Os 1650 km de barco entre Manaus e Belém tem encontro de rios, sono na
rede e tédio
MARINA ROSSI Manaus (AM) / Belém (PA) 1
JUL 2015
EL PAÍS – O jornal global
O interior do barco Clívia, saindo de Manaus. / M. R.
A embarcação
Clívia sairia às 11h de mais uma quarta-feira abafada em Manaus (AM). Mas,
na realidade, só partiu mesmo às 13h. Para ir até Belém (PA), a passagem
custa 200 reais na bilheteria do Porto de Manaus para aqueles que topam dormir
em rede. Quem quiser mais conforto, paga 350 reais e fica no ilusório luxo dos
camarotes.
Porém, os
vendedores ambulantes de bilhetes, que ficam em frente ao porto e são
credenciados, dão desconto. Dois dias antes da viagem, comprei a minha passagem
com o Tonico e economizei 20 reais. Mais tarde, entenderia a razão pela qual
fui agraciada com essa promoção.
No dia da
viagem, um ajudante de Tonico me ajudaria a pendurar a minha rede. Solícito,
ele leva as bagagens, orienta a comprar a melhor corda e pendura a rede no
segundo andar da embarcação, que, às 9h da manhã já está cheia de gente. Fico
agradecida. Ele me cobra 20 reais. Aquele mesmo que eu havia economizado.
As redes
são penduradas entre toalhas e no meio das bagagens. / M. R.
Finalmente
o Clívia parte, apinhado de gente. Todos que estão ali são moradores que usam
esse tipo de transporte como nós, no Sudeste e em outras partes, usamos ônibus.
Além de mim, não há turistas. A saída de Manaus é bonita e em poucos
quilômetros o primeiro espetáculo se aproxima: o encontro das águas do rio
Negro com o rio Solimões. Por causa da temperatura e densidade diferentes dos
dois rios, as águas não se misturam ao longo de alguns quilômetros. O rio fica
escuro de um lado e claro do outro.
No primeiro
andar do barco, havia um carro, geladeiras, fogões, camas, colchões e dois
cachorros sendo transportados entre os passageiros em redes. Subindo uma
escadinha, chegava-se ao segundo andar: mais 124 redes penduradas e
entrelaçadas, dezenas de malas e mochilas, um banheiro de cada lado e uma
pequena cozinha no meio, bem ao fundo. No terceiro andar fica a cabine do
comandante, um pequeno bar e cadeiras de plástico para apreciar a vista do rio
e mais algumas redes que não couberam nos andares inferiores. A caixa de som do
bar toca tecnobrega e sertanejo das sete da manhã a meia noite. A cerveja, que
não é gelada, distrai. Ajudaria a fazer amigos pelos próximos quatro dias.
O
banheiro —um masculino e outro feminino por andar— tem duas pias e duas
cabines. Dentro das cabines, uma privada e um chuveiro bem em cima do vaso.
Para usar a privada, era preciso fazer um malabarismo: se equilibrar no balanço
do barco, segurar a tampa do vaso, que não ficava aberta sozinha, e desviar da
goteira permanente que vinha do chuveiro. A água usada para tomar banho e
escovar os dentes vem do próprio rio. Ao lado do banheiro há um bebedouro de água
tratada, que também é retirada do rio. A mim, o esquema custou uma virose
que durou mais tempo que a viagem quando cheguei a Belém.
Cada um dos passageiros é um personagem complexo e
ilustra as aventuras e dificuldades de cruzar aquelas imensidões. Lúcia vinha
de Porto Velho, capital de Rondônia. Levou quatro dias para chegar em Manaus de
barco, e ainda tinha dois dias de viagem até Santarém (PA), onde o filho mora.
Ao todo, gastou 370 reais só de passagem, sem contar quase uma semana de
viagem. Diz que não anda de avião porque leva muitas coisas na bagagem, como
farinha de mandioca e piracuí, uma farinha feita com o peixe Bodó. “E tem que
comprar passagem pela internet, o que é muito difícil.”
A comida é
simples: pão, um café super doce e leite, pela manhã – por cinco reais – e
arroz, feijão, macarrão, carne e farinha no almoço e jantar, por dez reais. A
embarcação para em várias cidades, onde algumas pessoas descem e outras tantas
sobem. Nas paradas, sobem no barco vendedores de absolutamente tudo: DVDs,
relógios, bermudas, bijuterias, doces, farinhas, frutas, e CDs, vendidos, no
caso, pela própria cantora. Em alguns pontos do rio, os vendedores chegam de
barquinho e o amarram na embarcação. Sobem no nosso barco e vendem água de coco
a três reais e camarão seco a cinco reais a porção.
Camas,
colchões, móveis e animais no primeiro andar do barco. / M. R.
Óbidos,
município do Estado do Pará, é onde o rio é mais fundo, chegando a 300 metros
de profundidade. Ali, o barco para e a Polícia Federal realiza uma inspeção, já
que a cidade é abertura para a entrada de um grande volume de drogas. Cada
passageiro fica em frente à sua bagagem e a revista é feita de forma aleatória.
Na verdade, a inspeção dá um pouco de movimento para quatro dias que se
arrastam pelo ócio e tédio.
Em
Santarém, cidade em que o barco aporta depois de mais metade da viagem, muita
gente desce. A embarcação passa a noite lá e no dia seguinte pela manhã, uma
nova leva de passageiros embarca. Ketelin era uma delas. Na primeira noite, a
estudante de 19 anos chorou. Disse que estava enjoada. No dia seguinte descobri
que o choro era de fome. Mãe de um menino de três anos, que ficara em casa com
o pai, ela não tinha um real para passar a viagem toda até chegar em Belém,
onde iria para ajudar a mãe a cuidar de uma tia doente. Dividimos a marmita até
o final da viagem.
O pôr do
sol no rio Amazonas. / M. R.
“Seu colete
é Jesus”
Na terceira
noite, uma chuva forte caiu. Uma lona azul tentou conter a tempestade que
molhou o chão onde as bagagens estavam. O barco balançou de um lado para o
outro por algumas horas no breu. A fé, nessas horas, conforta e distrai os
passageiros e muitas senhoras começaram a rezar. A rádio peão, que
informa sobre tudo, diz que o barco estava muito cheio de gente para compensar
a falta de carga. Quanto mais pesado o barco fica, menos ele balança.
O trabalho
da Polícia Federal na cidade de Óbidos para revistar as bagagens. /M. R.
A
informação foi confirmada por um funcionário da embarcação, que conta que
também é cineasta. Questionado se o número de passageiros não era acima da
quantidade de coletes salva-vidas disponíveis, ele afirmou: “Fique tranquila,
se algo acontecer, seu colete é Jesus”.
A chuva
tropical passou rápido e a viagem seguiu normalmente sem que Jesus precisasse
ser acionado. No barco, as pessoas se ajudam. Dividem a comida, cuidam um da
bagagem um do outro e conversam sem parar. Ninguém lê um livro e tampouco há
televisores —a não ser os que estão encaixotados. Algumas mulheres fazem tricô,
as crianças correm de um lado para o outro, um radinho toca dia e noite até a
pilha, finalmente, acabar. Não há muito o que se fazer além disso e até mesmo a
vista da floresta cansa um pouco.
A paraense
Rose vive em Tabatinga (AM), cidade que fica na tríplice fronteira do Brasil
com a Colômbia e o Peru, a 1600 quilômetros de barco de Manaus. Dois dias
depois de conversar comigo, disse: “Vem aqui que nós vamos tirar a sua
sobrancelha”. Deitei na rede dela e saí com o olhar “mais aberto” segundo
disse.
O barco
passa por comunidades ribeirinhas de onde saem crianças em pequenas
canoas na chuva em nossa direção. Nesse momento, sacos plásticos cheios são
arremessados pelos passageiros em direção ao rio. Dentro, estão latas de leite
em pó, farinha, roupas e outros alimentos. Gente que tem pouco ajuda quem tem
menos ainda.
A viagem
termina no domingo, pouco antes do sol nascer em Belém. Quatro dias depois e
1.650 quilômetros rio abaixo, a aventura terminava para mim, mas
não para quem esse tipo de viagem é parte do cotidiano. De Belém eu voltaria a
São Paulo de avião e, em três horas e meia estaria em casa. Pensei na Rose, a
cabeleireira que tirara a minha sobrancelha, que ainda teria mais uma semana de
viagem de barco pela frente, quando retornasse a Tabatinga.
Ribeirinhos
remam até bem perto da embarcação para receber doações dos passageiros, que jogam
roupas e alimentos dentro de sacos plásticos. /M. R.
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