Cultura: livro/filme
Publicado por Sílvia Marques
é paulistana , escritora , bacharel em Cinema, professora universitária
e doutora em Comunicação e Semiótica. Entre meus livros estão "Como
identificar e se livrar de um babaca: Guia de sobrevivência feminina,
"Hispanismo e erotismo: O cinema de Luís Buñuel"
Cena de O morro dos ventos uivantes, versão produzida em 1992, dirigida por Peter Kominsky e estrelada pelos magnéticos e profundos Ralph Fiennes e Juliette Binoche.
O morro dos ventos uivantes foi escrito em 1847 pela inglesa Emily Brontë, filha de pastor e irmã das também escritoras Charlotte e Anne. Emily também teve um irmão pintor e alcoólatra. Perdeu suas irmãs mais velhas, Mary e Elizabeth, quando estas ainda eram crianças. A doença e morte destas irmãs serviram de inspiração para Charlotte escrever "Jane Eyre" e descrever todos os tipos de friagem que as meninas órfãs pegavam na impiedosa instituição de caridade. Mary e Elizabeth estudaram em um rígido colégio interno, onde passaram fome, frio e castigos físicos.
A arte, a fé e a transgressão formaram a história de vida das irmãs Brontê. Entre a fé do pai e o vício do irmão, entre o sangue artístico que corria nas veias e se manifestava em 4 membros da família e a educação puritana, as irmãs Brontë com pouco tempo de vida, vidas inversamente proporcionais às marcas que deixaram na literatura universal, escreveram de forma contundente e extremamente passional, sem perder de vista um profundo senso religioso e moral.
O morro dos ventos uivantes foi adaptado muitas vezes para o cinema. Opto por analisar a versão que mais me agrada das cinco que assisti. Opto por falar sobre a versão produzida em 1992, dirigida por Peter Kominsky e protagonizada por dois atores que conseguiram traduzir com maestria o sentimento trágico e o senso subliminarmente erótico dos personagens e da trama de Emily Brontë: Ralph Fiennes e Juliette Binoche.
O cenário árido e hostil da charneca, pedregoso e cinzento, é uma bela e cruel metáfora das próprias vidas dos personagens com natureza selvagem e inflexível. O céu fechado, os trovões, o vento impiedoso e semelhante a um pranto, são signos de Heathcliff e Cathy em suas jornadas desafortunadas, em que as convenções e a sociedade de castas, sem mobilidade social, passam por cima sem dó nem piedade das subjetividades e do amor. O próprio amor brutal e essencial dos personagens que se sentem um o prolongamento do outro, nos remete a um interessante paralelo com as forças da natureza. Talvez o amor espontâneo seja a mais violenta força natural.
A garota rebelde, que usa vestidos simples, cabelos desgrenhados, ri alto durante as orações e passa o dia inteiro ao lado do seu irmão de criação que ela ama como a um amante, passa a se vestir bem e a flertar com um rapaz rico depois de sofrer um acidente e ser cuidada por quase três meses pela família mais importante da região. Mas a elegância de Cathy é apenas externa e se restringe aos seus trajes e penteados. Sua elegância é tão superficial quanto o amor que sente por Edgar. E basta que Heathcliff retorne para desconstruir toda a felicidade forjada como um castelinho de cartas ou areia.
Esta intensa e fiel adaptação do romance homônimo de Emily Brontë, capta a aura angustiante e cruel do livro, que narra o amor socialmente impossível entre a voluntariosa Cathy e o sombrio Heathcliff. As imagens são marcantes, a trilha sonora perturbadora e o clima é tétrico ( algumas cenas se assemelham a um filme de terror). Ingressamos no mundo obsessivo das paixões não realizadas , em que todos são atingidos pela desgraça do casal protagonista. Heathcliff, apesar de seu caráter rancoroso e destrutivo , é quase um mártir , pois passa por uma verdadeira Via Crucis.
Esta versão apresenta a trama completa do romance. A primeira metade se destina à Cathy e Heathcliff. Cathy morre no meio do livro e é quando começa a verdadeira saga de Heathcliff. Na segunda metade existe uma espécie de repetição do drama, mas sem as consequências trágicas da primeira. A filha de Cathy e Edgar é subjugada por Heathcliff que deseja se vingar de seus inimigos mortos por meio dos seus filhos. Mas diferentemente da primeira parte do romance, o amor fala mais alto e a jovem filha de Cathy ( Cathy também) consegue concretizar o amor ao lado de seu primo Harenton, outra peça do jogo perverso de Heathcliff. Embora extremamente amargo e cruel, Heathcliff não consegue ser tão destruidor quanto Hindley, seu grande algoz.
Uma vida feliz antes das imposições sociais
Um elemento que merece destaque é a construção psicológica dos protagonistas elaborada por Emily Brontë. Ela desenhou em plena Era Vitoriana uma mulher casada que se permite amar outro homem. Embora o amor não seja concretizado no plano sexual, a simples manifestação do seu desejo por Heathcliff era indecente e imoral para os padrões da época. Emily assinou o romance com um pseudônimo masculino. O livro foi tão ousado para os padrões da época que quase 100 anos depois, William Wyler dirigiu uma versão bem mais suave para cair no gosto do público. O filme de 1939 apesar de bem feito, não revela todo o caráter transgressor e destrutivo de Emily Brontë. Isto é, quase cem anos depois, as pessoas ainda não estavam preparadas para mergulhar no universo de Emily Brontë.
Sendo Emily Brontë filha de um pastor , o livro apresenta elementos redentores em seu desfecho, deixando a vingança e o ódio num segundo plano e abrindo espaço para a vida , que sempre se renova por meio do amor. Mais que um romance de caráter social ( embora haja críticas subliminares à sociedade) , O morro dos ventos uivantes centra-se no amour-fou ou amor desmedido, que tudo transcende , até mesmo as barreiras entre a vida e a morte. A sintonia entre Juliette Binoche e Ralph Fiennes é fortíssima e facilmente perceptível pela intensa troca de olhares e pela maneira desafiante que pronunciam os diálogos atrevidos. Sombrio, devastador , tragicamente belo.
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