Brasil: história – o
maior traidor da pátria
Domingos Fernandes Calabar (Porto Calvo, 1609 — 1635) foi
um senhor de engenho na capitania de Pernambuco, aliado dos neerlandeses que invadiram o Nordeste do Brasil.
Calabar, a exemplo de Benedict Arnold para os estadunidenses, é tido como o maior traidor da história
brasileira.
Pouco se sabe desse personagem controverso da história brasileira.
O elogio da traição
O que se sabe é que Calabar nasceu em Alagoas, então parte integrante da capitania de
Pernambuco, por volta de 1600.
Foi batizado na fé católica no dia 15 de março de 1610.
Apesar da maioria dos cronistas o retratarem como mulato, filho da negra Ângela
Álvares com um português desconhecido, há indícios de que sua mãe era, na
verdade, “negra da terra”, ou seja, índia[3] . Estudara com os jesuítas e, fazendo dinheiro com o contrabando, chegou a tornar-se senhor de terras e engenhos. Vários cronistas o qualificam, no entanto, de mameluco (mistura de índio e branco) e
não mulato.
Em 1580, Portugal passou para o domínio espanhol. A Holanda era, até então, aliada dos lusitanos mas, ao
contrário, grande inimiga dos espanhóis. Estes, dada a intensidade do comércio
lusitano com os holandeses, estabelecem uma trégua, a qual vigorou até 1621,
quando retomam os embates. Com a fundação da Geoctroyerd Westindische
Companie, a Companhia das Índias Ocidentais, na Holanda, os neerlandeses invadiram a Bahia, dali
foram expulsos, em 1625. Continuaram atacando naus ibéricas e, a 13 de
fevereiro de 1630, iniciam o ataque a Olinda.
O neto de Duarte Coelho, Matias de Albuquerque, vindo da Espanha, viaja ao Brasil a fim de coordenar a defesa do
país. Pouco auxílio deram-lhe em Portugal (apenas 27 soldados), mas ao chegar
às terras brasileiras arregimenta dentre os nativos homens que pudessem
auxiliar na defesa. Em vista disso, perde primeiro Olinda e depois o Recife.
Retirando-se, inicia um combate em guerrilhas, que duras derrotas infligiam aos
invasores. Para tais emboscadas muito contribuíra Domingos Fernandes Calabar,
profundo conhecedor do território, composto, no litoral, de baías, manguezais, rios e praias, aos quais os neerlandeses estavam
aparentemente acostumados, em virtude do caráter marinho de seu próprio país.
No interior havia matas às quais este povo costeiro não se adaptara.
Comerciante e contrabandista, Calabar vivia a
percorrer aqueles caminhos, e com seu auxílio viram-se os neerlandeses forçados
a abandonar Olinda, que incendeiam, concentrando-se no Recife.
Por razões que nunca foram desvendadas
inteiramente, Calabar muda de lado em abril de 1632. Por ambição, desejo de
alguma recompensa entre os invasores, convicção de que estes seriam vitoriosos
ao final ou mesmo por supor que aqueles colonizadores trariam maiores
progressos à terra que os portugueses — o fato foi que Calabar traiu seus
antigos aliados. Durante os dois anos que havia servido entre os seus
conterrâneos, foi ferido duas vezes e ganhou alguma reputação. Dele afirma Robert Southey, em História do Brasil, vol. I, página
349:
«Se, cometido algum crime, fugiu para escapar ao
castigo; se o tratamento recebido dos comandantes o desgostou; ou, se o que é
mais provável, com a traição, esperou melhorar de fortuna, é o que cassetes não
sabe. Mas foi o primeiro pernambucano que desertou para os neerlandeses, e se a
estes fosse dado dentre todos fazer seleção de um, não teriam escolhido outro,
tão ativo, sagaz, empreendedor e desesperado era ele, nem havia quem melhor
conhecesse o país e a costa.»[4]
A vantagem mudara de lado — e os holandeses passam
a conquistar mais e mais territórios —, agora tendo ao seu lado o conhecimento
de que necessitavam, estes conquistaram as vilas de Goiana e
de Igaraçu, a ilha de Itamaracá e até o Forte do rio Formoso. Seu auxílio foi tão precioso que até o
Forte dos Três Reis Magos, no Rio Grande do Norte, caiu sob domínio dos invasores que, com
participação direta de Calabar destroem o engenho do Ferreiro Torto. Seu domínio
estendia-se, então, do Rio Grande até o Recife. Além de Calabar, aderem à
proposta cristãos-novos, negros, índios e mulatos.
Pudsey, mercenário inglês à serviço da Holanda,
descreve Calabar com grande admiração:
«Nunca encontramos um homem tão adaptado a nossos
propósitos (…), pois ele tomava um pequeno navio e aterrava-nos em território
inimigo à noite, onde pilhávamos os habitantes, e quanto mais dano ele podia
ocasionar a seus patrícios, maior era sua alegria.
Forçado a recuar cada vez mais, Matias de Albuquerque retira-se para Alagoas, durando as
lutas já cinco anos. Levava Albuquerque cerca de oito mil homens. Próximo ao
Porto Calvo encontra um grupo de aproximadamente 380 flamengos, dentre estes o próprio Calabar. Um dos moradores
deste lugar — Sebastião do Souto — oferece-se para um ardil e as coisas começam
a tomar novo rumo. Utilizando-se deste voluntário, fiel aos portugueses, o
plano consistia em infiltrar-se nas fileiras inimigas. Souto vai ao comandante
holandês Picard, dizendo haver mudado de lado, convencendo-o a atacar as forças
de Albuquerque.
Após capturado, Calabar é tratado como o mais vil
traidor dos portugueses e punido com a morte.[5] Foi então garroteado (não havia como montar-se uma forca naquelas
circunstâncias) e esquartejado e as suas partes expostas na paliçada da
fortaleza - demonstrando assim a quem mudasse de lado o destino que lhe estava
reservado. Junto com Calabar, em torno de cem neerlandeses também perderam
a vida.
Sobre esse episódio narra Robert Southey em História
do Brasil, vol. I:
«Com tanta paciência recebeu a morte, dando tantos
sinais de sincera contrição de todos os seus malefícios, acompanhada de tão
devota esperança de perdão, que o sacerdote que lhe assistiu aos últimos
momentos nenhuma dúvida conservou sobre a salvação do padecente. O confessor
foi Fr. Manuel do Salvador, que mais tarde tomou não vulgar parte nesta
longa contenda, de que nos deixou singular e interessantíssima história. (...)
Interrogado se sabia de algum português que estivesse em traiçoeira
correspondência com o inimigo, respondeu Calabar que sobre este capítulo muito
sabia, não sendo das mais baixas as pessoas implicadas.
Em Porto Calvo, agora sob comando de Arciszewski, os
holandeses prestaram honras fúnebres àquele a quem efetivamente deviam grande
parte de seu sucesso. Dois anos depois, em 1637, chegaria ao Brasil o príncipe
[Maurício de Nassau]. Nassau contribui para que muitos tenham, ainda hoje, a
ideia de que a colonização holandesa seria melhor que a lusitana, algo
inconsistente ante mesmo o olhar sobre sua retirada do Brasil, acusado de dar
prejuízo à Companhia das Índias Ocidentais e ter retomado o clássico modelo de
exploração exaustiva, o qual forçou a revolta dos brasileiros, dentre os quais André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e Henrique Dias, tratados como heróis da expulsão dos holandeses.
O compositor Chico Buarque, junto a Ruy Guerra, fez em 1973 uma peça teatral intitulada Calabar: o Elogio da Traição, na qual pela primeira vez a condição de traidor
de Calabar era revisitada. Mas esse posicionamento dava-se muito mais para
denunciar a situação da época ditatorial do
que uma visão historiográfica sobre os fatos do século XVII.
Em Salvador (Bahia) há
um bairro denominado "Calabar". Ao largo dessas «homenagens»,
historiadores procuram justificar a atitude de Calabar, sem entretanto observar
que este era aliado dos portugueses, granjeara-lhes a confiança para depois
servir aos inimigos numa privilegiadíssima posição.
O autor, jornalista e historiador alagoano Romeu de
Avelar (1893–1972) foi o primeiro a escrever um livro sobre o personagem
(intitulado Calabar), em 1938, contestando a ideia de que Calabar
teria sido, de fato, um traidor. Na época foi considerado subversivo e
apreendido pelas autoridades. Nele, o autor corajosamente argumenta que
Domingos Calabar, por ter sido brasileiro e não português tinha todo o direito
de escolher de que lado lutar. Avelar nos mostra ainda um Calabar não apenas
corajoso mas também um patriota. Segundo o autor, «Domingos Fernandes Calabar
foi um insurreto e um clarividente que se antecipou à revolução histórica e
liberal do Brasil» (Calabar, 1938)
O livro foi editado novamente em 1973 uns anos após
a morte do autor.
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