Ciência
Colin
Barras
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Humanos e animais morrem se ficarem acordados
por muito tempo
Há poucas coisas que
realmente precisamos para viver. Oxigênio é uma delas, assim como comida e
água. E há o sono: mantenha um animal acordado por muito tempo e ele vai
morrer.
O
mesmo se aplica a humanos.
Só
esse fato já sugere que o sono faz algo bastante importante para nós. Mas
apesar de décadas de intenso estudo científico, ainda não há consenso sobre o
que seria esse "algo importante" exatamente.
Pesquisadores
descobriram que o sono é benéfico para humanos de muitas maneiras: ajuda-nos a
processar nossas memórias e manter nossa vida social e emocional nos trilhos.
Só
ainda não sabemos como, por que ou mesmo quando o sono entrou na evolução
humana.
Teoricamente,
o sono não deveria existir. Faz pouco sentido para animais deliberadamente
perderem a consciência por horas diariamente. "O custo da perda de
consciência para a sobrevivência é astronômico", diz Matthew Walker, da
Universidade da Califórnia.
Quaisquer
que sejam a funções do sono, elas são tão fundamentalmente importantes para
compensar a óbvia vulnerabilidade associada a ficar dormindo. Isso significa
que podemos rejeitar uma das mais simples teorias sobre o sono: a de que
dormimos porque não temos nada melhor para fazer.
Hipóteses
É
a Teoria da Indolência do Sono – uma vez que um animal comeu, escapou de
predadores e viu esgotadas oportunidades de acasalamento, sua agenda fica
vazia. Sem nada mais urgente para fazer, perder a consciência por algumas horas
faz o tempo passar.
O
problema é que, como Walker explica, um animal dormindo é muito mais vulnerável
a ataques de predadores do que um acordado, derrubando a hipótese acima. Por
sinal, é preciso tirar outra opção da lista também: para alguns pesquisadores,
dormir é uma forma de preservação de energia, já que a temperatura no corpo de
mamíferos cai durante alguns estágios do sono.
Especialistas não concordam sobre teorias do
sono
Mas
pesquisadores do sono não estão convencidos. Cálculos mostram claramente que o
sono não serve a esse propósito. "A quantidade de energia que humanos
economizam dormindo, em comparação com simplesmente deitar no sofá, é
basicamente uma fatia de pão de forma integral. Não vale a pena perder a
consciência por apenas 120 calorias".
Mas,
então, para que serve o sono? Para responder à pergunta, seria interessante
primeiro falar sobre algo fundamental: que animais dormem?
Não
há problema para responder que humanos dormem, bem como animais de estimação,
como gatos e cachorros. A confiança, porém, é bem menor para falar de animais
menos familiares, como moscas.
Há
consenso científico sobre as características comportamentais que definem o sono
e que podem ser usadas para identificar padrões em animais menores. Há três
elementos principais. Primeiramente, o sono deixa um animal quieto e parado, já
que músculos não são muito ativos durante o sono.
Segundo,
o sono diminui os reflexos dos animais: se você fizer um som alto perto de um
animal dormindo, ele vai reagir mais lentamente que um animal acordado.
Terceiro:
o sono evita que animais fiquem cansados. Se você deixa um animal acordado a
noite inteira, ele vai compensar no dia seguinte dormido por mais tempo do que
deveria.
Usando
esses critérios, cientistas afirmam que animais relativamente simples como
moscas de fruta e vermes nematoides dormem. "Há diversas publicações sobre
isso", explica Ravi Allada, da Universidade de Evanston, nos EUA.
Animais acordados são menos vulneráveis
De
acordo Paul-Antoine Libourel, do Centro de Pesquisas em Neurociência de Lyon,
na França, o sono parece ser universal na vida animal. "Isso sugere que
dormir é fundamental para a sobrevivência das espécies. A seleção natural não o
suprimiu".
R.E.M.
Na
verdade, a seleção natural fez exatamente o oposto. Construiu o conceito de
sono, adicionando novas funções e novos estágios. Em algum momento na
pré-história surgiu o mais famoso estágio do sono: o R.E.M., marcado por
movimentos rápidos dos olhos.
A
origem do novo estágio é particularmente desafiadora para cientistas como
Libourel. Sabemos que humanos são dotados com o sono R.E.M., e é bastante claro
que quase todos os outros mamíferos também, incluindo os mais
"primitivos", como o ornitorrinco. Isso permite concluir que este
estágio do sono estava presente em alguns dos primeiros mamíferos que andaram
sobre a Terra, há 220 milhões de anos.
É
a época em que também surgiram os primeiros dinossauros. Muitos desapareceram
há 65 milhões de anos, mas um grupo ainda existe: chamamo-los de pássaros. E
pássaros, assim como mamíferos, também têm sono R.E.M.
Não
se sabe ainda em que parte da linha evolucionária este estágio surgiu, mas a
pergunta mais importante é por que ele surgiu.
Animais pequenos, como moscas, também dormem
Alguns
cientistas acreditam que não há explicação funcional e que o sono R.E.M. é
apenas um produto colateral de outras mudanças evolucionárias. Ruben Rial, da
Universidade das Ilhas Baleáricas, em Mallorca (Espanha), aponta para o fato de
que tanto mamíferos quanto pássaros têm sangue quente.
Ele
e seus colegas sugerem que o surgimento de animais de sangue quente deu origem
a uma complicada cadeia de causas e consequências, em que ultimamente
protomamíferos adotaram uma existência noturna, bem diferente de seus
ancestrais répteis.
Os
protomamíferos começaram a passar as horas do dia dormindo em tocas
subterrâneas, que ofereciam tanto proteção de predadores quanto da intensa luz
do sol, que poderia danificar sua vista, adaptada para a noite.
"Mas
eles conservaram muito dos mecanismos neurais que controlavam seu comportamento
mais antigo", diz Rial.
Répteis
passam por duas principais fases diariamente. Uma é a passiva, em que ficam
deitados e imóveis para aquecer seus corpos. A outra é a ativa, em que se movem
para copular, se proteger de predadores ou mesmo socializar.
Rial
conta que regiões mais primitivas do cérebro de protomamíferos continuaram a
seguir esses padrões anciões de atividade, mesmo depois de regiões mais
"avançadas" bloquearem a possibilidade dessa atividade mental ser
convertida em comportamentos.
Sono ajudaria em "faxina" de
neurônios
Sendo
assim, podemos ver o tipo de sono não-R.E.M. como um descendente direto do
"banho de sol" reptiliano. E o R.E.M. como uma forma de herança da
atividade diurna desses animais. "A diferença é que essa atividade agora
acontecia em um corpo paralisado", diz Rial.
Paradoxal
Parece
incrível, mas há fatos endossando essa tese. Por exemplo, há boas evidências de
que os primeiros mamíferos tinham hábitos noturnos, como forma de escapar de predadores
maiores, como dinossauros. Também sabemos que nossos cérebros são extremamente
ativos durante o estágio R.E.M. – tão ativo que um cérebro nesse estágio se
parece com o de um animal totalmente acordado.
Não
é à toa que o R.E.M. é chamado por alguns cientistas de sono paradoxal.
Mas
outros pesquisadores discordam da teoria de que o estágio é apenas um produto
colateral de mudanças evolucionárias maiores. Walker, por exemplo, está
convencido de que o sono R.E.M. tem uma função real e importante. "Fizemos
muito estudos e eles sugerem que o sono, em especial o estágio R.E.M., ajuda a
recalibrar as funções emocionais no cérebro" .
O
cientista argumenta que, se tentarmos nos lembrar de nossas memórias mais
fortes da infância, praticamente todas serão ligadas a algum evento emocional:
uma festa de aniversário, uma experiência apavorante como ser deixado por seus
pais no primeiro dia da escola. "O mais interessante nisso tudo é que
essas memórias não são mais emocionais. Elas não despertam as mesmas reações
viscerais", diz Walker.
Pesadelos seriam formas de terapia
Deveríamos,
então, ser gratos ao sono R.E.M. por essa mudança. O estágio permite que
lembremos e aprendemos com importantes memórias, mas sem ficarmos traumatizados
pela bagagem emocional originalmente criada por elas.
"O
sono R.E.M. providencia terapia noturna" , diz Walker. "Ajuda o
cérebro a fazer o brilhante truque de separar a casca amarga de uma laranja
repleta de informações".
Essa
hipótese oferece uma explicação para condições como estresse pós-traumático.
Pessoas com PSTD frequentemente passam por flashbacks bastante perturbadores.
"Um
soldado com estresse pós-traumático ouve o barulho do escapamento de um
veículo. Não apenas ele tem um flashback ligado à experiência em combate, mas
também uma reação emocional: o pulso acelera, as palmas de suas mãos ficam
suadas. Isso nos diz que o cérebro não separou a emoção da memória",
explica o cientista.
Pesadelos
repetitivos são características do PSTD. Para Walker, isso pode ser o cérebro
oferecendo uma memória altamente emocional para que o sono R.E.M.
"descasque" a emoção. Mas, por alguma razão, isso não acontece.
Mesmo
os mais vívidos sonhos que temos durante o estágio R.E.M. parecem ser
adaptativos. Sabemos isso por causa do trabalho seminal feito pela pesquisadora
do sono Rosalind Cartwright nos anos 80 e 90. Ela estudou os hábitos de sono de
pessoas que mostravam sinais de depressão como consequência de divórcios
acrimoniosos.
Humanos passam mais tempo em sono profundo
Depois
de um ano, foram as pessoas que enfrentaram os sonhos mais longos e terríveis
que ganharam resolução clínica de sua depressão. Paradoxalmente, os
participantes do teste cujos sonhos eram os mais parecidos com pessoas sem
depressão permaneceram deprimidos.
Isso,
segundo Walker, foi um achado, porque anteriormente pensava-se que sonhos eram
apenas um efeito colateral curioso do sono. Algo como o calor gerado por uma
lâmpada incandescente como consequência de sua função primária. "Mas se
isso fosse realmente verdade, os estudos de Cartwright não fariam qualquer
sentido".
As
conclusões sugerem que o sono R.E.M. evoluiu em aves e mamíferos porque os dois
grupos eram cognitivamente e socialmente avançados. Eles usam sono e sonhos
para melhor compreender seu mundo.
Isso
pode explicar porque o sono humano é tão incomum. Um estudo publicado no final
de 2015 descobriu que passamos 25% de nosso sono no estado R.E.M., ao passo que
para outros primatas o percentual varia de 5% a 10%. Isso faz sentido quando
consideramos o quão mais complicada nossa vida social é.
Sinapses
Mas
o que sabemos sobre o sono não-R.E.M.? O sono tem de ter começado por alguma
razão. E ela tem de ser relacionada a alguma característica biológica comum a
animais que dormem. Robert Cantor, do Dartmouth College, nos EUA, acredita ter
identificado algo em comum: um cérebro e um sistema nervoso relativamente
complexos. Mais especificamente um cérebro complexo pelo qual sinais são
transmitidos por moléculas chamadas neurotransmissores.
Entre
as células nervosas estão pequenas junções chamadas sinapses. Quando uma célula
tem uma mensagem para passar a uma vizinha, ela frequentemente a envia de forma
química, um enxame de moléculas, que se gruda nos receptores da célula vizinha.
Ondas cerebrais mudam enquanto
dormimos
"Esse
processo é comum a todos os organismos que dormem", diz Cantor. "Ele
existe na maioria das sinapses em sistemas nervosos, independentemente da
complexidade".
Mas
esse processo tem uma "surpresa": com o passar do tempo, um mar de
moléculas neurotransmissoras pode se acumular na sinapse, interferindo com sua
capacidade de funcionar propriamente. É necessário um processo de limpeza, e
ele acontece de forma mais eficiente quando dormimos, segundo o cientista.
Em
2012, neurocientistas descobriram um novo sistema de vasos sanguíneos no
cérebro, para expulsar fluidos entre as células cerebrais, batizado de sistema
"glinfático". Um ano mais tarde, descobriu-se que esse sistema é mais
ativo quando estamos dormindo.
Cantor
acredita que, se analisarmos os resíduos e encontrarmos neurotransmissores,
isso pode servir como explicação para a origem do sono. Limpar os
neurotransmissores é tão importante para o sistema nervoso que os animais
começaram a dormir.
Mas
os cientistas ainda divergem sobre como o sono evoluiu. O certo é que o sono
tem impacto em todos os principais sistemas do corpo. Diminua o sono, e não
apenas o cérebro que sofre. Os sistemas reprodutivo, metabólico,
cardiovascular, termo-regulatório e imunológico também sofrem. A evolução pode
ter sido guiada por esses benefícios.
Animais mais
"primitivos" podem guardar segredos de evolução do sono
"Se perguntarmos 'existe algo no
corpo que não é melhorado pelo sono ou piorado pela falta de ele?', a resposta
é 'não'", diz Walker.
Felizmente, a Terra ainda conta com
representantes de alguns dos mais antigos grupos de animais, como águas-vivas,
que podem mostrar uma forma primitiva de sono. Estudar esses animais mais
"primitivos" poderá ajudar-nos a descobrir o que gerou o sono.
Mesmo organismos unicelulares, pelo
menos os que vivem mais de 24 horas, podem conter pistas. "Eles mostram
estágios do que podemos chamar de atividade celular passiva, o que pode ser um
precursor do sono", diz Walker.
O cientista também acredita que pode
haver uma outra explicação. Tudo o que sabemos até agora sobre o sono remete à
mesma ideia: o sono é um estado em que entramos para reparar os sistemas que
colocamos sob estresse quando estamos acordados.
Mas podemos colocar esse argumento de
cabeça para baixo e dizer que o sono é tão benéfico que a pergunta deveria ser
"por que os animais acordam" ? O atual mistério pode ser por que
estar acordado é tão danoso.
"O que dizer sobre a hipótese de
que o sono era o primeiro estado da vida e que foi dele que estar acordado
surgiu?", pergunta Walker.
Leia a versão original dessa
reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
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