Cultura: crônica
Dificuldades e preconceitos que cercavam as
mulheres que se 'aventuravam' pela literatura
Para EL PAÍS – O
JORNAL GLOBAL
"E tudo
o que vivemos e que viveremos,
está cheio de árvores trocando as folhas".
– Virginia
Woolf
Numa manhã cinzenta, lá no início do século XX, em um bairro londrino, a
jovem Virginia se despediu com um misto de inveja e saudade – se é que esses
dois sentimentos algum dia andaram juntos – dos irmãos que deixavam o lar e a
cidade para completarem os estudos na Universidade, enquanto à ela e à irmã
Vanessa restavam no sofá as almofadas para serem bordadas e na cozinha as
batatas para serem descascadas. Desde menina, Virginia adorava os livros, e se sentia especialmente comovida com a imagem do velho pai, diante
da lareira, com um exemplar nas mãos, fazendo a leitura diária em voz alta. Não
levou muito tempo para a menina perceber que aquilo que adorava fazia parte de
um universo distante e alheio – distância que a sua natureza não compreendia e
com a qual não se conformava –, mas era um universo feito com leis severas e
milenar espera o qual
não estava convidada nem permitida a entrar, por mais que desejasse.
E Virginia desejava, tanto que, a contragosto do pai, teve aulas de grego
clássico, o primeiro passo para os anos de uma sólida formação autodidata,
conquistada plenamente.
Décadas
depois, em 1928, aos 46 anos de idade e com sete livros publicados, Virginia
Woolf escreveu o ensaio intitulado Um teto todo seu, no qual
imagina a existência de uma hipotética irmã de Shakespeare, chamada Judith, que, como o irmão bardo, possuía
grande capacidade intelectual e talento artístico. O que seria de Judith, de
sua vida, de seu dom e seus anseios?, Virginia pergunta. Enquanto o irmão é
mandado à escola, ganha mundo, torna-se um ator bem-sucedido e um dramaturgo
popular e notável, Judith permaneceu em casa. “Ela era tão aventureira, tão
imaginativa, tão curiosa pra ver o mundo quanto ele era. Mas ela não foi
mandada à escola. Ela não teve a chance de aprender gramática e lógica, ainda
mais de ler Horácio e Virgílio. Ela pegava um livro de vez em quando, um dos de
seu irmão talvez, e lia algumas páginas. Mas aí vinham seus pais e a mandavam
ir remendar as meias ou cuidar do guisado, e não ficar sonhando acordada com
livros e papeis. [...] Talvez ela rabiscasse algumas páginas num sótão às
escondidas, mas era cuidadosa ao escondê-las ou queimá-las”.
O talento
de Judith não encontraria expressão nem escape além das poucas linhas engolidas
pelo fogo e das poucas frases escritas na penumbra e em segredo"
O talento de
Judith não encontraria expressão nem escape além das poucas linhas engolidas
pelo fogo e das poucas frases escritas na penumbra e em segredo. Até
mesmo Jane Austen, três séculos depois, escondia
os seus manuscritos ou cobria-os com um mata-borrão, quando percebia que alguém
se aproximava. A célebre escritora inglesa não tinha um quarto ou outro lugar
próprio para escrever, por isso escrevia na mesa da sala de estar e era
interrompida a todo instante. Virginia Woolf interpretou como constrangimento o
ato de Austen, por ocupar-se com a escrita, e não com qualquer atividade
doméstica. “Embora ninguém devesse sentir vergonha por ser apanhado no ato de
escrever um livro como Orgulho e Preconceito”.
O sentimento
de inadequação não se relacionava às dificuldades naturais de toda a vida,
masculina ou feminina, ponderou Virginia Woolf. “A indiferença do mundo, que
Keats e Flaubert e outros homens de gênio tiveram tanta dificuldade de
suportar, não era, no caso da mulher, indiferença, mas, sim, hostilidade. O
mundo não lhe dizia, como a eles: "Escreva, se quiser; não faz nenhuma
diferença para mim". O mundo dizia numa gargalhada: "Escrever? E que
há de bom no fato de você escrever?".
Ainda assim,
entre papéis escondidos, manuscritos queimados, diários e cartas, culpas, medos
e anseios, escrevia-se. Mas, como a menina Virginia a olhar o pai com os
livros, havia a consciência de se fazer algo proibido, não permitido, ou, mais
perigosamente, algo que não lhe pertencia, que não fazia parte de seu mundo,
ou, como lhe dizia esse hostil mundo, algo que lhe era negado porque não lhe
era de direito.
Lygia Fagundes Telles
No outro
lado do oceano, em terras tropicais, uma jovem, como tantas outras, outras
irmãs de Shakespeare, aguardava a hora da casa ficar vazia para trancar-se em
seu quarto com pena e papel. “Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com
que encanto”, disse Julia Lopes de Almeida em uma entrevista, anos depois, em
1903, ao jornalista João do Rio, “Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo
tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los.
Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do
papel uma porção de rimas...”. Na ocasião da entrevista, Julia já era uma
escritora com notável repercussão entre leitores e o meio literário carioca, o
que, entretanto, não foi suficiente para que ela recebesse o merecido
reconhecimento. Entre as várias atividades que desempenhou no Rio de Janeiro,
Julia participou da comissão para a formação da Academia Brasileira de Letras,
mas, na hora da eleição da cadeira, o seu nome foi excluído.
Filinto de
Almeida, o seu marido, é quem foi eleito membro, dizem as boas e más línguas,
em sua “homenagem”. Filinto, apesar de ter aceitado a honra, reconheceu a João
do Rio, “Não era eu quem deveria estar na Academia, era ela.” A réplica do
jornalista foi taxativa: “Há muita gente que considera D. Júlia o primeiro
romancista brasileiro”. Essa “muita gente”, no entanto, não se manifestou, nem
na ocasião da Academia Brasileira de Letras, nem depois, quando o nome da
escritora foi sendo posto de lado pelos críticos, escritores e antologistas, os
contemporâneos e futuros, o que resultou, até recentemente, em esquecimento e
silêncio em torno de seu nome.
É conhecida
a passagem contada por Lygia Fagundes Telles sobre um dos seus primeiros
lançamentos, no início de sua carreira. A jovem escritora foi cumprimentada por
dois escritores renomados na época, que, em vez de saudar o seu livro, saudaram
as suas pernas. “Muito bonitas”, disseram, e em seguida, como se estivessem
diante de um grande mistério, “mas por que essa coisa de escrever? Você é uma
moça tão bonita, deve se casar, e não escrever, um desperdício”. Lygia conta
que caiu em prantos, ali mesmo no lançamento e na frente dos escritores. “Era
muito difícil na época”, ela fala, “aceitava-se que uma mulher até escrevesse
poesia, abordasse temas pueris e sentimentais, mas uma mulher escrevendo prosa
incomodava muito. A mulher não podia ser a prosadora que tentasse trazer uma
realidade que só os homens traziam. Eles debochavam, queriam minimizar,
desprezar a gente. Insistiam que a nossa vocação era o casamento, e, olha, já
estávamos no século XX. [...] A esses dois senhores, eu respondi: vocação é
aquilo para qual se é chamado. E eu fui chamada pela literatura”.
Lygia lembra
que Clarice Lispector foi uma das poucas de sua geração que enfrentou a
resistência em relação às escritoras de ficção. “O preconceito se expressava
assim: homem escreve bem, mulher vamos ver”, dizia Clarice. Como Virginia Woolf
em Um teto todo seu, Lygia Fagundes Telles lembra de suas
antecessoras. “Os primeiros pensamentos desta mulher que foi tão reprimida, tão
amarrada, foram aqueles escritos nos cadernos de anotações do lar, nos séculos
passados. Entre dois quilos de batata, cinco quilos de cebola, elas colocavam
seus primeiros pensamentos poéticos, em geral suas dúvidas, seus anseios, seus
sonhos. Foram elas as primeiras escritoras. Depois viemos nós”. É como disse
também Virginia: “Se tivermos o hábito da liberdade e a coragem de escrever
exatamente o que pensamos; se fugirmos um pouco da sala de estar e virmos os
seres humanos [...] e também o céu e as árvores, ou o que quer que seja, pois
nenhum ser humano deve tapar o horizonte; então a oportunidade surgirá, e a
poetisa morta que foi a irmã de Shakespeare assumirá o corpo que com tanta
frequência deitou por terra. Extraindo sua vida das vidas das desconhecidas que
foram suas precursoras, como antes fez seu irmão, ela nascerá”.
Crônica publicada
originalmente no Jornal Rascunho.
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