FLIP teve início com um debate dedicado ao intelectual brasileiro
Segundo a ensaísta Eliane Moraes, ele “não pode ser reduzido à sua
sexualidade"
A revolução de Mário de Andrade
CAMILA MORAES, Paraty, 2 JUL 2015
EL PAÍS – O JORNAL GLOBAL
Sessão de abertura da Flip, Beatriz Sarlo (à esq.), Eliane Moraes
(centro) e Eduardo Jardim (à dir.) / TÂNIA
RÊGO (AGÊNCIA BRASIL)
“Não estou interessado em ser conhecido em
1985”, disse certa vez Mário de Andrade, conforme recordou seu biógrafo,
Eduardo Jardim, durante a mesa de abertura da 13ª Festa Literária de Paraty. Ao lado da crítica literária
argentina Beatriz Sarlo e da ensaísta Eliane Robert Moraes no encontro
titulado As margens de Mario, Jardim perfilou o escritor,
homenageado desta Flip, como um dos grandes intelectuais brasileiros – também
músico, pesquisador, agitador cultural –, que expressava publicamente a
ansiedade de que suas ações e criações impactassem em seu próprio tempo.
Mario viveu sua idade adulta e mais ativa entre os
anos 1917 e 1937, período em que liderou o modernismo brasileiro, cujo auge foi
a Semana de 22, e realizou diversos feitos de toda ordem artística e cultural.
No entanto, morreu em 1945 sem ver concretizada a maioria de seus projetos de
vida, que tinham a ver com a valorização da cultura popular brasileira e a
criação de uma identidade nacional própria. Somente nos dias atuais – muito
depois do que ele mesmo temia – é que Mário de Andrade passa por um
(tímido) resgate.
Segundo
Eliane Robert Moraes, que é professora da USP e examinou a obra de Mário a
partir do erotismo, esse reconhecimento tardio perpassa a homossexualidade do
autor – centro de uma polêmica de décadas envolvendo desde cartas pessoais
censuradas até uma desvalorização do traço erótico presente transversalmente em
sua literatura. “Chegou o momento de poder liberar em Mário de Andrade o
que é de ordem pessoal para reconhecer o que é de ordem estética. Eros foi muitas
vezes silenciado [em sua produção]. Cabe a nós ouvi-lo”, disse Eliane, que
também é escritora. "Sim, nosso escritor era homossexual, era gay. Há
resquícios disso em sua obra, ainda que não possamos falar de uma obra
homoerótica. Nosso desafio é não reduzi-lo à sua sexualidade”, acrescentou, num
esforço de superar a banalidade da polêmica.
Eliane Robert Moraes, professora da USP
Filósofo
que lecionou por anos na PUC-Rio, Eduardo Jardim examinou, à luz de sua
trajetória pessoal, a diversidade característica do escritor, que ele atribui a
uma “permanente dualidade". “É uma espécie de bivitalidade, que marca
todos os escritos e iniciativas de Mario de Andrade. Uma tensão da qual ele
nunca escapou. Ao contrário, fez que ele continuasse produzindo”, disse o
especialista, se referindo a embates de Mário entre suas facetas nacional
e universal, intelectual e popular, exigente e sensual.
Mário de
Andrade em sua casa, em 1938. / ACERVO
IEB-USP
Já Beatriz
Sarlo discorreu sobre as distâncias culturais entre a Argentina e o Brasil nos
anos 1920, comparando Mário de Andrade em São Paulo a escritores que foram seus
contemporâneos em Buenos Aires, como Jorge Luis Borges. “As diferenças
entre eles começam com as pesquisas de Mário em música popular, que nunca
teriam ocorrido a um escritor portenho da década de 20. Passam pelas viagens,
como as que ele fez à Amazônia, e chegam ao caráter carnavalesco de sua obra,
que continua uma profunda celebração da festa, do ritual”, declarou Sarlo. A
ensaísta, que participa de outra mesa no sábado pela manhã, elogiou a
multiculturalidade brasileira, que ela relaciona com uma personalidade mais
aberta e cordial do que a argentina.
Deve ter se
espantado quando, no meio da plateia, o ator Pascoal da Conceição surgiu
declamando versos de Mário de Andrade citados inicialmente por Eduardo Jardim.
Vestido a caráter, como costuma fazer em eventos relacionados ao intelectual,
ele subiu ao palco para finalizar sua intervenção, bastante emotiva e tão pouco
convencional de acordo com os moldes do evento. Ao contrário do que pensaram os
presentes por alguns instantes, nada tinha sido programado. “Foi uma surpresa,
mas até as surpresas podem fazer parte da Flip de vez em quando”, finalizou o
curador da festa, Paulo Werneck.
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