Fotografia
Publicado por João Roc
O século XX veio
consolidar a fotografia não apenas como uma das artes mais fundamentais do
imaginário humano, capaz de eternizar e congelar o que chamamos de tempo e o
que os poetas chamam de paisagens interiores. Este período também veio mostrar
que técnicas poderiam ser empregadas para a documentação histórica, para o
registro. E alguns espíritos indomáveis - uniram às significâncias artísticas
da linguagem fotográfica para documentar sua época - um povo, e unir
ocultamente nações – entre eles – um dos maiores fotógrafos de todos os tempos,
o mestre francês - ou do mundo - Pierre Edouard Léopold Verger.
Pierre nasceu em 1902. De uma família de
classe social elevada. Seu pai era dono de uma gráfica – que Verger herdou
tempos depois – entretanto, com trinta anos de idade, o então jovem de destino
elementar estava completamente sozinho no mundo. Entre desgraças familiares e a
solidão, optou por tornar a fotografia um ofício capaz de fazê-lo mergulhar no
mundo e suas aglomerações raciais.
Pierre Boucher - grande fotógrafo francês e
amigo de Verger - o iniciava na fotografia e este começava a trabalhar na
Aliança Foto, fundada por Boucher. Verger estava dando seus primeiros passos
viajando entre alguns países, ajudando a montar sua visão etnográfica e sua
relação com a realidade social destes povos.
Tornou-se andarilho, percorria quilômetros à
pé fotografando e registrando suas andanças com uma Rolleiflex. Fazendo estudos
e longas peregrinações. Vagava entre ilhas. Entre comunidades distantes e
retratando seus cotidianos. Nestes descaminhos, Verger conhece Marc Chadourne,
repórter da revista francesa Paris-Soir, esse o convida a trabalhar
como repórter-fotográfico. O jovem perdido até então em seus enigmáticos rumos
acaba aceitando a incumbência de registrar as comunidades negras americanas e
conflitos no Japão e China.
Também neste período de 1934, Pierre começa a
trabalhar para o Musée de l’Ethnographie, onde contribuiu entre outros com
Helène Gordon e Alfred Métraux, este último, importante antropólogo suíço da
primeira metade do século XX e grande amigo de Pierre Verger. Outro grande
trabalho neste tempo foi as ilustrações para um dos últimos livros do francês
erradicado em Londres, André Savignon. Trabalho este bastante elogiado que
abriria algumas portas ao solitário viajante.
Em 1935, Verger chegou a ser preso em Sevilha
acusado de espionagem. Não obstante, acaba sendo solto e começa a ilustrar
alguns livros do editor Paul Hartmann - entre estes trabalhos - um deles
marcaria profundamente Pierre, o livro Dieux d’Afrique. Este
trabalho seria publicado apenas em 1954, mas bem antes - em meados da década de
30 - Verger começaria suas primeiras incursões pela África.
O contato com a cultura, a história dos povos
africanos, foi fundamental para a construção da carreira e do olhar demasiado
de Verger. O fotógrafo passa por diversos países, como Mali, Mauritânia,
atravessa o Saara, Burkina Fasso e conhece os rituais, suas etnias e suas
manifestações populares, guerreiros, tribos e religião, além das condições
políticas da sociedade.
Depois deste intenso momento e da volta a
Paris e posteriormente, Londres, Verger seguia agora absolutamente autônomo,
recusando contratos em nome da arte fotográfica em suas últimas consequências.
Vai às Antilhas Francesas e depois a República Dominicana, onde é proibido de
fotografar pela ditadura local. Verger ainda passou por Cuba e México. Estas
importantes experiências viraram uma renomada exposição organizada pela Arts
et Metiers Graphiques. A exibição foi batizada de “Exposição
Universal”.
Também neste ínterim - mais precisamente em
1935 - o romancista brasileiro Jorge Amado lança uma de suas obras primas. Jubiabá. Trazendo
para a universalidade às peculiaridades brasileiras e a visão política do autor
na pele do herói Antônio Balduíno. Não imaginava - o importante autor
brasileiro - que a obra seria decisiva para os rumos de Verger. Fascinado e
instigado a conhecer a cidade de Salvador, o mestre acabou desembarcando no
Brasil tempos depois.
O final da década de trinta foi marcante
também para o mestre. Iniciando uma jornada asiática, percorrendo os conflitos
no Japão, China - onde foi impedido novamente de fotografar - e Filipinas.
Alguns destes documentos foram publicados pela LIFE Magazine. Verger ainda
passou por Indochina e o atual Vietnã. Um grande mosaico cultural, filosófico,
ritualístico é montado na obra do grande retratista. O contato com tribos
distantes, algumas até então desconhecidas, de gestos, cores e dialetos
peculiares é uma grande descoberta rica e documental para a arte de Verger.
Pierre esteve algumas outras vezes no Brasil
- antes de finalmente se instalar definitivamente em 1946. Com uma relação
problemática com o DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda do Regime Vargas
- o fotógrafo viaja para a Argentina e também para o Peru, neste, vive um tempo
na terra de uma das suas maiores referências fotográficas, o mestre e pioneiro
Martín Chambi. Léopold Verger Desembarca no Rio de Janeiro e faz contato com a
revista "O Cruzeiro" que lhe mandaria a cidade de
Salvador na Bahia.
Profundamente embevecido pela cultura
africana, Pierre visita várias cidades brasileiras que têm relação próxima com
esta cultura. Também através do amigo Alfred Métraux, ainda percorre a Guiana e
o Haiti, onde tem contato com cerimônias religiosos, os rituais vodus e diversos
cultos afros. De volta à Bahia, torna-se, Pierre Fatumbi Verger,
depois de fazer sua incipiência no candomblé nagô na casa "Opô
Afonjá" em Salvador.
Em 1998, sob a direção de Lula Buarque De
Holanda e narração do musico Gilberto Gil, o documentário “Pierre Fatumbi
Verger: O Mensageiro entre dois mundos” mostra esta relação intensa e
apaixonada entre o artista e o Brasil e também sua admiração recíproca à
cultura africana. Suas imagens são verdadeiros documentos antropológicos,
históricos, alguns, únicos e preciosos na escrituração da imagem em ambientes
até então, impenetráveis.
Verger ainda lançou alguns notáveis
trabalhos. "Notas sobre o culto aos orixás e voduns" (1957),
resultado de pesquisas realizadas no início da década de 50, sobre cultos afros.
"Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Baía de
Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX" lançado em 1968, é talvez sua
obra mais extensa e ousada.
Neste magnífico trabalho de pesquisa, Verger
realiza um poderoso estudo de campo sobre o comércio de escravos na República
do Benim na África e Brasil, mais específicamente a Bahia. O projeto acabou se
tornando referência crucial para as posteriores pesquisas sobre o tráfico de
escravos.
“Retratos da Bahia” em 1980 e "Orixás,
Deuses iorubas na África e no Novo Mundo" (1981) versam pela análise ao
culto e a cultura africana tradicional. “Ewé - O Uso das Plantas na Sociedade
Ioruba” lançado em 1995, foi prefaciado pelo escritor Jorge Amado e seria sua
última obra.
Verger ainda concebe - em 1988 - a Fundação
Pierre Verger, e foi seu presidente até sua morte. A instituição é uma das
mais importantes - para a manutenção da cultura africana no Brasil - além de
possibilitar o contato com toda a obra de Verger, além de oficinas, encontros e
intercâmbios entre artistas, estudantes e a sociedade geral. Um grande centro
cultural com sede na antiga casa de Pierre na cidade baiana.
Toda a obra deste magistral artista é capaz
de erguer um grande painel de múltiplas tradições. Capaz de se fazer compreender
em diversas línguas - algumas delas - incompreensíveis ou até abstrusas, mas
fáceis de sentir suas nuances quando encontra um espírito complexo e porque
não, onipresente.
“Fatumbi” foi sem dúvida, um mensageiro entre
mundos. Aquele que desvendou o âmago de diversas culturas e os revelou em
imagens inexauríveis, como a própria cultura, como a arte, como a sua arte. Um
patrimônio de todas as gerações.
A eternidade agradece.
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