Literatura: poesia
“Assim como Clarice, um coração batendo
no mundo...”
A última obra da poetisa
portuguesa, Diário do Último Ano, traz reflexões, impressões, ideias, maneiras
de ver e de sentir todo o seu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez
profundo.
Os diários, tais como entendemos, são
escritos pessoais que vêm sendo praticados e usados há bastante tempo. Cometido
na intimidade do escritor, enumera e narra ocasiões e fatos que lhes são
significativos em seu cotidiano, também pode constituir-se em recordações de
tempos pretéritos e que se perpassam até então em nossa memória. Os diários
tornam-se não apenas um repositório de lembranças, mas um refúgio a elas.
Florbela Espanca, umas das mais importantes
poetisas da nossa língua, nascida em Portugal em 1883, conseguiu colocar em
seus escritos a temática da sensibilidade das mulheres, suas dores, angústias e
paixões. Seu último manuscrito trata-se de um diário, com início em 11 de
janeiro de 1930 e término em 02 de dezembro do mesmo ano, seis dias antes de
sua morte e publicado trinta anos depois, em 1981. Trata-se do Diário
do Último Ano. Esta obra constitui-se de 32 fragmentos autobiográficos,
escritos em forma de narração que são confidências, comentários, reflexões e
anotações da poetisa.
Em 1930, a vida chegava ao fim para Florbela.
Ela se encontrava triste, doente, cansada e sozinha. Nestes fúnebres e últimos
dias de sua vida, Florbela ainda continuava a escrever. Escrevia apenas para
saciar-se, sem nem mais um objetivo. Para ela, seus últimos escritos eram
impressões e maneiras de ver e de sentir de seu espírito que os ouvidos dos
outros não recolhiam.
Florbela esperava que seu Diário fosse
exposto depois de sua morte. E tinha uma vontade que lhe parecia possível: que
alguém, depois de muito tempo, o lesse e sentisse, mesmo que não soubesse
dizer, os pesados sentimentos de sua alma, e que nele se debruçasse com um
pouco de piedade e compreensão ao que foi durante sua sofrida vida, retratada
nos pequenos fragmentos de seu diário.
Ao revirar as folhas do Diário, observamos
que os manuscritos são marcados pelo cotidiano em seguida pela memória da
poetisa, sendo esta bastante importante. O amargo da solidão a traz para um
passado de lembranças boas e ruins. Desejos e recordações de sua infância,
mocidade e sua medíocre vida fundem-se e, com isso, descobrimos suas íntimas e
inerentes vontades. Épocas aquelas que não voltam. Em suas confissões,
transitamos e percebemos como o tempo passa, as coisas se modificam e tudo fica
para trás. “Sinto-me só. Quantas coisas lindas e tristes eu diria agora a
Alguém que não existe/Como me lembro hoje do jardim da Faculdade/A minha vida!
Que gânchis! Se nem mesmo sei o que quero!”.
As diversas facetas de sua personalidade são
expostas ao leitor, a poetisa confessa passagens secretas e privadas e faz
releituras de si mesma. Com o diário se encaminhando para o fim, os escritos de
Florbela tornam-se breves e momentâneos. Em alguns trechos, encontram-se
afirmações sobre as cartas de amor que ela escreveu durante a vida, que seriam
apenas resultado de sua necessidade de formar frases. Em outros, pequenas
indagações, além de frases sem um contexto.
Não se pode deixar de notar as considerações
que escreve sobre a morte, Sem forças nem energia, a poetisa ansiava por ela.
“Mas que importa o que está para além? Seja o que for, será melhor que o
mundo!” escreveu Florbela, dias antes de sua morte. A vida não lhe tinha mais
sentido: “o olhar dum bicho comove-me mais profundamente que um olhar humano”.
O Diário se revela como um
discurso monólogo, expressivo de pensamento interior, caracterizado por
impressões e sentimentos, paradoxos, divagações e devaneios. Seis dias antes de
sua morte, em seu último escrito: “E não haver gestos novos nem palavras
novas!”, Florbela se despedia deste mundo, certa de que cumprira seu papel ao
ocasionar as palavras, em formas de versos, à um sentido subjetivo. Acreditava
ela que, a partir de então, estaria em âmbito melhor. Aquelas reflexões ficarão
eternamente como uma expressão do que foi a alma Florbela Espanca.
Uma prática íntima, o arquivamento do eu
muitas vezes tem uma função pública, pois arquivar a própria vida é
definitivamente uma maneira de publicar a própria vida, é escrever o livro da
própria vida que sobreviverá ao tempo e à morte (Philippe Artières).
*Florbela Espanca: Florbela Espanca, batizada como Flor Bela Lobo, e que opta por se
autonomear Florbela d'Alma da Conceição Espanca, foi uma poetisa portuguesa.
Seus versos são cantados e recitados em todo mundo.
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