Conto de Samuel Rawet
Listado entre os 100 melhores contos da literatura brasileira
Chorava. Não propriamente o medo da surra em perspectiva, apesar de roto
o uniforme. Nem para isso teria tempo à mãe. Quando muito uns berros em meio à
rotina. Tiraria a roupa; a outra, suja, encontraria no fundo do armário, para a
vadiagem. Ao dobrar a esquina tinha a certeza de que nada faria hoje. Os pés,
como facas alternadas, cortavam o barro de pós-chuva. A mangueira do terreno
baldio onde caçavam gafanhotos, ou jogavam bola, tinha pendente a corda do
balanço improvisado. Reconheceu-a. Fora sua e restara da forte embalagem que os
seus trouxeram. Ninguém na rua. Os outros decerto não voltaram da escola ou já
almoçavam. Ninguém percebeu-lhe o choro. A vizinha sorriu ao espantar o gato
enlameado da poltrona da varanda. Conteve o soluço ao empurrar o portão. Com a
manga esfregava o rosto marcando faixas de lama na face. Brilhavam ainda da
chuva as folhas do fícus. Olhou a trepadeira. Novinha, mas já quase passando a
janela. Na sala hesitou entre a cozinha e o quarto. A mãe de lenço à cabeça
estaria descascando batatas ou moendo carne.
Despertara-lhe a atenção ao lançar
os livros sobre a cômoda. Que trocasse a roupa e fosse buscar cebolas no
armazém. Nada mais. Nem o rosto enfiara para ver-lhe o ar de pranto e a roupa
em desalinho. À entrada do quarto surpreendeu o blá-blá do caçula que, olhos no
teto, tocava uma harpa invisível. Era lhe estranha à sala, quase estranhos,
apesar dos meses, os companheiros. Os olhos no quadro-negro espremiam-se como
se auxiliassem a audição perturbada pela língua. Autômato copiava nomes e
algarismos (a estes, compreendia), procurando intuir as frases da professora.
Às vezes perdia-se em fitá-la. Dentes incisivos salientes, os cabelos lembrando
chapéus de velhas múmias, os lábios grossos. Outras, rodeava os olhos pelas
paredes carregadas de mapas e figurões. A janela lembrava-lhe a rua onde se
sentia melhor. Podia falar pouco. Ouvir. Nem provas nem arguições: O apelido.
Amolava-o a insistência dos moleques. Esfregou ante o espelho os olhos
empapuçados. Ontem rolara na vala com Caetano, após discussão. Atrapalhou o
jogo. O negrinho cresceu em sua frente no ímpeto de derrubá-lo. Gringuinho
burro! Ajeitou sobre a cama o uniforme.
A lição não a faria. Voltar à mesma
escola, sabia impossível também. Por vontade, a nenhuma. Antigamente, antes do
navio, tinha seu grupo. Verão, encontravam-se na praça e atravessando o campo
alcançavam o riacho, onde nus podiam mergulhar sem medo. À chatura das lições
do velho barbudo (de mão farta e pesada nos tapas e beliscões) havia o bosque
como recompensa.
Castanheiros de frutos espinhentos e larga sombra, colinas
onde o corpo podia rolar até a beira do caminho. Framboesas que se colhiam à
farta. Cenoura roubada da plantação vizinha. A voz da mãe repetia o pedido de
cebolas. Coçar de cabeça sem vontade. No inverno havia o trenó que se carregava
para montante, o rio gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa
a sopa quente de beterrabas, ou o fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do
avô recém-chegado das orações e repetia com entusiasmo o que aprendera. Onde o
avô? Gostava do roçar da barba na nuca que lhe fazia cócegas, e dos contos que
lhe contava ao dormir. Sempre milagres de homens santos. Sonhava satisfeito com
a eternidade. A voz do avô era rouca, mas boa de se ouvir. Mais quando cantava.
Os olhos no teto de tábuas, ou acompanhando a chaminé do fogão, a melodia
atravessava-lhe o sono. Hoje entrara tarde na sala. Não gostava de chamar a
atenção sobre si, mas teve que ir à mesa explicar o atraso. Cinqüenta pares de
olhos fixos em seus pés que tremiam. O pedido de cebolas veio mais forte.
Gargalhada maciça em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mãos. A custo
conteve as lágrimas quando tomou o lugar. Chorara assim quando no primeiro
sábado saiu de boné com o pai em direção à sinagoga. Caetano, Raul, Zé Paulo,
Betinho, fizeram coro ao fim da rua repetindo em estribilho, o gringuinho.
Suspenso o chocalho deparou com os olhos do irmão nos seus. Blá-blá. Sorriso
mole. Sentara-se. Abrira o livro na página indicada, tenteando, como cego, para
entrar no compasso da leitura. Nem às figuras se acostumara, nem às histórias
estranhas para ele, que lia aos saltos. Fala gringuinho. Viera de trás a voz,
grossa, de alguém mais velho. Fala gringuinho.
Insistia. Ao girar o pescoço na descoberta da fonte fora surpreendido
pela ordem de leitura. Olhou os dentes aguçados insinuando-se no lábio inferior
como para escapar. Explicar-lhe? Como? Mudo curvou a cabeça como gato
envergonhado por diabrura. Era-lhe fácil a lágrima. Lembrou um domingo.
Enfiou-se pelo pátio com Raul que o chamara à sua casa. No fundo do quintal
cimentado, sob coberta, dispusera os dois times de botões. Da copa o barulho,
ainda, de talheres, fim do ajantarado. Chamaram. A mãe cortou o melão e separou
duas fatias. Raul agradeceu pelos dois. "Ah! é o gringuinho!"
Expelida pelo nariz a fumaça do cigarro, o pai soltara a exclamação. Quase o
sufoca a fruta na boca. Os tios concentraram nele a atenção. Parecia um bicho
encolhido, jururu, paralisado, as duas mãos prendendo nos lábios a fatia.
"Fala gringuinho!" Coro. Fala gringuinho. Solo. Fala gringuinho.
Coro. Fala gringuinho. Novamente as vozes atrás da carteira. Da outra vez
correra como acuado em meio a risos. Recolhido no
quarto desabafou no regaço da mãe. Blá-blá. Agitar do chocalho. Um
cheiro de urina despertara-o da modorra. Um fio escorria da fralda no lençol de
borracha. Fala gringuinho. Sentiu-se crescer e tombar para trás a cadeira. Em
meio à gritaria a garra da velha suspendeu-o amarrotando a camisa. Cercado,
alguns de pé sobre as mesas, recolheu-se à mudez expressiva. Da vingança
intentada restara a frustração que se não explica por sabê-la impossível.
Blá-blá! A poça de urina principiava a irritá-lo e após esperneios o irmão
arrematou em choro arrastado. Agitou o chocalho
novamente, com indiferença, olho na rua. O matraqueado aumentara o
choro. Não percebeu a entrada da mãe. Sem olhá-lo recolheu o irmão no embalo.
Tirou da gaveta a fralda seca, e entre o ninar e o gesto de troca passou-lhe a
descompostura. Insistiu no pedido do armazém. Ele tentou surpreender-lhe o
olhar, conquistar a inocência a que tinha direito. Depois gostaria de cair-lhe
ao colo, beijá-la e contar tudo, na certeza de que lhe seria dada a razão. Mas nada
disso. Recolhendo os níqueis procurou a porta. Traria as cebolas. E não
contaria que ao ser repreendido na escola, na
impotência de dar razões, quando a velha principiou a amassar-lhe a
palma da mão com a régua negra e elástica, não se conteve e esmurrou-lhe o
peito rasgando o vestido. Quando atravessou o portão acelerou a marcha impelido
pelo desejo de ser homem já. Julgava que correndo apressaria o tempo. Seus pés
saltitavam no cimento molhado, como outrora deslizavam, com as botinhas
ferradas, pelo rio gelado no inverno.
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