quarta-feira, 18 de maio de 2016

AS SETE PORTAS DA BAHIA – A CHAVE



Literatura/Livro/ilustrações/pinturas


 Autoria de Carybé

 Carybé é “o cidadão brasileiro (baiano) Hector Júlio Páride Bernabó nasceu em Buenos Aires, de pai italiano e mãe brasileira, boa mistura”, que Jorge Amado ainda explica ser ele “Obá Onã Xocum ao mesmo tempo filho de Oxossi e ministro de Xangô, e até presidente do Axé do Opô Afonjá, terreiro onde reinaram Aninha e Senhora, as veneráveis.”

 

A Bahia (Salvador)  não é uma cidade de contrastes. Não é não. Quem pensa assim está enganado.



Tudo aqui se interpreta, se funde, se disfarça e volta à tona sob os aspectos mais diversos sendo duas ou mais coisas ao mesmo tempo, tendo outro significado, outra roupa, até outra cara.
Me explico?

Quero dizer que aquela ruma de São Jorge que Alfredo Simões, o santeiro, esculpe e encarna é São Jorge, mas ao mesmo tempo é Oxóssi; um era capadócio, o outro das terras de Ijebu Odé, cada qual andou sua distancia e aqui na Bahia (Salvador), ou Roma Negra, ou Cidade do Salvador, ou simplesmente Salvador, se irmanaram, viraram carne e unha e ali estão, em cores fulgurantes na prateleira do Simões, ou em forma de arco e flecha de ferro na barraca do Camafeu, no Mercado (Modelo).
Quando chegam reis à (Bahia) ou presidentes ou personalidades mundiais, é de praxe oferecer-lhes um almoço em Palácio. Aí o rei como caruru e caruru de Amalá, comida de Xangô, come acarajé que é de Iansã, come pipocas que são de Omolu e assim o rei faz um almoço litúrgico conversando de política ou do grande prêmio de Long-Champs.

De contrastes seria se fosse uma cidade com coisas que uma nada tem que ver com a outra, mas aqui tudo tem que ver. Tudo está alinhavado, tudo surge do seu bojo mágico com grossas raízes, profundas raízes que se alimentam que se alimentam de rezas, ladainhas, orikis, alujás, farofas de azeite o ano todo, bacalhau na semana santa, trêmula luz de velas nos altares e e água fresca nas quartinhas dos pejis. Tudo misturado.

Tudo misturado: gente, coisas, costumes, pensares.  Vindos de longe ou sendo daqui, tudo misturado. O político consulta Ifá e faz promessas a Senhor do Bomfim para ser eleito; o doente entra na sala de operações ao mesmo tempo que se faz Ebó para que o cirurgião corte o mal com precisão absoluta.

Além da terra onde um dia descansaremos, há duas coisas: o preto e o branco. Havia. A loura de biquíni tem uma estrutura de ombros formidável, genuinamente sudanesa. A vendedora de mingau, escura como a noite, tem um holandês nos olhos. Tudo misturado.

A Bahia (Salvador), cidade gorda, farta de cacau e fumo, está debruçada sobre o mar, fingindo não caber de nada, tomando a fresca, vendo a Lua se escamando na maré de enchente, vendo a descaração na Ladeira da Misericórdia, vendo os saveiros serenos.

Se fosse outra noite, se fosse uma noite de trovoada, por uma boca tiraria ladainhas a Santa Bárbara e pela outra cantaria a Iansã, bonita como o que, enfrentando coriscos com seu alfanje de ouro. Dançando ao som dos pipocos, porque ela não tem medo de relâmpago nem de Eguns do outro mundo. Dança levando na cabeça o fogo que roubou a Xangô enquanto a chuva derrete o barro vermelho que vira sangue vale abaixo até ir tingir o começo do mar.

Verdes e doces vales da Bahia (Salvador). Divisores das colinas coroadas de conventos, de sobrados multicores, de mosteiros e fortes e enlouquecidas de torres sonoras de sinos, que cantam aleluias ou reboam soturnos toques de finados. Reboam também os couros de bode dos atabaques chamando deuses africanos. Oxum para coisas do amor, Omolu para doenças ou Oxalá em sua infinita pureza, e, como eu estava dizendo, Oxalá é o Senhor do Bomfim. Outras colinas mais novas dão onde morar aos pobres, são colinas franciscanas que dão tudo que é seu, chão para sustentar pequenas casas agrupadas e alegres como colegiais, mangueiras, jaqueiras e tamarindeiros imensos para que os garotos façam um pouco de cultura física e se alimentem, bananeiras e as tetas douradas dos mamoeiros para menino pequeno e velha sem dente. Dão sua carne, seu barro, para fazer as paredes de sopapo, manacás e jasmineiros para perfumar a noite.

De tardinha ao fifós vão abrindo quadros familiares na escurama.  Modestos jantares servidos, ampliações de retratos de casamento, máquinas de coser e gente, muita gente fazendo coisas, representando a vida nos pequenos teatros das janelas e portas iluminadas.
Uma sombra densa engoliu o verde das bananeiras, as jaqueiras, os coqueiros, o povo. Só ternos brancos e vestidos mal-assombrados sobem e descem as ladeiras como se não tivessem ninguém por dentro ou passam cachorros silenciosos como que voando na noite. E os jasmineiros aromando.
Detrás do samba fanhoso do alto-falante do armazém, palpita o som gordo dos atabaques. Exu recebe oferendas, canta-se o padê. Ao mesmo tempo sobem aos céus os cânticos dos Filhos de Jeová tentando salvar o mundo. Dona Frutuosa Ferreira de Aragão Filhos de Jeová acende as lamparinas à santa de sua devoção, Senhora Sant’Ana, que ao mesmo tempo é Nanã Curucu, pelo menos para Lindaura, a cozinheira, que salva dizendo: -- Saluba.
O manacá aromando, misturado com o perfume de namorada.
Há muita confusão aqui, Senhor! Os sinos badalam nas torres cor de osso, São Lázaro come pipocas, há anjos de madeira com asas de arara e Oxês escuros empapados de azeite. Incenso, mirra, ouro e munguzá; ouro nas farofas e nas enlouquecidas naves barrocas, mirra e incenso n~~ao faltam, estão no ar transparente, nas brisas que vêm de longe, no aromado passar de uma crioula.





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