terça-feira, 27 de outubro de 2015

NO TEMPO DO BONDE (EM SALVADOR-BAHIA)

Jornal Correio da Bahia/Repórter – em 06 de outubro de 2002



Postado por LUIZ CARLOS FACÓ





(Antigo sistema de transporte de Salvador permanece vivo nas recordações dos sexagenários soteropolitanos, e desperta a curiosidade da nova geração baianos que não o conheceu.)










Quem pongou, pongou. Quem não pongou, dificilmente vai entender o fascínio que o bonde – meio de transporte urbano mais popular do mundo na primeira metade do século passado – ainda desperta em milhares de baianos, mais de 50 anos depois de deixar de circular pela cidade. Não há habitantes de Salvador com pouco mais de 60 anos que não colecione suas lembranças dos veículos da Companhia Linha Circular da Bahia, mais conhecida como a “Circular”. Namoros, conversas políticas, passeios, casamentos e até cortejos de enterros tinham lugar nos bondes. Eles detinham a hegemonia do transporte da cidade até o final da década de 50, quando foram gradualmente substituídos pelos ônibus e automóveis. Ficam porém rodando nos trilhos da memória de seus antigos usuários, com símbolo de uma Salvador muito diferente da atual – menos e menos desenvolvida, mas certamente mais ingênua, pacata e cordial.


“Era outro mundo”, recorda o historiador Cid Teixeira – (mestre dos mestres historiadores baianos) – figura assídua dos bondes da Federação e Rio Vermelho, bairros onde passou a juventude. No bonde do Rio Vermelho, ele tinha até lugar marcado ( no sempre existente jeitinho brasileiro). “Eu sentava sempre, na ponta do terceiro  banco, do lado direito. Se alguém se sentava no meu lugar eu ficava danado”. Lembra divertido. “Todo mundo que pegava o bonde no mesmo horário se conhecia. Se alguém não vinha, os outros ficavam preocupados: será que aconteceu alguma coisa com seu Fulano, que não apareceu hoje?”.


Na nossa cidade do início do século XX, fadada desde e sempre a ser capital do Brasil, e o foi por centenas de anos, a cordialidade era uma coisa tão natural na paisagem como os chapéus e as gravatas. Eram comum, por exemplo, que um homem fizesse a cortesia de pagar a passagem de um amigo, de um conhecido, de um conhecido de uma senhorita. Neste último caso, neste último caso a gentileza podia ser pretexto para início de uma paquera.




O primeiro bonde elétrico de Salvador foi inaugurado em 1897, marcando o início da substituição dos antigos veículos puxados a burros. Para contar a história dos bondes em Salvador (BA), é preciso lembrar d fatos históricos como esse – em sua maioria bem documentados no arquivo da Coelba (ainda existe?), sucessora da companhia de Energia Elétrica da Bahia (ECCB), um dos braços do grupo empresarial da Circular. Mas, além disso, é preciso trazer à tona detalhes que ficaram apenas na memória afetiva dos antigos passageiros: o uniforme cáqui do motorneiro, o barulho condutor ao recolher o dinheiro das passagens, batendo as moedas umas contra as outras na mão, a figura marcante do baleiro, com sua cesta de vime, a sensação deliciosa de viajar pendurado no estribo. E, é claro, o desafio de pongar, isto é, subir e descer do bonde ainda em movimento. Para quem viveu essas experiências quando criança ou adolescente, o bonde será sempre muito mais do que um meio de transporte.

O registro da história dos bondes na Bahia (Salvador), Brasil, aliás, deve muito à dedicação desses passageiros saudosistas. Um dos maiores especialistas nacionais do assunto, o advogado Waldemar Corrêa Stiel, começou a fazer pesquisas por conta própria, depois de se aposentar. Ele é o autor do livro História do Transporte Urbano no Brasil, um levantamento sobre os bondes e trólebus em 69 cidades brasileiras que serviu de fonte para muitos dados citados nesse artigo. Na Bahia, destaca-se o nome do dentista Geraldo da Costa Leal, que também resolveu enveredar pela história ao se aposentar. Autor de vários livros sobre a Salvador antiga, ele acaba de lançar novo trabalho que aborda os bondes, intitulado Perfis Urbanos da Bahia - Os Bondes, A Demolição da Sé, O Futebol e os Gallegos. Trata-se de uma obra repleta de lembranças e dados interessantes, um apanhado de memórias para saudosista nenhum botar defeito.




“Não se pode falar nada se referindo aos bondes, extintos na passagem dos anos 60, sem que logo se encontrem pessoas que queiram opinar com empolgação sobre tudo que aconteceu com os bondes da Circular”, afirma Leal, em seu livro. É verdade. Nas ruas de Salvador, não é difícil encontrar pessoas que sabem de cor, até hoje, os números referentes às principais linhas de bonde. É o caso, por exemplo, do


aposentado Felipe Argolo Sacramento, de 60 anos, que caminhava numa manhã de domingo pelo Comércio. Abordado pela repórter, ele se lembrou de detalhes dos bondes, dos números da linhas da Cidade Baixa, além de apontar o local onde ainda existe um resto de trilho, ao lado da Praça Deodoro. No fim da conversa, deixou transparecer como a recordação do bonde  toca fundo seu coração. “Quando passo ali e vejo o trilho, eu chego a me arrepiar. Eu fico pensando: qual foi o último dia em que o bonde passou aqui? , disse, quando ia embora tentando disfarçar a emoção.


Um comentário:

  1. Amei let essas informações e lembranças sobre Salvador, com isso eu fico sabendo sobre a história do estado aonde eu moro... Fiquei feliz em saber que a população um dia foi mais humana, genuína, até eu sentir saudade..

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