segunda-feira, 15 de junho de 2015

ROQUE SANTEIRO: UM CAPÍTULO À PARTE NA TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA

Televisão: teledramaturgia

Publicado em artes e ideias por Sílvia Marques
   
Se você assistiu apenas novelas com final feliz, provavelmente você não viu Roque Santeiro.

Com protagonistas imorais, Roque Santeiro deu um banho de realismo no contexto de Asa Branca, uma cidade fictícia do estado da Bahia, que poderia ser qualquer cidade existente.

Acredito que a novela Roque Santeiro é digna de muitas dissertações e teses. Roque Santeiro mostrou que novela pode ser muito boa sem conceder ao grande público. Roque Santeiro mostrou que novela pode ser a mais fina manifestação da cultura popular. Roque Santeiro não teve final feliz. Para os bonzinhos, vale lembrar. Porque para o carismático vilão Sinhozinho Malta foi só alegria no último capítulo.
Diferentemente de novelas convencionais a curva dramática de Roque Santeiro declina na parte final. Equívoco dos autores? Não. Um toque de arte na televisão. O mito vence o homem. A superstição a verdade. Falando em verdade, quem precisa dela? Os corruptos continuam no poder e para o povo só resta acreditar em milagres já que não podemos confiar em mais nada.
Roque Santeiro foi escrita por Aguinaldo Silva e Dias Gomes, com argumento baseado em uma peça teatral de Gomes. Ninguém é santo na novela. Cada um tem a sua parcela de culpa, seus segredos , suas mentiras. Cada personagem é muito real e humano, até mesmo o intelectual da cidade, professor Astromar, que vira lobisomem em noite de lua cheia. Sacada interessante. Em um país como o Brasil se dedicar ao estudo teórico parece coisa de gente do outro mundo mesmo.

Professor Astromar, intelectual da cidade interpretado por Rui Rezende, deseja quebrar o mito de Roque por duas razões: uma intelectual e outra pessoal. Astromar é apaixonado por Mocinha, ex-noiva ( Lucinha Lins) de Roque( José Wilker).


Muitos personagens apresentam importantes arquétipos: o fazendeiro poderoso com sua amante extravagante, o padre reacionário, o padre que quer mudar o mundo, o político covarde, a beata, o comerciante próspero e mesquinho, a mocinha que idealizou o amor perfeito e ficou aprisionada no passado.

A viúva que inventam para Roque Santeiro torna-se para ele mais real do que sua verdadeira ex-noiva. Mais uma metáfora de como uma mentira pode sobrepor a verdade.

Roque Santeiro foi uma aula em 209 capítulos da cultura popular brasileira, principalmente da nordestina. Apesar da cidade ser fictícia, os dramas e mitos vividos em Asa Branca revelam o jeito de ser brasileiro, o sincretismo religioso, como as questões são resolvidas, o quanto as leis não são cumpridas e como vale o lema " Quem pode mais, chora menos".
A fé que deveria ser vivenciada com mais sobriedade torna-se um remédio para todas as dores da vida, carregada de superstição e negando, muitas vezes, a nossa responsabilidade em relação à vida, a nossa necessidade de lutarmos por aquilo que acreditamos. Asa Branca depende do mito no sentido econômico de forma exclusiva. A cidade não desenvolveu nenhuma outra potencialidade. A quebra do mito poderia levar a dois caminhos extremos: a destruição da cidade ou a reconstrução em novas bases. Quem detém o poder, não quer pagar para ver. Falando em ver, a novela apresenta uma metáfora muito instigante: o ceguinho Jeremias que tudo sabe e tudo "vê", brincando com a ideia de que o pior cego é aquele que não quer ver.
Os personagens de Roque vivido por José Wilker e do revolucionário padre Albano, por Claudio Cavalcanti querem fazer valer a verdade e quando esta está pronta a ser revelada, um incidente acontece reforçando o mito. Neste momento, padre Albano percebe que para o povo acreditar no mito é mais interessante. Enfim, ele tenta defender as pessoas de algo que elas desejam para elas pois desde sempre foram acostumadas a todo tipo de manipulação e não sabem viver de outro modo, esperando sempre algo que vem de cima: ou de Deus ou das camadas dominantes da sociedade.

Roque se arrepende e tenta corrigir as consequências homéricas de seu erro. Mas corrigir o passado é muito complexo pois envolve inúmeras pessoas e situações que fogem ao nosso controle.

Outro aspecto interessante trabalhado pela trama é mostrar o embate entre dois tipos muito diferentes de religiosos. Padre Hipólito, interpretado por Paulo Gracindo apresenta uma igreja conservadora, moralista no mau sentido da palavra e ligada ao poder. Padre Albano apresenta a igreja dos pobres e desvalidos, a igreja que mescla espiritualidade com política e a necessidade de lutar contra as injustiças sociais e os desmandos dos poderosos. Padre Albano é tão humano e visceral que acaba se apaixonando por Tania (Lídia Brondi), a filha do vilão Sinhozinho Malta. O casal que não chega a concretizar seu amor, forma o par mais consciente e equilibrado da novela. E o amor de ambos não se realiza por causa das amarras da Igreja tradicional e despótica que insiste em manter o celibato em nome da ordem e da preservação do poder.
Outro casal que merece destaque é o vivido por Armando Bogus na pele de Zé das Medalhas e Lulu, interpretada por Cássia Kiss. A iludida Lugolina passa por doente mental e vive entrando em situações embaraçosas e complicadas. Mas para quem assistiu a novela inteira, pode perceber que Lulu é provavelmente a personagem feminina mais transgressora no bom sentido da palavra. Tania também é. Porém, Tania estudou e tem bom poder aquisitivo, ferramentas importantes para desenvolver uma maior independência intelectual e afetiva. Lulu é uma moça sozinha, sem recursos, com dois filhos para criar, um marido obsessivo. E mesmo assim, no último capítulo, ela entende que para se libertar de uma vida sufocante e doentia, ela precisará lutar sozinha. A personagem buscou pela ajuda de um homem que a amasse para salvá-la, mas no final ela descobriu que só ela mesma poderia libertar-se num estilo à moda Malu mulher. Coincidência ou não, sua personagem recebeu como trilha sonora uma música de Ivan Lins. E é ao som de "Vitoriosa" que a nossa heroína atrapalhada e intensa vai embora de Asa Branca.
Outro fato muito importante é a escolha final de Porcina, interpretada por Regina Duarte. Ela opta por Sinhozinho ( Lima Duarte) e não por Roque. A decisão conservadora desagradou ao público, mas faz muito sentido. Em primeiro lugar, a ordem foi reestabelecida e tudo voltou aos seus lugares. Realidade que vivenciamos. CPI após CPI tudo continua na mesma, sobre uma gigantesca pizza. Os personagens que tentam punir os corruptos em Asa Branca têm suas forças neutralizadas. Não foi à toa que a primeira versão de 1975 foi censurada.
Por outro lado, depois de assistir a novela muitas vezes, percebi que o par de Porcina era mesmo Sinhozinho. Ela viveu com Roque o mito do estrangeiro, descrito por Lotman.
O estrangeiro causa encantamento e um se deslumbra com o outro. Porém, passada a fase da paixão, provavelmente, Roque e Porcina formariam um casal desconexo e bizarro. Com Sinhozinho, ela vivia a cumplicidade, o entendimento, o companheirismo típicos de um casal de verdade no sentido mais profundo da palavra.


O elenco é um show à parte. Formado por muitos atores de peso, a novela é além de tudo um brinde a quem valoriza interpretações consistentes. Roque Santeiro marcou a estreia de Patrícia Pillar e Claudia Raia na teledramaturgia. Patrícia Pillar viveu Linda Bastos, uma atriz que deve interpretar Porcina em um filme. A novela além de tudo apresenta uma relação quase metalinguística ao mostrar a produção de um filme dentro de uma novela. Claudia Raia vive uma dançarina da boate Sexus, que encanta o delegado da cidade, interpretado por Maurício do Vale.

Patrícia Pillar como Linda Bastos. A atriz se divide entre o pedante marido ( Luiz Armando Queiroz) e o neurótico cineasta Gerson do Vale ( Ewerton de Castro). Fábio Jr vive Roberto Matias , ator boa pinta e mulherengo que deve interpretar Roque. O núcleo de cinema é humor na veia e ao mesmo tempo uma crítica à precariedade das produções cinematográficas brasileiras da época.

Roque Santeiro como qualquer obra significativa e densa não perde o seu brilho com o passar do tempo e a cada vez que a assistimos, podemos nos surpreender com um detalhe a mais. Um marco da nossa teledramaturgia. Uma obra imortal da cultura brasileira.


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