25 anos quando, em 7 de julho de 1953, embarcou num trem com
Calica rumo à Bolívia e a um destino extraordinário. Naquela altura, tinha
estudado e abandonado Engenharia e sonhava com uma especialização em
alergologia em Paris. Denti acredita que a aposta na medicina estava
relacionada a “seus próprios males”, da asma ao falecimento de sua avó.
Estudante preguiçoso, Guevara compensava com sua inteligência e sua cultura.
“Aos 15 anos já tinha lido de tudo. Podia falar com certo conhecimento sobre
qualquer coisa”, diz Denti. Entre os interesses daquele viajante também estavam
a poesia e a Guerra Civil espanhola, graças às missivas e as crônicas de seu
tio, enviado para fazer a cobertura do conflito.
De sua
primeira etapa, Guevara conhecia o bastante, graças às conversas com a moça
boliviana que trabalhava em sua casa. Entretanto, o périplo ensinou ao jovem
muitas coisas que não sabia. Em La Paz conheceu a luta do Movimento
Nacionalista Revolucionário; descobriu suas virtudes e seus defeitos, como o
estilo elitista de alguns líderes. Viu, nas palavras de Denti, que “não era a
revolução que ele queria”.
Dali,
Guevara e Calica passaram ao Peru. O jovem já mostrava então um impulso que
caracterizaria tanto essa viagem como sua vida. “Eu quero unir meu destino ao
dos pobres do mundo”, resumia ele mesmo. Por isso, não se limitava a tratar dos
leprosos em Lima, mas também dormia e jogava futebol com eles. E por isso,
depois de passar por Equador, Panamá, Honduras e El Salvador, rumou para a
Guatemala, para ver com os próprios olhos a jovem revolução que ali se gerava.
“Vai, entrega-se, luta, sofre”, sintetiza Denti. Doeu-lhe, sobretudo, o golpe
de estado que Washington apoiou para defender os interesses da empresa United
Fruit, prejudicada pela reforma agrária do Governo.
“Era latino-americanista”,
define Denti. Nisso, cineasta e guerrilheiro se parecem. E em vários outros
aspectos: Denti filmou diversos conflitos, fez filmes na clandestinidade e
sempre buscou um cinema social. “Os filmes não podem fazer uma revolução, mas
podem acompanhá-la”, diz. O diretor fala com a mesma paixão e carinho de sua
Argentina ou do México – onde vive há 30 anos. Fica indignado com o abandono
que sofre o Haiti e se emociona ao recordar quando entrou em Manágua, câmera na
mão, ao lado dos sandinistas que derrubaram o ditador Somoza. O cineasta se
mostra preocupado com a “grave polarização esquerda-direita” que aflige a
América Latina hoje, embora comemore que seus povos estejam “mais unidos”.
Um panorama
diferente, a seu modo de ver, de quinze anos atrás. Naquela altura, por volta
de 1997, Denti quis rodar Un Fuerte Abrazo para Todos, um
filme de ficção que continuaria a viagem de Ernesto Guevara, trazendo-a até
nossos dias para mostrar como os mesmos problemas continuam presentes. “Fiz 12
ou 14 versões do roteiro, duas vezes a pré-produção. Vendi minha casa para
fazer o filme”, relata Denti. Entretanto, o filme não encontrou financiamento
na América Latina e nunca foi rodado. Um projeto sonhado que ficou na utopia.
Algo parecido com uma revolução.
Nenhum comentário:
Postar um comentário