quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

UCRÂNIA: A CRÔNICA DO MEDO

Literatura/crônica


Publicado por Sara Timóteo.
É portuguesa
nascida em 1979 em Torres Vedras. Reside na Póvoa de Santa Iria. Publicou Deixai-me cantar a floresta e Chama fria ou lucidez em 2011 pela Papiro Editora. Publicou em 2012 Refúgio Misterioso com a chancela da Lua de Marfim. Publicou em 2014 Os Passos de Sólon e Elixir Vitae pela Lua de Marfim. Em 2015, publicou O Telejornal através dos Cadernos de Santa Maria. Tem dois livros de não-ficção e um livro de poesia bilíngue publicados e editados pela Spero Publishing (Wisconsin, EUA). Neste momento termina o mestrado em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa..



Uma pequena reportagem desvenda as preocupações de alguns membros da comunidade ucraniana em Portugal e quase se converte numa crítica e crónica de costumes.




UCRÂNIA: A CRÓNICA DO MEDO «Muitas pessoas pensam que os ucranianos são todos iguais. Em Portugal, há muitos estrangeiros; muitas pessoas e poucas casas. É mau.» Ele chama-se Ivan e tem 22 anos. O cabelo é ebúrneo e os olhos quase transparentes de tão azuis.

Estamos seis ucranianos e uma portuguesa sentados na mesa de um café nas Bragadas. A noite já vai longa. Oferecem-me cigarros, bebem cerveja, estranham: «Não fuma, você? Nós fumamos e bebemos muito aqui porque o trabalho nos põe nervosos. Nunca sabemos se o patrão nos vai pagar nem onde estaremos a trabalhar na semana seguinte.».

O trabalho é o tema que domina a conversa. Lá, estudaram e eram cozinheiros, barmen, motoristas, maquinistas. Agora, trabalham nas obras. «Na obra, pagam menos aos ucranianos do que aos africanos e aos brasileiros.». Stepan, 23 anos, completa: «Nós somos diferentes dos portugueses, trabalhamos quando chove, trabalhamos mais horas, trabalhamos no duro. E depois pagam-nos menos. “Isto é discriminação.”. Então, por que motivo continuam a vir para cá? «A cerveja é boa aqui» diz Oleg, com um sentido de humor característico. «Na Ucrânia há 52 milhões de pessoas. Não pode haver trabalho bom para todos.», responde Ivan, que fala em nome do grupo porque «sabe mais português».

Stepan dir-me-á mais tarde, quando estivermos sozinhos, que fugiu de um país em que a máfia «vai ter com os grandes empresários e oferece segurança em troca de 10% dos lucros. Foi disso que fugi. Não há empregos para gente da minha idade sem muitos estudos na Ucrânia. Podemos tornar-nos rapazes de rua e ser pagos pela máfia para deitar bombas nos cafés e hotéis de empresários que não pagam a dívida. Na Ucrânia a vida tornou-se muito perigosa e foi por isso que pedi 1,000 dólares emprestados à minha irmã e vim passear para a terra portuguesa. Mando dinheiro para os meus pais, que vivem muito mal.».

Entre as dificuldades que encontram, a língua constitui-se como o problema principal. Ivan refere que «alguns aprendem pelo livro e outros a escutar palavras. Eu estudei por um livro que comprei a meias com um primo meu. Só a escutar as palavras nunca se vai lá. Quando fui procurar trabalho, viram que sei falar, que sei escrever em português e assim já me deram trabalho.».

Outra das dificuldades tem a ver com as condições em que vivem: «Quatro homens vivem numa casa, depois há só o duche, mas não tem problema, pois não estou dentro de casa o tempo inteiro.», conta Stepan. Por vezes, «acontecem coisas, sarilhos. Na Ucrânia, as coisas chegaram a um ponto em que, quando de lá saí, só grupos de três ou quatro homens podiam passear à noite. Nos primeiros dias em que estive em Portugal, não tinha casa nem dinheiro para dormir no hotel, por isso passeava toda a noite. Os sarilhos que tive foram sempre com africanos que me queriam assaltar, mas batiam-me e fugiam. Os africanos são cobardes, maus trabalhadores e ladrões. Não gosto deles.».

Entre o trabalho, os jogos de futebol que fazem ao domingo de manhã e os cafés em que se juntam para conversar aos fins-de-semana, há espaço para acalentar sonhos? «Eu quero, preciso muito de residência.», enfatiza Stepan.

«Pois eu já vou ter um contrato carimbado em Agosto e já posso ir à Ucrânia, à minha terra, celebrar os meus anos!» anuncia Ivan, radiante.

Stepan, Sezgey e Eugenio pretendem ficar em Portugal durante mais algum tempo e depois tentar a sorte noutro país, como a Alemanha ou os Estados Unidos. Oleg declara querer ficar em Portugal e mandar vir a mulher e os filhos. Ivan esquiva-se e não responde ao que lhe pergunto. Questiona-se: «Por que é que os portugueses nos tratam como se fossemos lixo? Nós estamos sozinhos e ninguém fala conosco. Também há portugueses que sabem que há ucranianos bons, isto não é por raça nem por país; há gente boa e má em qualquer sítio. Isto é vida.».

O café fecha as portas e o grupo dispersa-se. A conversa com Stepan estender-se-á pela noite dentro, até que se torne evidente que é o medo que move estas pessoas.

Talvez o medo seja também a resposta mais verdadeira à questão que Ivan colocou: o medo de gentes com costumes diferentes e com maneiras de pensar a vida diferentes da portuguesa. É o medo que dita o silêncio e é o medo que gera a desconfiança. Mas Ivan já foi embora e não é possível dizer-lhe isto. Não sei sequer se o tornarei a ver.



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