Música – MPB
(A CANTORA DA DOR DE COTOVELOS)
Publicado por Vitor
Dirami
Dona de dois olhos verdes inesquecíveis, ela viveu 40 anos a
mil. Em pouco menos de meio século de vida mudou seu destino já traçado e se
tornou a maior cantora romântica da música brasileira. Conheça agora um pouco
mais de Maysa.
Desde essa época ela já revelava traços de uma personalidade
marcante. Quando criança, implorou aos pais que a tirassem do colégio
religioso, tradicionalíssimo, alegando que as freiras a estavam deixando louca.
Maysa era péssima nos estudos, chegou a repetir o 2º ano ginasial duas vezes
seguidas, por fim, na última, abandonou os estudos de vez. Sua imagem era a da
legítima bad girl. Aos 16 anos, usava cabelos curtos, vestia calças compridas
(absurdo na época), pintava as unhas de vermelho e maquiava-se com audácia.
Naquela época, o destino comum das garotas como Maysa era se
casar com um rapaz de boa estirpe e constituir uma família, ou seja – ela
estava destinada ao lar. E tudo parecia indicar que ela cumpriria esse destino
sem nenhuma alteração de rota. Aos 17 anos, em 1955, Maysa se casou com o
empresário André Matarazzo. O sobrenome faz estremecer, a família
ítalo-brasileira Matarazzo era considerada uma das mais ricas do Brasil e uma
das maiores fortunas do mundo. Donos de um verdadeiro império que englobava
industrias de metalurgia, comércio, navegação e cabotagem.
André Matarazzo era quase 20 anos mais velho que Maysa. Algo
estranho, mas natural na época. O casamento, na Catedral da Sé de São Paulo, e
a festa, foram dignos de uma super estrela hollywoodiana. Nada anormal para um
clã que ao casar sua herdeira nos anos 40, chegou a realizar festins de três
dias e três noites em São Paulo.
Em pouco tempo, Maysa se deu conta da gaiola de ouro em que
havia se prendido. A distância e a incompatibilidade com um marido sempre
distante e ocupado foram minando seu casamento tempo após tempo. A pressão da
tradição daquele clã rígido e obsoleto começou a se tornar insuportável para
uma jovem alegre e expansiva, de mentalidade moderna e transgressora. E esta
seria a alcunha com que a identificariam tempos depois – transgressora.
A carreira musical de Maysa começou de forma tão banal
quanto surpreendente. O produtor Roberto Corte-Real, maravilhado com o seu
talento, a convidou para gravar um disco durante uma reunião familiar, em 1956.
Obviamente, o marido de Maysa foi contra, e só depois muita insistência ela
pode gravar um disco em caráter beneficente com renda revertida para a campanha
contra o câncer – o que vetava qualquer possibilidade de carreira profissional.
O que deveria ser apenas um capricho de uma esposa
entediada, acabou se tornando coisa séria quando o disco passou a tocar – e
fazer muito sucesso – nas rádios do eixo Rio-São Paulo. A carreira de Maysa
começou a deslanchar da noite para o dia e de repente ela havia se tornado uma
cantora profissional. Acontece que mulheres de família não podiam se igualar a
cantoras de rádio, ela tinha um nome a zelar, um nome de peso – Matarazzo. E
foi aí que Maysa alterou seu destino em 360 graus. Ela se desquitou de André
Matarazzo em 1957, trocando um matrimônio aristocrático por uma carreira de
cantora. O desquite da cantora foi um dos maiores escândalos no Brasil em fins
da década de 50.
O sucesso e a popularidade cresciam dia após dia. Em 1958,
ela já era considerada a maior e mais bem paga cantora do Brasil. A consagração
veio com as canções “Ouça” e “Meu Mundo Caiu” – os maiores sucessos de sua
carreira, de sua própria autoria. Intérprete bem sucedida e compositora
reconhecida, seus discos eram campeões de venda e seus programas de televisão
tinham muito prestígio, ao mesmo tempo em que era uma das cantoras mais
populares da época. Bela, jovem, rica e bem sucedida ela via a carreira em
crescente ascensão enquanto a vida pessoal ia ladeira a baixo.
Parece que seu mundo caíra de tal forma, que nada poderia
faze-la levantar. Maysa passou sistematicamente a abusar da bebida, o que a
tornou uma alcoólatra, como consequência engordou horrores. Sua vida passou a
ser permeada por escândalos, tentativas de suicídio, namoros relâmpagos e até
um grave acidente de carro estampado nas páginas dos jornais.
Numa época em que a música brasileira era dominada por
vozeirões potentes, Maysa representava um contraste, ao ter uma voz pequena e
quase rouca. O que não a impediu de se tornar uma das maiores intérpretes e
compositoras do samba-canção, gênero que dominava a cena musical do país
naquela época; afilhado do bolero mexicano, do blues americano e do fado
português. Maysa fazia parte de um grupo de cantoras como Dolores Duran e Sylvia
Telles, que representaram uma transição durante os anos 50, entre o samba de
carnaval e a bossa nova, surgida no fim da década; gênero do qual Maysa também
foi integrante.
Interpretações tristes e letras altamente românticas e que
falavam sobre amores acabados, angústias e sofrimentos. Maysa passou a ser uma
grande expoente deste gênero, e representar uma nova estética musical como
cantora, filtrando a dramaticidade exagerada do samba-canção em letras
obviamente românticas e genuinamente bonitas. Ela também cantava em vários
idiomas. Maysa se tornou o expoente mais sofisticado e requintado do estilo
Samba-Canção.
A alcunha de cantora de fossa, rainha da dor de cotovelo,
acompanhou-a até o fim da vida. Maysa era uma mulher alegre, expansiva, bem
humorada e muito perspicaz. Mas, que tinha momentos de profunda tristeza,
solidão e angústia. Ela dizia ter uma série de complexos, quando remoía velhas
amarguras e caia em profundo desespero. Sua aura dark era muito acentuada e lhe
dava uma aparência verdadeiramente triste, o que acabava sendo muito explorado
pela mídia da época. todo o sentimentalismo e a emoção de Maysa transpassavam
claramente quando cantava, tudo isto esta impregnado em sua música de
sentimentos fortes e passionais. O melhor exemplo é a interpretação magistral
para “Ne Me Quitte Pas” de Jacques Brel, um dos maiores êxitos de sua carreira.
Em pouco tempo, o sucesso de Maysa começou a ultrapassar
fronteiras. Ela visitou os países da América Latina inúmeras vezes, onde sua
música era muito apreciada por um público fiel que consumia seus discos
continuamente. Na Argentina ela era chamada de la condesa cantante – trocadilho
com o título de nobreza pertencente a família do ex-marido.
Os anos 60 chegaram cheios de positivismo ao Brasil, e no
panorama musical surgia a bossa nova, fomentada desde a década anterior nos
bares e boates da zona sul do Rio de Janeiro. Maysa, que tinha um notável faro
musical se identificou com aquele movimento que trazia inovação e requinte à
MPB, e se tornaria sucesso no mundo inteiro. Com a bossa nova, Maysa pode
expandir referências musicais, mesmo não se tornando uma das grandes
intérpretes do gênero, ela deu uma nova cara mais romântica à bossa nova,
provando ser uma cantora de versatilidade.
A pressão da mídia fez com que Maysa fosse buscar no
exterior a paz e o sossego que não tinha no Brasil. Seu nome estava mais em
alta do que nunca e ela já era uma cantora consagrada no país, mas os rumos que
a vida traça ao nosso destino a fariam ter uma grande carreira internacional.
Ela foi responsável pelo lançamento da Bossa Nova no exterior, mais
precisamente na Argentina e no Uruguai, em 1961, e contribuiu muito em sua
divulgação pelo mundo. Ela excursionou por vários países, tendo se apresentado
em Lisboa, Madri, Paris, Nova York, Milão e Cidade do México. Maysa chegou a
cantar na África e até no longínquo Japão – onde foi a primeira artista
brasileira a se apresentar por lá. O trabalho era exaustivo; na Europa, ela se
cantava em casas noturnas, programas de televisão e gravava discos. Maysa
chegou a morar durante anos na Espanha, quando era casada com o empresário
belga-espanhol Miguel Azanza.
Um dos momentos mais memoráveis da carreira aconteceu em
1963, quando Maysa fez uma única apresentação, inesquecível, no Olympia de Paris.
Ela foi convidada pelo cantor Tino Rossi e deveria encerrar a noite. Maysa
cantou um repertório de música brasileira e guardou para o final uma surpresa –
“Ne Me Quitte Pas” de Jacques Brel. Podia ser uma ousadia cantar em francês
para os franceses, mas o fato é que foi um sucesso. Maysa foi aplaudida de pé e
teve de voltar ao palco do Olympia mais três vezes para repetir a música, tonta
de emoção e empurrada ao palco por Bruno Coquatrix, diretor da casa. No dia
seguinte, os jornais parisienses repercutiram o sucesso de Maysa no Olympia,
exaltando-a como a “Imperatriz da Bossa Nova”. Não pode haver uma emoção maior
para uma cantora estrangeira que a de cantar e ser aplaudida naquela que é a
mais antológica casa de espetáculos da capital francesa.
Maysa continuou empreendendo excursões no exterior por muito
tempo e a esta altura já estava bastante distante do público brasileiro. Quando
sentiu a necessidade de voltar para casa, ela realizou sua última e maior
ousadia. Montou um grande espetáculo na cervejaria Canecão, um local
popularíssimo que viria a se tornar, após esta temporada, a maior casa de
espetáculos do Rio de Janeiro. Acompanhada por grande orquestra e bailarinos,
ela desfilou beleza, talento, competência e ousadia, vestindo mini-saia.
Os anos 70 pareciam tão promissores quanto confusos. Apesar
de todo o prestígio e popularidade, ela já não era mais a maior cantora do
Brasil. No panorama musical da época, consolidava-se de fato a MPB, termo que
passou a designar um estilo musical mais sofisticado que outros mais populares
produzidos na música brasileira, como o samba, a música caipira e a música
popular romântica. A maioria dos cantores contemporâneos de Maysa, ídolos da
música nos anos 40 e 50, mergulharam num período de profundo ostracismo. Não
era o seu caso, mas ela passou a se auto exilar da música, da mídia e do
público, dia após dia.
Vivendo a vida cada dia mais num estilo meio hippie, Maysa
construiu uma casinha numa praia afastada do litoral do Rio de Janeiro e passou
a morar lá na companhia de vários animais. Passou a pintar vários quadros e
fazer esculturas de madeira, sempre sozinha. Seu último disco foi gravado em
1974, sua última turnê em 1975. Desde então, só reservava sua aparição a alguns
poucos programas e especiais de televisão. Ela já não era mais a grande estrela
que foi um dia. Vivia a vida cada vez mais solitária e isolada.
No dia 22 de janeiro de 1977, a grande voz do amor desfeito
partiu para nunca mais voltar. Ia do Rio de Janeiro para sua casa de praia, em
Maricá, e no meio havia a ponte Rio-Niterói. Maysa bateu seu carro contra a
mureta de proteção da ponte, capotou e só parou na pista contrária sentido Rio.
Foi um acidente fatal, Maysa morreu a caminho do hospital.
A cantora de apenas 40 anos deixou um filho – Jayme, os pais
que tanto amava e a uma ferida aberta no coração da música brasileira e dos fãs
que tanto a amaram. Uma mulher cheia de conflitos e sofrimentos, contrastes,
multifacetada, que levou a vida aos trancos e barrancos, mas mesmo assim
conseguiu sobreviver e se tornar quem foi. Uma cantora esplêndida, como poucas
vezes se vê na música. Maysa estava ao nível de uma Edith Piaf ou Amália
Rodrigues. Sua versatilidade permitia que ela fosse do samba à bossa nova, com
perfeição, passando pelo jazz e o bolero. Poucas vezes na história vê-se
mulheres como Maysa, um forte. Ela também escrevia poemas – belíssimos – entre
os melhores, está este:
"Olha, amiga, o passado só constrói passado e o que
antes era empáfia, pela cor brutalmente vermelha acintosa, de tanto caminho
pela escuridão se descolorou no tempo que só ele sentiu passar.
“Vive porque é preciso, e também é bom, e como! Se te for
preciso viver mais do que a própria vida faça, porque então te eternizas... Não
te proponhas a nada e não terá decepções porque o nada, além de incomodar, não
existe."
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