Literatura
Título de
Voltaire (Séc. XVII)
François Marie Arouet, mais conhecido
como Voltaire, foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês.
Conhecido pela sua perspicácia e espirituosidade na defesa das liberdades
civis, inclusive liberdade religiosa e livre comércio.
Os
dois olhos que temos em nada melhoram a nossa condição; serve-nos um para ver
os bens, e o outro para ver os males da vida. Muita gente possui o mau hábito
de fechar o primeiro, e poucos fecham o segundo; eis por que há tantas pessoas
que prefeririam ser cegos a ver, tudo o que veem. Felizes os zarolhos que só
são privados desse olho mau que estraga tudo quanto a gente olha! Era o caso de
Mesrour.
Seria
preciso ser cego para não ver que Mesrour era zarolho. Era-o de nascença; mas
era um zarolho tão satisfeito com a sua condição que jamais se lembrara de
desejar outro olho. Não eram os dons da fortuna que o consolavam dos malefícios
da natureza, pois não passava de um simples carregador e não tinha outro
tesouro senão os seus ombros; mas era feliz, e mostrava que mais um olho e
menos trabalho pouco contribuem para a felicidade. O dinheiro e o apetite lhe
vinham sempre em proporção com o exercício que fazia; trabalhava de manhã,
comia e bebia de tarde, dormia de noite, e considerava cada dia como uma vida à
parte, de modo que a preocupação do futuro jamais lhe perturbava o gozo do
presente. Era (como o vedes) ao mesmo tempo zarolho, carregador e filósofo.
Viu
por acaso passar numa suntuosa carruagem uma grande princesa que tinha um olho
mais do que ele, o que não o impediu de achá-la muito bela, e, como os zarolhos
não diferem dos outros homens senão em que têm um olho de menos, apaixonou-se
perdidamente pela princesa. Dirão talvez que, quando se é carregador e zarolho,
o melhor é a gente não se apaixonar, principalmente por uma grande princesa e,
o que é mais, uma princesa que tem dois olhos; no entanto, como não há amor sem
esperança, e como o nosso carregador amava, ousou esperar.
Tendo
mais pernas que olhos, e boas pernas, seguiu durante quatro léguas o carro da
sua deusa, que seis grandes cavalos brancos puxavam velozmente. Era moda,
naqueles tempos, entre as damas, viajar sem lacaios e sem cocheiro, conduzindo
elas próprias o carro; queriam os maridos que elas andassem sempre sozinhas,
para ficar mais seguros da sua virtude; o que é diametralmente oposto ao
parecer dos moralistas, que dizem que não há virtude na solidão.
Mesrour
continuava a correr junto às rodas do carro, voltando seu olho bom na direção
da dama, espantada de ver um zarolho com tamanha agilidade. Enquanto ele
provava assim o quanto se é infatigável quando se ama, um animal selvagem,
perseguido por caçadores, atravessou a estrada, espantando os cavalos, que
tomaram o freio nos dentes e já arrastavam a bela para um precipício. Seu novo
apaixonado, ainda mais assustado do que ela, embora a princesa o estivesse
bastante, cortou as correias com maravilhosa habilidade; somente os seis
cavalos deram o salto mortal, e a dama, que não estava menos branca do que
eles, apenas passou por um grande susto.
— Quem
quer que sejas – disse-lhe ela; – jamais esquecerei que te devo a vida; pede-me
o que quiseres: tudo o que tenho está a teu dispor.
—
Ah! com muito mais razão – respondeu Mesrour – posso eu oferecer-vos outro
tanto; mas, assim fazendo, sempre vos oferecerei menos; pois só tenho um olho,
e vós tendes dois; mas um olho que vos contempla vale mais que dois olhos que
não vêem os vossos.
A dama
sorriu: pois as galanterias de um zarolho são sempre galanterias; e as
galanterias sempre fazem sorrir.
— Eu
desejaria dar-te um outro olho – disse ela – mas só a tua mãe podia dar-te esse
presente; mas continua a acompanhar-me.
Dizendo
essas palavras, desce ela do carro e prossegue o caminho a pé; seu cãozinho
também desceu e marchava ao lado da dona, ladrando para a estranha figura do
seu escudeiro. Faço mal em lhe dar o título de escudeiro, porque, por mais que
ele lhe oferecesse o braço, não quis a dama aceitá-lo, sob o pretexto de que o
braço estava muito sujo; e ides ver agora como a princesa foi vítima de seu
próprio asseio. Tinha ela uns pequeninos pés, e uns sapatinhos ainda menores,
de maneira que não era feita para longas caminhadas, nem estava devidamente
calçada para isso.
Lindos
pezinhos consolam de ter pernas débeis, quando se passa a vida numa
espreguiçadeira, em meio de uma porção de peralvilhos; mas de que servem
sapatos bordados e lantejoulados em um caminho pedregoso, onde só podem ser
vistos por um carregador e, ainda por cima, por um carregador que só tem um
olho?
Melinade
(é este o nome da dama, que tive minhas razões para calar até agora, visto que
ainda não fora inventado), Melinade avançava como podia, amaldiçoando o seu
sapateiro, escorchando os pés, e dando um mau jeito a cada passo. Fazia hora e
meia que ela marchava como as grandes damas, isto é, já fizera perto de um
quarto de légua, quando tombou de fadiga.
Mesrour,
cujos serviços ela recusara enquanto estava de pé, hesitava em lhos oferecer,
por medo de a macular com o seu contato; pois bem sabia que não estava limpo (a
dama claramente lho dera a entender), e a comparação que fizera em caminho
entre a sua pessoa e a da sua amada ainda lho mostrava com maior clareza. Tinha
ela um leve vestido cor de prata, semeado de guirlandas, que lhe ressaltava a
beleza do talhe; e ele, um blusão pardacento, todo manchado, rasgado e
remendado, e de tal maneira que os remendos ficavam ao lado dos buracos e não
por baixo, onde estariam mais no seu lugar. Havia comparado as suas mãos musculosas
e cobertas de calos com as duas pequenas mãos mais brancas e delicadas do que
lírios. Vira enfim os lindos cabelos loiros de Melinade, que se entremostravam
através de um véu de gaze, penteados em tranças e cachos; e ele, para colocar
ao lado disso, não tinha mais que umas eriçadas crinas negras, cujo único
ornamento era um turbante roto.
No
entanto Melinade tenta erguer-se, mas tomba em seguida, e tão desastradamente,
que o que ela deixou ver a Mesrour tirou-lhe o pouco de razão que a vista de
seu rosto pudera deixar-lhe. Esqueceu que era carregador, que era zarolho, e
não mais pensou na distância que a fortuna pusera entre ambos; mal se lembrou
que amava, pois faltou à delicadeza que dizem inseparável de um verdadeiro
amor, e que às vezes lhe constitui o encanto, e muitas vezes o aborrecimento;
serviu-se dos direitos à brutalidade que lhe dava a sua condição de carregador;
foi brutal e feliz. A princesa, então, estava, sem dúvida desmaiada, ou
lamentava a sua sorte; mas, como tinha um espírito justo, abençoava decerto o
destino pelo fato de todo infortúnio trazer consigo o seu próprio consolo.
A
noite estendera os véus no horizonte, e ocultava na sua sombra a verdadeira
felicidade de Mesrour e a pretensa desgraça de Melinade; Mesrour desfrutava os
prazeres dos perfeitos amantes, e desfrutava-os como carregador, quer dizer
(para vergonha da humanidade) da maneira mais perfeita; os desmaios de Melinade
voltavam-lhe a cada momento, e a cada momento o seu amante recuperava forças.
—
Poderoso Maomé – disse ele uma vez, como homem arrebatado, mas como péssimo
católico, – só o que falta à minha felicidade é ser sentida por aquela que a
causa; enquanto estou no teu paraíso, divino profeta, concede-me ainda um
favor, o de ser para os olhos de Melinade o que ela seria para os meus olhos,
se houvesse luz.
Acabou
de rezar e continuou a gozar. A aurora, sempre demasiado diligente para os
amantes, surpreendeu a ambos na atitude onde ela própria poderia ter sido
surpreendida um momento antes, com Titono. Mas qual não foi o espanto de
Melinade quando, abrindo os olhos aos primeiros raios do dia, viu-se num lugar
encantado, com um homem de nobre estrutura, cujo rosto se assemelhava ao astro
cuja volta a terra aguardava! Tinha faces de rosa, lábios de coral; seus grandes
olhos, ao mesmo tempo ternos e vivos, exprimiam e inspiravam volúpia; seu
carcaz de ouro, ornado de pedrarias, pendia-lhe do ombro e só o prazer fazia
ressoar as suas flechas; sua longa cabeleira, presa por um atilho de diamantes,
flutuava-lhe livremente sobre os rins, e um tecido transparente, bordado de
pérolas lhe servia de veste, sem nada ocultar da beleza do seu corpo.
— Onde
estou, e quem és – exclamou Melinade no auge da surpresa.
—
Estais – respondeu ele – com o miserável que teve a ventura de vos salvar a
vida, e que tão bem cobrou o seu trabalho.
Melinade,
tão satisfeita quanto espantada, lamentou que a metamorfose de Mesrour não
tivesse começado mais cedo. Aproxima-se de um magnífico palácio que lhe atraíra
o olhar e lê esta inscrição na porta: “Afastai-vos, profanos; estas portas só
se abrirão para o senhor do anel.” Mesrour aproxima-se por sua vez para ler a
mesma inscrição, mas viu outros caracteres e leu estas palavras: “Bate sem
receio.” Bateu, e em seguida as portas se abriram por si mesmas com fragor. Os
dois amantes entraram, ao som de mil vozes e de mil instrumentos, num vestíbulo
de mármore de Paros; dali passaram para uma sala soberba, onde os esperava há
mil duzentos e cinqüenta anos um festim delicioso, sem que nenhum dos pratos
houvesse esfriado: puseram-se à. mesa e foram servidos cada um por mil escravas
da maior formosura; a refeição foi entremeada de concertos e danças; e, quando
terminou, todos os gênios vieram, na maior ordem, em diferentes grupos, com
vestuários tão suntuosos quão singulares, prestar juramento de fidelidade ao
senhor do anel, e beijar o dedo sagrado que o carregava.
Ora,
havia em Bagdad um muçulmano muito devoto que, não podendo ir lavar-se na
mesquita, fazia a água da mesquita vir à sua casa, mediante uma pequena
retribuição que pagava ao sacerdote. Acabava ele de fazer a quinta ablução, a
fim de se preparar para a quinta prece. E a sua criada, rapariga estouvada e
muito pouco devota, desembaraçou-se da água santa lançando-a pela janela. A
água caiu sobre um infeliz profundamente adormecido junto a um marco que lhe
servia de apoio. Acordou-se com o choque. Era o pobre Mesrour que, voltando do
seu passeio encantado, perdera na viagem o anel de Salomão. Deixara as soberbas
vestes e retomara o seu blusão; seu belo carcaz de ouro havia-se transformado
num porta-fardos de madeira e, para cúmulo da desgraça, tinha deixado um dos
olhos no caminho. Lembrou-se então de que bebera na véspera grande quantidade
de aguardente, que lhe adormentara os sentidos e aquecera a imaginação. E
Mesrour, que até aquele instante amara essa bebida por gosto, começou a amá-la
por gratidão, e voltou alegremente ao trabalho, resolvido a empregar o salário
daquele dia na aquisição dos meios para tornar a ver a sua querida Melinade.
Qualquer outro ficaria desolado de ser um mísero zarolho depois de ter tido
dois lindos olhos; de sofrer as recusas das varredeiras do palácio depois de
haver gozado os favores de uma princesa mais bela do que as amantes do califa;
e de estar a serviço de todos os burgueses de Bagdad depois de haver reinado
sobre todos os gênios; mas Mesrour não possuía o olho que vê o lado mau das
coisas.
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