Literatura
Feminista e vegetariana, gosto de
assumir os riscos das coisas que são de verdade. Apaixonada por cinema,
literatura, pessoas e bichos. Escrevo todos os dias para reter as coisas, mas
acabo reinventando tudo. Estudante de direito nas horas vagas...
Publicado em sociedade por Gabriela Richinitti,
em obviusmagazine
Viajar,
sonhar, conversar, ler poesia, ouvir música, amar: momentos em que as razões de
existir se manifestam. Quando nosso coração compreende o fascínio de um mundo
imenso e desconhecido. Quando encontramos o verdadeiro vínculo com a vida. Este
é o sentimento oceânico.
Algumas expressões são autoexplicativas: "sentimento oceânico"
é uma delas.
Descobri-a
entre as primeiras páginas de "O Mal-Estar na Civilização", de
Sigmund Freud.
Freud, ao
abordar a religiosidade, que ele próprio considerava uma ilusão, foi
confrontado com os argumentos de um amigo não identificado no livro. Este amigo
entendia que a fonte da energia religiosa seria não uma ilusão, mas uma real
sensação de eternidade, um verdadeiro "sentimento oceânico" a partir
do qual alguém poderia considerar-se religioso, ainda que rejeitasse a fé, a
crença em um deus onipotente ou na vida após a morte.
O
"sentimento oceânico" é tomado por Freud como uma impressão de
vínculo e comunhão com o mundo. Como psicanalista, Freud rejeita a expressão.
Como leiga, eu a achei tão bonita que simplesmente não pude esquecê-la.
Se Freud
refutou o sentimento oceânico como explicação psicanalítica para a crença religiosa
das civilizações, eu o resgato em seu esplendor literário. A literatura não
quer ser ciência; por isso, tem essa belíssima licença de revolver o lixo das
ideias.
Na verdade,
desde que li esse livro, guardei a expressão como carimbo para os momentos que
vivo. E tenho colecionado meus sentimentos oceânicos.
"Sentimento"
é uma palavra aberta - nela cabe toda a massa difusa de nossa subjetividade.
"Oceânico"
é um adjetivo emprestado do substantivo "oceano". O oceano é a
imensidão líquida que envolve 71% do nosso planeta. Vasto e grandioso, abriga
em seu ventre os segredos de uma biodiversidade escondida de nós, que, enquanto
seres terrestres, vivemos à margem do principal componente da superfície da
Terra.
O oceano é
místico e infinitamente belo: desconhecemos todo o esplendor biológico que
comporta. Ele sugere eternidade: quando nosso olhar investiga seu fim, encontra
a linha do horizonte, que é o limite dos nossos próprios olhos, nunca do
oceano; este parece prosseguir de modo a penetrar o imensurável.
Oceânico é
o sentimento capaz de fazer caber em si a imensidão do mundo.
Quanto a
nós, às vezes, há sentimento sem oceano.
São os dias
que parecem transcorrer dentro de quadrados minúsculos, no interior das jaulas
feias da rotina e dos deveres. Às cores da vida parece faltar o azul celeste
espelhado na vastidão líquida dos mares. São as lágrimas miúdas que vertem dos
olhos e secam nas fibras do travesseiro; sem imensidão, sem eternidade. Nossa
profundidade e nossa importância não cabem no cotidiano raso e suas ocorrências
superficiais.
Mas há,
também, oceano sem sentimento.
Quantas
vezes testemunhamos a beleza infinita e única de um acontecimento, mas nos
falta a disponibilidade do coração? Quantas vezes deixamos que o cansaço, o
costume e a lembrança nauseante dos fracassos nos congelem diante de uma
situação na qual deveríamos nos lançar com ardor?
A magia só
ocorre quando sentimento e oceano se fundem em um torpor muito difícil de ser
descrito: é o sentimento oceânico.
Não existe
uma fórmula para ele; cada um de nós o experimenta a seu modo.
Viajar me
desperta o sentimento oceânico. Experimentar o inédito das culturas, dialogar
com pessoas diferentes e visitar a beleza do que se construiu tão alheio a mim
me faz mergulhar em uma profundeza de sensações. O prazer de viajar é tão
intenso que esqueço o conforto, a pressa, o medo de altura, a timidez: o
desconhecido é um mar aberto onde posso inventar de reinventar-me e fingir ser
quem eu seria em um lugar distante, distinto.
Encontro em
algumas pessoas o sentimento oceânico. Diálogos que se interpenetram, ideias
que se conectam sem a necessidade de palavras explícitas. Com algumas pessoas,
construí arduamente esse tipo de relação. Com outras, não precisei me esforçar:
soube desde o primeiro instante que eram oceanos seguramente navegáveis sem
mapas ou recursos cartográficos.
Um bom
vinho ao som de Billie Holiday ou Ella Fitzgerald faz da noite de luar um
oceano negro no qual posso me emaranhar eternamente, perdida no encantamento
com a vida.
Uma paisagem
inesperada descoberta no vértice de um morro. Uma cena singular flagrada no
miolo da cidade. A conexão com a natureza, com os outros animais. O perfume da
grama cortada, do bolo de cenoura da mãe, o abraço de uma pessoa distante; uma
música, um poema, algo que nos faça reviver pedacinhos de passado. Um livro que
nos conduza como se a realidade morasse ali, na sucessão das páginas.
O
sentimento oceânico tem um forte elemento onírico - mistura à realidade
ingredientes de sonho, memória e imaginação.
Quando
encontramos alguém capaz de nos causar sentimento oceânico mesmo nos dias de
rotina, é preciso impedir que passe junto às ocorrências ordinárias da vida.
O amor,
aliás, deve ser como a perfeita expressão do sentimento oceânico. Não há um
amor que vislumbre seu fim ou que reconheça ilusória sua impressão de
eternidade e imensidão.
O
sentimento oceânico transcorre no interior de um momento, e momentos são
finitos; mas o sentimento oceânico, tomado em si, não conhece tempo e espaço.
O amor, em
seu deslumbramento, só sabe se manifestar com eternidade e imensidão. Se um dia
deixar de ser eterno e imenso, é porque se extraviou; oceano e sentimento
perderam seu liame, sua conexão.
Todo amor,
mesmo que se diga terminado ou reduzido a escombros, foi eterno e imenso
enquanto aconteceu. É o que diz Vinicius de Moraes no célebre verso dedicado ao
mais perfeito sentimento oceânico: "que seja infinito enquanto dure”.
Sentimento
oceânico é aquilo que justifica o todo, que nos enche de boas razões para
existir. É verdade que ele se torna difícil para nós, que nascemos com mapas
prontos para o sucesso e somos constrangidos a segui-los sempre, sob ameaça de
sermos considerados pessoas menores e desprezíveis. Assim, natural que nos
deixemos conduzir por caminhos terrestres, duros e secos.
Mas eu
apostaria que ainda podemos encontrar nossos meios amar, viajar, ler poesia,
fazer amigos, sonhar, preparar bolos de cenoura e experimentar os encantos do
mundo. Ainda podemos nos libertar dos escafandros da rotina, que nos tornam tão
insensíveis à vida. Ainda podemos colocar nossos corações em sintonia com a
beleza oceânica de existir.
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