Literatura/Livro/ilustrações/pinturas
Autoria de Carybé
Carybé
é “o cidadão brasileiro (baiano) Hector Júlio Páride Bernabó nasceu em Buenos
Aires, de pai italiano e mãe brasileira, boa mistura”, que Jorge Amado ainda explica
ser ele “Obá Onã Xocum ao mesmo tempo filho de Oxossi e ministro de Xangô, e
até presidente do Axé do Opô Afonjá, terreiro onde reinaram Aninha e Senhora,
as veneráveis.”
A
Bahia (Salvador) não é uma cidade de
contrastes. Não é não. Quem pensa assim está enganado.
Tudo aqui se interpreta, se
funde, se disfarça e volta à tona sob os aspectos mais diversos sendo duas ou
mais coisas ao mesmo tempo, tendo outro significado, outra roupa, até outra
cara.
Me explico?
Quero dizer que aquela ruma de São Jorge que Alfredo Simões,
o santeiro, esculpe e encarna é São Jorge, mas ao mesmo tempo é Oxóssi; um era
capadócio, o outro das terras de Ijebu Odé, cada qual andou sua distancia e
aqui na Bahia (Salvador), ou Roma Negra, ou Cidade do Salvador, ou simplesmente
Salvador, se irmanaram, viraram carne e unha e ali estão, em cores fulgurantes
na prateleira do Simões, ou em forma de arco e flecha de ferro na barraca do
Camafeu, no Mercado (Modelo).
Quando chegam reis à (Bahia) ou presidentes ou personalidades
mundiais, é de praxe oferecer-lhes um almoço em Palácio. Aí o rei como caruru e
caruru de Amalá, comida de Xangô, come acarajé que é de Iansã, come pipocas que
são de Omolu e assim o rei faz um almoço litúrgico conversando de política ou
do grande prêmio de Long-Champs.
De contrastes seria se fosse uma cidade com coisas que uma
nada tem que ver com a outra, mas aqui tudo tem que ver. Tudo está alinhavado,
tudo surge do seu bojo mágico com grossas raízes, profundas raízes que se
alimentam que se alimentam de rezas, ladainhas, orikis, alujás, farofas de
azeite o ano todo, bacalhau na semana santa, trêmula luz de velas nos altares e
e água fresca nas quartinhas dos pejis. Tudo misturado.
Tudo misturado: gente, coisas, costumes, pensares. Vindos de longe ou sendo daqui, tudo
misturado. O político consulta Ifá e faz promessas a Senhor do Bomfim para ser
eleito; o doente entra na sala de operações ao mesmo tempo que se faz Ebó para
que o cirurgião corte o mal com precisão absoluta.
Além da terra onde um dia descansaremos, há duas coisas: o
preto e o branco. Havia. A loura de biquíni tem uma estrutura de ombros
formidável, genuinamente sudanesa. A vendedora de mingau, escura como a noite,
tem um holandês nos olhos. Tudo misturado.
A Bahia (Salvador), cidade gorda, farta de cacau e fumo,
está debruçada sobre o mar, fingindo não caber de nada, tomando a fresca, vendo
a Lua se escamando na maré de enchente, vendo a descaração na Ladeira da
Misericórdia, vendo os saveiros serenos.
Se fosse outra noite,
se fosse uma noite de trovoada, por uma boca tiraria ladainhas a Santa Bárbara
e pela outra cantaria a Iansã, bonita como o que, enfrentando coriscos com seu
alfanje de ouro. Dançando ao som dos pipocos, porque ela não tem medo de relâmpago
nem de Eguns do outro mundo. Dança levando na cabeça o fogo que roubou a Xangô
enquanto a chuva derrete o barro vermelho que vira sangue vale abaixo até ir
tingir o começo do mar.
Verdes e doces vales da Bahia (Salvador). Divisores das
colinas coroadas de conventos, de sobrados multicores, de mosteiros e fortes e
enlouquecidas de torres sonoras de sinos, que cantam aleluias ou reboam
soturnos toques de finados. Reboam também os couros de bode dos atabaques
chamando deuses africanos. Oxum para coisas do amor, Omolu para doenças ou
Oxalá em sua infinita pureza, e, como eu estava dizendo, Oxalá é o Senhor do
Bomfim. Outras colinas mais novas dão onde morar aos pobres, são colinas
franciscanas que dão tudo que é seu, chão para sustentar pequenas casas agrupadas
e alegres como colegiais, mangueiras, jaqueiras e tamarindeiros imensos para
que os garotos façam um pouco de cultura física e se alimentem, bananeiras e as
tetas douradas dos mamoeiros para menino pequeno e velha sem dente. Dão sua
carne, seu barro, para fazer as paredes de sopapo, manacás e jasmineiros para
perfumar a noite.
De tardinha ao fifós vão abrindo quadros familiares na
escurama. Modestos jantares servidos,
ampliações de retratos de casamento, máquinas de coser e gente, muita gente
fazendo coisas, representando a vida nos pequenos teatros das janelas e portas
iluminadas.
Uma sombra densa engoliu o verde das bananeiras, as
jaqueiras, os coqueiros, o povo. Só ternos brancos e vestidos mal-assombrados
sobem e descem as ladeiras como se não tivessem ninguém por dentro ou passam
cachorros silenciosos como que voando na noite. E os jasmineiros aromando.
Detrás do samba fanhoso do alto-falante do armazém, palpita
o som gordo dos atabaques. Exu recebe oferendas, canta-se o padê. Ao mesmo
tempo sobem aos céus os cânticos dos Filhos de Jeová tentando salvar o mundo.
Dona Frutuosa Ferreira de Aragão Filhos de Jeová acende as lamparinas à santa
de sua devoção, Senhora Sant’Ana, que ao mesmo tempo é Nanã Curucu, pelo menos
para Lindaura, a cozinheira, que salva dizendo: -- Saluba.
O manacá aromando, misturado com o perfume de namorada.
Há muita confusão aqui, Senhor! Os sinos badalam nas torres
cor de osso, São Lázaro come pipocas, há anjos de madeira com asas de arara e
Oxês escuros empapados de azeite. Incenso, mirra, ouro e munguzá; ouro nas
farofas e nas enlouquecidas naves barrocas, mirra e incenso n~~ao faltam, estão
no ar transparente, nas brisas que vêm de longe, no aromado passar de uma
crioula.
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